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Da função social da propriedade imóvel.

Estudos do princípio constitucional e de sua regulamentação pelo novo Código Civil brasileiro

Da função social da propriedade imóvel. Estudos do princípio constitucional e de sua regulamentação pelo novo Código Civil brasileiro

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O novo Código Civil incorpora a preocupação com a observância do princípio da função social, a começar da própria conceituação do direito de propriedade em geral, sendo sentida em várias outras inovações normativas.

1 - INTRODUÇÃO

Surgida no ordenamento jurídico pátrio após a edição do Código Civil de 1916, a função social da propriedade recebeu importantes contribuições da Constituição de 1988. Mas, nem bem analisadas as implicações da atual Constituição em relação à antiga legislação civil, veio a lume o novo Código Civil (Lei 10.406, de 10/01/2002), que promoveu significativas mudanças acerca da matéria. Logo, é oportuno estudar as inovações obtidas e os problemas que surgirão com a recente concretização do instituto por meio do novo Código Civil.

Nesse esforço, o estudo começará pela conceituação da função social da propriedade, passando por breve histórico. Após, pretender-se-á demonstrar o porquê e as conseqüências advindas do enquadramento do instituto na acepção de princípio constitucional. Em seguida, partindo da interpretação da Constituição de 1988, o tema proposto será explorado em visão sistemática abrangente, não olvidando a legislação que, paralelamente ao Código Civil, promove a regulamentação da função social da propriedade. Somente então, no último item do trabalho, é que serão analisados artigos específicos que tocam a questão, no novo Código Civil, buscando interligá-los às normas preexistentes, especialmente ao recente Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 11/07/2001).

Destarte, a preocupação maior do subscritor será uma exegese que não se limite só à legislação civil recém-editada, mas a ela se chegue após estudar todo o sistema normativo em que se insere o princípio da função social e as regras que lhe dão corpo. Intenta-se, dessa forma, superar a pouca literatura e nenhuma jurisprudência acerca da Lei 10.406/2002.

Por fim, quanto ao corte temático, o trabalho concentrar-se-á na função social da propriedade imóvel, a despeito de o princípio incidir também em face de outros tipos de propriedade.


2 – DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

Antes de iniciar a exposição sobre o que vem a ser a chamada função social da propriedade, não se pode olvidar que o princípio da função social tem como pressuposto necessário a propriedade. [1] Daí, é de bom alvitre cuidar simultaneamente, ainda que em breves linhas, do liame umbilical existente entre função social e direito de propriedade.

Nesse prumo, o Código de Napoleão qualificou o direito de propriedade, na esfera privada, como o "direito de gozar e dispor das coisas da maneira mais absoluta, desde que delas não se faça uso proibido pelas leis e regulamentos" (art. 436).

De sua vez, a aplicação do princípio da função social da propriedade descaracteriza o acerto dessa velha concepção civilista, imantando o direito de propriedade com um dever de agir, e não apenas uma obrigação de não fazer (função social ativa). [2] Assim, a propriedade, modernamente, converteu-se em poder-dever voltado à destinação do bem a objetivos que transcendem o simples interesse do proprietário.

Porém, não se confunde a função social com as limitações da propriedade contidas no direito civil, [3] tampouco com as limitações administrativas. [4] Mesmo sendo inválido afirmar que se resumem a prestações de não fazer, as limitações constituem condição de exercício do direito. Já a função social está ligada aos deveres inerentes ao exercício da propriedade, convertendo-se em "elemento da estrutura e do regime jurídico da propriedade". [5] Como afirma ARAÚJO SÁ, as limitações administrativas têm fundamento não na função social da propriedade mas no poder de polícia, e são externas ao direito de propriedade, interferindo tão-somente no exercício do direito, enquanto a função social interfere no conceito e na estrutura do direito de propriedade. [6]

Mesmo a desapropriação, instituto bastante associado à função social, com ela não se pode baralhar, ainda que o descumprimento desta possa implicar a decretação de desapropriação. O que sucede é simples relação de causa e efeito.

Como dizem GUSTAVO TEPEDINO e ANDERSON SCHREIBER, a funcionalização da propriedade introduz critério de valoração de sua própria titularidade, que passa a exigir atuações positivas de seu titular, a fim de adequar-se à tarefa que dele se espera na sociedade. [7]

Aproveitando-se da definição do jus-agrarista argentino ANTONINO C. VIVANCO, citado por TORMINN BORGES, o princípio da função social consiste na obrigação condicionante do exercício da propriedade a interesses que transcendem a vontade do proprietário, de modo a satisfazer indiretamente as necessidades dos demais membros da comunidade. [8]

Enfim, com arrimo em PIETRO PERLINGERI, pode-se dizer que a função social converteu-se em título justificativo, verdadeira causa de atribuição dos poderes do titular da propriedade. [9]


3 – BREVE HISTÓRICO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

É a partir das obras de direito agrário que melhor se remonta o retrospecto da função social da propriedade. Nessa linha, percebe-se que a evolução do instituto andou de mãos dadas com o desenvolvimento do direito de propriedade.

Com base na obra do ilustre professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás BENEDITO FERREIRA MARQUES, [10] as origens do princípio da função social estão em lições de ARISTÓTELES, o primeiro a entender que aos bens se deveria dar uma destinação social.

Depois de ARISTÓTELES, a idéia só foi impulsionada por TOMÁS DE AQUINO. O conceito tomista de propriedade possuía três planos distintos na ordem de valores. [11] No primeiro deles, o homem teria um direito natural ao apossamento de bens materiais, dada sua natureza de animal racional, como forma de manter sua própria sobrevivência. No segundo, considerou-se que o homem não poderia refletir apenas acerca de sua sobrevivência imediata, como ocorre com os animais irracionais, porque deveria pensar também no amanhã, pois, para que fosse verdadeiramente livre, precisaria estar ao abrigo das surpresas econômicas. Num terceiro plano, permitir-se-ia o condicionamento da propriedade em razão do momento histórico de cada povo, desde que não se chegasse a negá-lo. Ou seja, embora a propriedade consistiria num direito natural, o proprietário não poderia abstrair-se do dever do zelar pelo "bem comum". [12]

Em seguida, operaram-se várias fases da evolução do conceito de direito de propriedade, até que o Código de Napoleão o fixasse com características quase absolutas, conforme dispunha o já transcrito art. 436. E foi com base nessa clássica definição francesa que os códigos civis que se sucederam buscaram inspiração, inclusive o brasileiro.

Porém, segundo MARQUES, "foi com Duguit, escorado no pensamento positivista de Comte, que o direito de propriedade se despiu do caráter subjetivista que o impregnava, para ceder espaço à idéia de que a propriedade era, em si, uma função social." [13] Assim, afirma MARQUES, o grande impulso às idéias de subordinação da propriedade a uma finalidade social teve início com a célebre palestra proferida por DUGUIT em Buenos Aires no ano de 1911.

Também GUSTAVO TEPEDINO e ANDERSON SCHREIBER creditam a DUGUIT a difusão do termo função social da propriedade, o qual teria sido primeiramente estampado na obra Les transformations du droit prive depuis le Code Napoléon. [14] Os mesmos autores lembram, mais, da contribuição da doutrina italiana. Citando SALVATORE PUGLIATTI e STEFANO RODOTÀ, prosseguem TEPEDINO e SCHREIBER, foi na Itália que se soube dar à função social seu melhor sentido, "não como uma categoria oposta ao direito subjetivo, mas como um elemento capaz de alterar-lhe a estrutura, inserindo-se em seu profilo interno e atuando como critério de valoração do exercício do direito, o qual deverá ser direcionado para um massimo sociale." [15]

Dignas de registro, ainda, são as influências das teorias marxistas a apregoar a coletivização da propriedade individual. Tampouco se esqueça a importância da Igreja Católica, especialmente as encíclicas papais de 1891 (Rerum Novarum, de Leão XIII), de 1931 (Quadragesimo Anno, de Pio XI) e de 1962 (Mater et Magistra, de João XXIII).

No Brasil, com apoio em LIMA STEFANINI e FERNANDO PEREIRA SODERO, anota MARQUES que, desde a concessão das chamadas sesmarias, já havia preocupação com o cumprimento da função social, pois os sesmeiros deveriam cultivar a terra e daí tirar-lhe aproveitamento econômico. Afirma ainda, embasado em estudo de ROSALINA RODRIGUES PEREIRA, que também as Ordenações Manoelinas e Filipinas já se ocupavam de questões ligadas ao uso do solo e a técnicas agrícolas.

Após a independência, a Constituição de 1824 não se dedicou especificamente ao tema, afirmando o direito de propriedade "em toda sua plenitude", ressalvada uma "única" exceção: o uso público indenizado do bem, quando legalmente necessário (art. 179, XXII).

Sob o governo republicano da Constituição de 1891, pouco se evoluiu, salvo na parte em que prevista a desapropriação por necessidade ou utilidade pública. Outrossim, muito influenciado pelo Código de Napoleão, o Código Civil de 1916 não incrementou a função social da propriedade, limitando-se a regular genericamente os casos de necessidade e de utilidade pública, para fins de desapropriação (art. 590 e §§1º e 2º), e de requisição de bens por autoridade pública (art. 591 e par. único).

A seguir, a função social só ganhou algum espaço na Constituição de 1934, cujo artigo 113, n. 17, estabelecia que o direito de propriedade não poderia ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma da lei.

Nenhum desenvolvimento se fez sentir na Constituição de 1937, mas a Constituição de 1946 condicionou o uso da propriedade ao "bem-estar social" (art. 147), dando então margem a regulamentação por meio da Lei 4.132, de 10/09/62, que até hoje cuida dos casos de desapropriação por interesse social. Não bastasse, nos trabalhos legislativos que culminaram com a aprovação da desapropriação por interesse social na CF/46, a proposta de emenda apresentada pelo Senador FERREIRA DE SOUZA já abordava expressamente a questão da função social, como informa MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO. [16]

Então, editado o Estatuto da Terra (Lei 4.504, de 30/11/64), seu artigo 2º expressamente tratou da função social do imóvel rural. [17] Daí por diante, a expressão "função social" foi incorporada nas Constituições posteriores, [18] até se chegar à atual Constituição de 1988. Nesta, a inspiração mais próxima, segundo MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, deve-se à doutrina social da Igreja Católica, especialmente às Encíclicas Mater et Magistra, do Papa João XXIII, e Populorum Progressio, do Papa João Paulo II, "nas quais se associou a propriedade a uma função social, ou seja, à função de servir como instrumento para a criação de bens necessários à subsistência de toda a humanidade." [19]


4 - DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE COMO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL

Não faz parte deste estudo a conceituação do que vem a ser "norma jurídica", tampouco a questão da estrutura lógica das chamadas "proposições jurídicas". [20] Porém, sem menosprezar as polêmicas doutrinárias acerca do tema, num primeiro esforço de categorização, já se afirma que tanto as regras como os princípios serão neste estudo enquadrados na definição lato sensu de normas jurídicas. [21] Dessa forma, a classificação das normas jurídicas em sentido estrito, de modo a nestas incluir somente as regras e não os princípios, será de todo irrelevante, salvo naquilo que de alguma forma possa exprimir censurável tendência de negar aos princípios conteúdo normativo. [22]

De sua vez, entendem-se por regras as disposições (interpretadas) que estabelecem mandatos, proibições ou permissões de atuação em situações concretas previstas nelas mesmas. [23] No conceito de CANOTILHO, regras "são normas que, verificados determinados pressupostos, exigem, proíbem ou permitem algo em termos definitivos, sem qualquer exceção." [24]

Já a conceituação de princípios é mais difícil. Para este estudo, devem ser entendidos como normas que proporcionam critérios para tomadas de posições ante situações concretas indeterminadas. [25] Na festejada definição de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO:

Princípio (...) é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. [26]

Tratando já daqueles estampados em textos constitucionais, "os princípios são núcleos de condensação nos quais confluem bens e valores constitucionais" (CANTILHO e VITAL MOREIRA); [27] "são ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas" (AFONSO DA SILVA). [28] Assim, a normatização e a constitucionalização conferiu aos princípios constitucionais o status hierárquico de "normas-chaves" do sistema jurídico (BONAVIDES). [29]

Dito isso, para se saber se a função social, como concebida na CF/88, é princípio ou regra, cabe expor alguns critérios para diferenciá-los. Nessa tarefa, a despeito dos clássicos e extratificados critérios de distinção apontados por CANOTILHO, [30] é de bom alvitre enunciá-los de forma menos resumida, com apoio, principalmente, na obra já mencionada de EROS ROBERTO GRAU. [31]

Assim, tem-se que as regras jurídicas são aplicáveis por completo, ou não se aplicam de modo absoluto. Na dicção de DWORKIN, aplicam-se à maneira de um tudo ou nada (an all or nothing), [32] não comportando exceções. [33] Presentes os pressupostos fáticos a que se refira, a regra (válida) há de ser aplicada. [34]

Já os princípios sequer exigem a indicação das condições necessárias à sua incidência, pois não configuram uma decisão concreta a ser necessariamente tomada. Em vez disso, os princípios se qualificam como mandamentos de otimização, [35] acenando uma vontade normativa inclinada a certa direção. No dizer de ALEXY, os princípios ordenam algo que deve ser realizado na maior medida possível, tendo em conta as possibilidades jurídicas e fáticas. [36] Daí, os princípios não contêm mandamentos definitivos, mas somente prima facie. [37]

Dessa maneira, com apoio em BOULAGER, citado por EROS ROBERTO GRAU, pode-se afirmar que os princípios, ao contrário das regras, não admitem a própria enunciação das hipóteses nas quais não se aplicam, bem como carecem de conteúdo de determinação relativo aos princípios contrapostos e as possibilidade fáticas, [38] porquanto "são aptos a serem aplicados a uma série indefinida de situações". [39]

Devido a esse alto grau de abstração, demandam os princípios constitucionais medidas concretizadoras, o que é feito por meio de outros princípios de maior densidade [40] (subprincípios), [41] ou mesmo por regras, até chegar-se, na ponta de final de sua incidência fática, na descoberta da "norma de decisão" do caso jurídico-constitucional. [42] Ademais, ainda quando se manifestam as condições nele previstas, um princípio não se aplica automaticamente. É que, em determinado caso, pode também incidir um princípio diverso, apontado em sentido diverso. Surge então outra diferença dos princípios frente às regras jurídicas: como somente uma regra pode incidir em face de uma idêntica situação, se duas ou mais regras estão em choque, [43] apenas uma – ou nenhuma – delas poderá ser considerada válida à regulação da situação concreta, surgindo daí um problema de antinomia jurídica a ser resolvido. [44] Contudo, mais de um princípio pode regular uma mesma situação, pois princípios diversos comportam juízo de ponderação relativa, cujo resultado poderá ser a prevalência de um em detrimento do outro. Consoante sintetizado por BONAVIDES, com base em ALEXY, resolve-se o conflito de regras na dimensão da "validade", enquanto o conflito de princípios é resolvido na dimensão do "valor". [45]

Sem embargo, cabe ressaltar não haver antinomia entre princípios e regras. Se as regras servem para densificar princípios, o eventual conflito envolve, na verdade, o próprio princípio objeto de densificação. Logo, quando um princípio antagônico deva prevalecer, a regra contrastante é simplesmente afastada da regulação da situação concreta, acompanhando o próprio princípio desprezado. [46]

Por fim, em vigor a Constituição de 1988, encaixa-se perfeitamente no conceito de princípio constitucional explícito a exigência de que a propriedade cumpra sua função social (inciso XXIII do art. 5º). É que a observância da função social da propriedade não se aplica à maneira de um tudo ou nada, tampouco se pode, de antemão, indicar todas as condições necessárias à sua incidência. Em vez disso, a verificação do cumprimento da função social pode exigir juízos de ponderação em face de outros princípios, sendo necessária a "concretização" de seu alto grau de abstração. [47] Essa é a conclusão de JOSÉ AFONSO DA SILVA, para quem a norma-princípio contida nesse dispositivo é de aplicabilidade imediata. [48]


5 – O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Já foi dito que a Constituição de 1988 tratou da exigência de que a propriedade cumpra sua função social no inciso XXIII do art. 5º. Mas a Constituição também se referiu à função social na redação original do §1º do art. 156 (hoje alterado pela EC n. 29, de 13/09/2000), no inciso III do art. 170, no §2º do art. 182, no caput do art. 184, no par. único do art. 185 e no art. 186. Outrossim, o Poder Constituinte derivado se valeu da expressão em tela no inciso I do §1º do art. 173, na redação dada pela EC n. 19, de 04/06/98. [49]

É bem verdade que EROS ROBERTO GRAU sustenta que a referência à função social contida no inciso XXIII do art. 5º não se justificaria. Defende o ilustre mestre, por essa norma estaria garantida a propriedade individual, cuja utilização, como instrumento voltado à subsistência individual e familiar, estaria servindo a uma função individual ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana, daí por que imune à questão da função social. [50]

Porém, não só com base na premissa de que na Constituição não há palavras inúteis, pode-se perfeitamente sustentar que toda e qualquer propriedade privada, material ou imaterial, individual ou coletiva, urbana ou rural, móvel ou imóvel, deve atender à função social. [51] De efeito, o princípio atua de forma diferente em relação a cada tipo de propriedade, conforme a destinação reservada aos respectivos bens. [52] Via de regra, é a lei que dispõe sobre como a função social estará sendo cumprida, caso a caso. [53] Nesse pensar, o que pode ocorrer é que a destinação individual do bem satisfaça à função que socialmente dele se espera. [54] Ou seja, cumprindo com sua função individual, o exercício do direito de propriedade poderá estar também obedecendo à função social, mas isso não significa que a propriedade destinada à subsistência individual esteja de antemão imune à função social. Tanto não está que o próprio EROS ROBERTO GRAU tratou de estabelecer exceção a esse raciocínio, dizendo que a propriedade individual pode exceder sua função meramente individual quando "detida para fins de especulação ou acumulada sem destinação ao uso a que se volta." [55]

É evidente, contudo, que na Constituição não houve maior preocupação com a concretização das normas que dispõem acerca do princípio da função social da propriedade, salvo em relação aos imóveis rurais e, com menor intensidade, em face dos imóveis urbanos. Em razão disso, há quem sustente que as medidas voltadas contra o descumprimento da função social "só podem ter por objeto terras particulares, sejam urbanas ou rurais." [56] Porém, consoante exposto, cada tipo de propriedade sujeita-se a determinados modos de cumprimento da função social. De fato, a razão do tratamento mais exaustivo do tema da função social em relação aos imóveis rurais está no maior esforço de regulamentação dos parlamentares ruralistas. Mas isso, nem de longe, pode excluir a incidência do princípio a respeito dos demais tipos de propriedade. [57] Confirma-se esse raciocínio quando se sabe que o conceito de propriedade é mais amplo que o de domínio, pois abrange também os bens imateriais.

Enfim, não se pautando o exercício da propriedade dentro dos pressupostos da função social, sujeita-se o proprietário à expropriação de seu direito, seja qual for a modalidade de propriedade. E contra isso não se pode alegar que a Constituição só se referiu ao descumprimento da função social, como causa deflagradora de desapropriação, naquela movida por interesse social para fins de reforma agrária (art. 184). Com efeito, essa assertiva apenas enuncia que o cumprimento da função social integra o conceito de interesse social para fins de desapropriação. Não se pode negar, porém, que o atual diploma legal que regula a desapropriação por interesse social (Lei 4.132, de 10/09/62) não contemplou expressamente a hipótese de inobservância da função social. Isso se explica, como visto, porque a expressão "função social" só veio a ser cunhada posteriormente, pelo Estatuto da Terra. Mas a própria enunciação dos casos considerados de interesse social faz crer a presença "latente" do princípio da função social em muitos dos incisos do art. 2º da Lei 4.132/62. Logo, à luz do art. 184 da CF, evidencia-se que o legislador poderá encaixar, na regulamentação dos casos de desapropriação para fins de interesse social, regras atinentes à expropriação decorrente do eventual desatendimento do princípio constitucional da função social da propriedade, seja esta de que tipo for. E nisso reside a razão da relativização da garantia à propriedade no inciso XXIII do art. 5º, em regra que se repete no inciso III do art. 170 e no §2º do art. 182 da CF/88.

Todavia, mesmo que facultado à lei incluir hipóteses de descumprimento da função social aos casos de desapropriação por interesse social, salvo as exceções expressamente previstas na Constituição, o pagamento deverá ser feito prévia e integralmente em dinheiro (inciso XXIV do art. 5º).

Dessarte, os conceitos civilísticos de propriedade, com a normatização constitucional do princípio da função social, sofreram profundas transformações. Ao tratamento civil do direito de propriedade hoje em vigor aplicam-se direcionamentos de direito público voltados à caracterização da função social, motivo pelo qual, empolgado com a CF/88, JOSÉ AFONSO DA SILVA afirmou que "o Código Civil não disciplina a propriedade, mas tão-somente as relações civis a ela referentes". [58]

Porém, ao contrário do que pretendem alguns, a propriedade não se confunde com sua função social, como bem analisou o ilustre professor BENEDITO FERREIRA MARQUES. Ainda que a função social faça parte da estrutura do direito de propriedade, servindo como título jurídico de atribuição plena das faculdades que lhe são inerentes, não se pode sustentar que sua eventual inobservância subtraia todos os direitos do proprietário inadimplente. Isso seria chancelar exagero que daria margem até para justificar a expropriação sem o pagamento de indenização. É que a Constituição não baniu o direito de propriedade; apenas impôs a seu exercício o dever de cumprimento da função social. [59]

Vale dizer: ainda que caiba à lei regular como a função social estará sendo cumprida, a não-satisfação da princípio só haverá de acarretar as conseqüências estabelecidas na própria Constituição.

E tais conseqüências podem ser: (a) o parcelamento ou edificação compulsórios dos imóveis urbanos (inciso I do §4º do art. 182 [60]); (b) o aumento progressivo da carga tributária incidente sobre os imóveis urbanos (§1º do art. 156, na redação que lhe deu a EC n. 29/2000, c/c inciso II do §4º do art. 182 [61]) e rurais (art. 153, §4º); (c) a desapropriação-sanção de imóveis urbanos, com pagamento integral mediante títulos da dívida pública (inciso III do §4º do art. 182 [62]); (d) a desapropriação-sanção de imóveis rurais, com o pagamento em dinheiro das benfeitorias úteis e necessárias (§1º do art. 184) e o restante em títulos da dívida agrária (art. 184, caput); (e) a desapropriação-sanção, sem indenização, no caso das glebas onde forem encontradas culturas ilegais de plantas psicotrópicas (art. 243 [63]), e; (f) a desapropriação comum, prévia e integralmente indenizada em dinheiro, por motivo de interesse social, nas situações a serem estabelecidas por lei ordinária (inciso XXIV do art. 5º).

Fora dessas hipóteses, porém, remanesce a garantia da propriedade, inclusive a de reivindicá-la das mãos de terceiros que injustamente a detenham.

Por derradeiro, consoante afirma JOSÉ AFONSO DA SILVA, "é certo que o princípio da função social não autoriza a suprimir, por via legislativa, a instituição da propriedade." [64] Essa assertiva serve para delimitar o núcleo essencial do direito fundamental de propriedade, daí por que, ao disciplinar os requisitos de cumprimento da função social, não poderá o legislador desviar-se de sua finalidade normativa, erigindo deveres desarrazoados ou que tornem impraticável o exercício do direito de propriedade. [65] Incidiria aí o princípio da proporcionalidade, em repressão ao excesso do poder de legislar, pois a função social deve se resumir a algo atingível, até porque, especialmente em se tratando de imóveis rurais, a exigência de padrões de produtividade demasiado altos pode acarretar o esgotamento dos recursos naturais da terra, o que também iria de encontro à função social.


6 – DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL INSERIDO NA ORDEM ECONÔMICA

Analisando o texto das Constituições anteriores que expressamente consignaram a função social da propriedade, percebe-se, em todas elas, que a inclusão do princípio se deu no capítulo destinado à ordem econômica (cf. art. 157, III, da CF/67 e art. 160, III, da CF/69). De outro turno, ainda que a Carta de 1988 tenha feito o mesmo, inovou o Constituinte consagrando o princípio, em relativização ao próprio direito individual de propriedade, no capítulo destinado aos direitos fundamentais (inciso XXIII do artigo 5º). Ademais, a propriedade privada foi incluída em inciso autônomo, entre os princípios da ordem econômica (inciso II do art. 170), antes mesmo da enunciação do princípio da função social da propriedade (inciso III do mesmo artigo).

Por conseguinte, pela nova Constituição, a função social não interessa apenas à ordem econômica, mas serve de princípio norteador também do direito individual de propriedade. Outrossim, inserido no capítulo da ordem econômica, o conceito de propriedade privada foi ainda mais "relativizado", [66] em comparação com aquele das Cartas anteriores, pois passou a se submeter ao juízo de ponderação decorrente da aplicação de todos os outros princípios integrantes da ordem econômica.


7 – PECULIARIDADES DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL

Em relação aos imóveis rurais, aplica-se tudo o que se disse acerca da função social, especialmente em relação à transformação do regime privatístico de propriedade. Contudo, há certas peculiaridades anotadas especialmente por jus-agraristas.

Primeiramente, cabe dizer que a expressão "função social da propriedade rural" é muito criticada pelos estudiosos do direito agrário. Defendem eles que a expressão utilizada pelo Constituinte não satisfaz plenamente as preocupações com a total dimensão do problema agrário, o qual não se resume só à questão da propriedade, pois engloba também a função social da posse e dos contratos agrários. Daí, sustenta-se a predileção pela expressão genérica "função social da terra" [67] ou "função social do imóvel rural", [68] de que seriam espécies a "função social da posse agrária" e a "função social dos contratos agrários".

Porém, dadas as finalidades deste estudo, que exorbitam o campo da função social do imóvel rural, com a vênia dos jus-agraristas, tem-se por escusável a utilização da consagrada expressão "função social da propriedade".

Na esteira da repercussão do princípio da função social em face do novo regime da posse agrária, ensina outro ilustre professor GETÚLIO TARGINO LIMA, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás, em obra já mencionada, a posse de imóvel rural não mais pode ser encarada como simples exercício de um dos poderes inerentes ao domínio, mas sim como um comportamento em relação à coisa que tenha por pressuposto o cumprimento da função social.

Essa nova concepção de posse agrária vem contaminando a jurisprudência dos tribunais estaduais, não sendo raro encontrar assentado em acórdãos que "não se concebe mais a posse como mera emanação do domínio. O poder fático sobre a coisa (posse), a partir do regramento constitucional, se caracteriza pelo uso econômico do bem". [69]

Ressalte-se, porém, não serve esse raciocínio de incentivo a invasões de terra praticadas a pretexto de fazer cumprir a função social. Conforme jurisprudência do TJRS, citando acórdão do TAMG, não constitui "o principio constitucional da função social da propriedade justificativa de invasão, a permitir a realização de justiça pelas próprias mãos." [70]

Assentado tudo isso, já se pode dizer alguma coisa sobre as regras que dão densidade ao princípio da função social do imóvel rural. Essas considerações, contudo, serão feitas de maneira perfunctória, dado o recorte temático do trabalho.

Pois bem. Como antes mencionado, não houve maior preocupação da Constituição com a concretização das normas que dispõem acerca do princípio da função social da propriedade, salvo em relação aos imóveis rurais e, com menor intensidade, em face dos imóveis urbanos.

Enfocando os imóveis urbanos, o tratamento um pouco mais específico que a Constituição lhes reservou não impediu fosse o tema tratado com alto grau de abstração. Dispõe o art. 182, §2º, da CF/88, que a "propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor." (CF, art. 182, §2º). Desse modo, restou ao legislador municipal ampla margem de poder para dizer como será cumprida a função social. A lei do plano diretor tratará do assunto. Mas a Constituição também cuida da edição de leis municipais específicas (no §4º do mesmo artigo) que poderão regulamentar exigências menos genéricas - se comparadas às previsões do plano diretor - , nos termos definidos na recente Lei 10.257, de 11/07/2001, [71] sob pena de serem aplicadas as sanções previstas nos incisos I a IV do mesmo parágrafo 4º do art. 182 da CF/88.

No tocante aos imóveis rurais, entretanto, a Constituição foi menos generosa para com o legislador. De início, percebe-se que só a União Federal possui competência material para promover a desapropriação por descumprimento da função social do imóvel rural (caput do art. 184), bem como para legislar sobre os requisitos a serem atendidos (caput do art. 186). E dessas restrições, com base na teoria dos poderes implícitos, [72] pode-se extrair outra: só a União detém atribuição para fiscalizar e controlar a observância da função social do imóvel rural.

Conforme consta do artigo 2º da Lei 8.629, de 25/02/93, a atribuição para ingressar no imóvel rural, em nome da União, para fins de levantamento de dados, é realizada por intermédio de "órgão federal competente" (§2º do art. 2º), [73] tarefa essa que vem sendo observada por uma autarquia federal, no caso, o INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Nada indica, porém, essa competência de controle tenha sido dada com exclusividade à União, motivo pelo qual se afigura válida a possibilidade de delegação a Estados-membros, Distrito Federal ou a municípios. [74]

Volvendo à Constituição, percebe-se que o art. 185 estabelece zona de imunidade à desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, mesmo que a função social não esteja sendo observada, em relação: (a) à pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra; e (b) à propriedade produtiva.

Nesse prumo, a conceituação de pequena e média propriedade rural só veio a ser estabelecida com o art. 4º da Lei 8.629/93, pelo qual ficou assentado que pequena propriedade é aquela com área compreendida entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos fiscais [75] e média propriedade é o imóvel rural [76] de área superior a 4 (quatro) e até 15 (quinze) módulos fiscais.

Critica-se a dimensão dessa imunidade expropriatória em relação à grande propriedade produtiva, dizendo que a produtividade é apenas um dos elementos da função social, motivo pelo qual não basta ser produtivo o imóvel rural para que seja considerado cumpridor do princípio. [77] Contudo, defende CELSO RIBEIRO BASTOS a opção da Constituição, afirmando que parcelar "a propriedade produtiva é prenúncio quase certo de diminuição da produção com conseqüente degradação dos níveis sociais já atingidos." [78] Desse modo, mesmo que sem o aplauso de toda doutrina pátria, o fato é que essa imunidade expropriatória da terra produtiva foi expressamente consagrada pela Constituição, que previu ainda a edição de lei que garanta tratamento especial ao imóvel rural produtivo, fixando normas para o cumprimento dos requisitos da função social (par. único do art. 185).

Neste ponto, cabem breves digressões em torno dos pressupostos a serem observados no atendimento da função social do imóvel rural. A começar das regras enumeradas pelo art. 186 da Constituição, o imóvel rústico deverá simultaneamente satisfazer os seguintes requisitos: (a) aproveitamento racional e adequado; (b) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; (c) observância das disposições que regulam as relações de trabalho; (d) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

De conseguinte, fala-se que o preenchimento da função social do imóvel rural exige a presença simultânea de requisitos espalhados em três óticas: [79] (a) econômica, ligada à "produtividade" do imóvel rural, ou seja, seu aproveitamento racional e adequado; (b) social, abraçando as disposições que regulam as relações de trabalho e as que contemplam o bem-estar dos que exploram a terra (incluídos aí não só os proprietários e trabalhadores, mas os que detém a posse direta do imóvel); (c) ecológica, relacionada com a preservação do meio ambiente, concebido como direito fundamental de terceira geração, garantido-o à presente e futuras gerações. [80]

Por óbvio, a Constituição, no caput do art. 186, previu que esses requisitos fossem fixados por lei, de modo a atender às peculiaridades da região onde se situa cada imóvel rural. E essa tarefa foi confiada à Lei 8.629/93.

Em linhas gerais, o esquema legislativo de fixação dos critérios de cumprimento da função social do imóvel rural, conforme estabelecidos pela Lei 8.629/93, atualmente alterada pela MP 1.577, de 11/06/97, e reedições (atualmente, MP 2.183-56, de 24/08/2001), pode assim ser resumido.

O reconhecimento da produtividade da gleba exige sejam atingidos, cumulativamente, nos termos do art. 6º da Lei 8.629/93: (a) um percentual mínimo de 80% do grau de utilização da terra (GUT), e; (b) um percentual igual ou superior a 100% do grau de eficiência da exploração econômica (GEE).

O cálculo do índice do GUT considera a área efetivamente utilizada do imóvel, em cotejo com a área potencialmente utilizável, excluídas, desse último conceito, por força do art. 10 da Lei 8.629/93, as áreas ocupadas por construções e instalações, excetuadas aquelas destinadas a fins produtivos, como estufas, viveiros, sementeiros, tanques de reprodução e criação de peixes e outros semelhantes; as áreas comprovadamente imprestáveis para qualquer tipo de exploração agrícola, pecuária, florestal ou extrativa vegetal; as áreas sob efetiva exploração mineral; as áreas de efetiva preservação permanente e demais áreas protegidas por legislação relativa à conservação dos recursos naturais e à preservação do meio ambiente.

De sua vez, o GEE é obtido por meio da aplicação de sistemática de cálculo que leva em consideração a destinação econômica da gleba em face de índices de rendimento considerados medianos, de acordo com a região onde se localiza o imóvel. Assim, determina o art. 6º, §2º, da Lei 8.629/93, que, para os produtos vegetais, divide-se a quantidade colhida de cada produto pelos respectivos índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea (inciso I); para a exploração pecuária, divide-se o número total de Unidades Animais (UA) do rebanho, pelo índice de lotação estabelecido pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea (inciso II). Então, a soma dos resultados obtidos na forma anterior é dividida pela área efetivamente utilizada e multiplicada por 100 (cem), determinando-se assim o grau de eficiência na exploração (GEE) do imóvel rural. Dessa forma, um imóvel com níveis de exploração econômica mais eficientes que aqueles relativos à média exigida pelos órgãos oficiais poderá obter um percentual superior a 100% de GEE.

Nada obstante, não há registro de que o Poder Público venha respeitando a regra do art. 11 da Lei 8.629/93, que mesmo antes da alteração determinada pela MP 1.577/97, já exigia que, na fixação dos parâmetros, índices e indicadores que informam o conceito de produtividade fosse ouvido também o Conselho Nacional de Política Agrícola.

De outro turno, mostra-se razoável a Lei 8.629/93, ao não retirar a qualificação de propriedade produtiva do imóvel que, por razões de força maior, caso fortuito ou de renovação de pastagens tecnicamente conduzida, devidamente comprovados pelo órgão competente, deixar de apresentar, no ano respectivo, os graus de eficiência na exploração, exigidos para a espécie (art. 6º, §7º). Assim, os danos à produtividade decorrentes de esbulho da área podem ser considerados albergados por essa norma legal, como já reconheceu o STF. [81]

Pela ótica social, considera a lei que a terra, mesmo produtiva, poderá estar desatendendo à função social se quem a explora o faz com desrespeito às leis trabalhistas, às disposições dos contratos agrários, bem como se não forem observadas as normas de segurança do trabalho ou provoca conflitos e tensões sociais no imóvel (§§4º e 5º do art. 9º da Lei 8.629/93). Aqui, portanto, é importante identificar o agente provocador do conflito social, pois com ele a lei não se compadece. Daí por que se afiguram materialmente corretas as disposições contidas na atual MP 2.183-56/2001, que inseriram os §§6º a 8º na redação do art. 2º da Lei 8.629/93. [82]

O último dos requisitos - mas nem por isso menos importante - a ser brevemente analisado diz respeito à utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente.

De efeito, considera-se adequada a utilização dos recursos naturais disponíveis quando a exploração se faz respeitando a vocação natural da terra, de modo a manter o potencial produtivo da propriedade (§2º do art. 9º da Lei 8.629/93). E por preservação do meio ambiente deseja a lei a manutenção das características próprias do meio natural e da qualidade dos recursos ambientais, na medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e qualidade de vida das comunidades vizinhas (§3º do art. 9º da Lei 8.629/93). [83]

Neste ponto, percebe-se a necessidade de ponderar os aspectos relativos ao aproveitamento racional e adequado do imóvel rural (ótica econômica) em face daqueles referentes à adequada utilização dos recursos naturais e a preservação do meio ambiente (ótica ecológica). Assim, na fixação dos requisitos da função social do imóvel rural, a lei há de observar uma razoabilidade interna [84] que permita a eleição de critérios adequados tanto sob a ótica econômica quanto ecológica, daí o motivo de a Constituição mencionar, em ambos os casos, a questão da adequabilidade (cf. os incisos I e II do art. 186). Dessarte, a fixação do GUT e o GEE não pode perder de rumo a vedação à exploração econômica depredatória. É preciso saber se os parâmetros de produtividade que vêm sendo fixados pelos órgãos do Executivo não estão trabalhando com padrões por demais genéricos, ou que não levem em consideração certas peculiaridades ligadas à localização dos imóveis rurais.

Essa importante questão, aliás, sujeita-se ao controle judicial não só para verificar se o "núcleo essencial" do direito de propriedade está sendo preservado, diante de eventuais imposições concretamente inatingíveis, mas principalmente para que não se exijam graus de exploração econômica mais elevados que a própria capacidade de regeneração natural do imóvel rural.


8 – DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE IMÓVEL E O NOVO CÓDIGO CIVIL

Por tudo que foi dito, considerando que a lei há de ser interpretada sob a ótica constitucional da qual retira validade, é justificado fazer-se uma releitura das normas infraconstitucionais acerca da propriedade à luz do princípio da função social. E não há por que excluir desse tratamento hermenêutico sequer antigos institutos de direito privado, cujas origens remontam o tempo do direito romano. Aqueles recepcionados pela Constituição passam a valer ungidos pela função social que condiciona o exercício da titularidade da propriedade. Nas palavras de ARAÚJO SÁ:

A função social, portanto, na concepção dos estudiosos mais acatados, incide no conteúdo do direito de propriedade, impondo-lhe novo conceito. A constituição posiciona a propriedade privada como princípio da ordem econômica, submetendo-a aos ditames da justiça social. É dizer que se legitima a propriedade enquanto cumpre sua função social. É importante destacar que a disciplina constitucional deve orientar a compreensão das normas de direito privado sobre o direito de propriedade, e não o contrário, como costuma ocorrer na prática jurídica nacional. [85]

Nessa perspectiva, pelo novo Código Civil, instituído pela Lei 10.406, de 10/01/2002 (que entrará em vigor um ano após sua publicação, ocorrida em 11/01/2002), a questão da função social da propriedade no Brasil recebe importantes contribuições e institutos.

A começar da seção das disposições preliminares do título relativo à propriedade (Seção I do Capítulo I do Título III do Livro III da Parte Especial), logo após seu respectivo conceito (caput do art. 1.228), o novo Código já cuida de traçar pressupostos à utilização do direito de propriedade. Seu exercício deverá fazer-se "em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas" (§1º do art. 1.228).

Assim, a par de reservar à lei especial o tratamento da ótica ecológica da função social, optou o legislador civil por avançar na positivação do princípio relativo às finalidades econômicas e sociais da propriedade, propiciando ao juiz estabelecer as respectivas regras concretas. Foi agora explicitado o que no Código antigo era princípio geral implícito norteador do direito de propriedade. [86]

Aliás, inova o recente Código ao indicar algumas regras ligadas à finalidade social e econômica da propriedade. Esse o caso da norma do art. 1.229, que apesar de inserir na abrangência da propriedade do solo o espaço aéreo e subsolo, [87] retira a garantia de proteção do direito do proprietário se desenvolvidas atividades por terceiros a "uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse legítimo em impedi-las."

Da mesma forma, o §2º do art. 1.228 consagrou proibição ao abuso do direito de propriedade, ao estabelecer serem "defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem."

Nessas regras, a intenção da lei é clara. A propriedade também é concebida como fato econômico e social. Daí, restam afastadas pretensões emulatórias, meramente egoísticas ou idiossincráticas de seu titular, o qual não pode opor o direito de propriedade tão-só para prejudicar terceiros. [88] É o velho abuso do direito convertido em tipo de descumprimento da função social da propriedade. Portanto, a interpretação do §2º do art. 1.228 deve ser conciliada com disciplina geral do novo Código acerca do abuso de direito (art. 187). É dizer, no estudo da incidência do §2º do art. 1.228, está o hermeneuta autorizado a considerar ilícitos os atos que manifestamente excedam os limites impostos pela finalidade econômica ou social da propriedade, pela boa-fé (objetiva) ou pelos bons costumes. E a constitucionalidade de tais preceitos não desperta controvérsias, na medida em que a função social compõe o próprio direito de propriedade, que aliás não é absoluto - até porque se relaciona com mais de um só sujeito. [89]

Em matéria de aquisição da propriedade imóvel por usucapião, a Lei 10.406/2002 também é inovadora. [90] O Código de 1916 prevê somente "o" usucapião [91] ordinário e o usucapião extraordinário. Os requisitos do primeiro prescindem da boa-fé do possuidor, mas dependem da posse ininterrupta, e sem oposição, por longos 20 anos. Já no extraordinário, exige-se a boa-fé do adquirente, mas o tempo de posse é menor: 10 ou 15 anos, conforme se trata ou não de pessoas que residem no mesmo município.

Na nova sistemática, foram reproduzidas nos artigos 1.239 e 1.240 as hipóteses de usucapião criadas pela CF/88, [92] bem como diminuído o prazo da usucapião ordinária para 15 anos (caput do art. 1.238), salvo se o possuidor houver estabelecido no imóvel moradia habitual ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo, caso em que o prazo cai para 10 anos (par. único do art. 1.238). [93]

Aqui, mais uma vez, sente-se a preocupação com a função social da propriedade. [94] A constituição de moradia habitual ou (note-se o caráter alternativo dos requisitos) a realização de obras ou serviços que remedeiem a inércia do proprietário reduz o prazo da usucapião, ainda que ausente a boa-fé do possuidor.

Com relação ao estabelecimento de "moradia", talvez influenciado pela dicção dos artigos 183 e 191 da CF/88, [95] o novo Código foge de sua própria sistemática, abandonando o emprego das consagradas expressões "domicílio" e "residência" (art. 70 e seguintes). Dessarte, moradia não se confunde com domicílio e tampouco precisa ser a única do possuidor. Porém, o conceito de moradia está historicamente ligado ao de habitação. [96] Logo, apesar de a redução valer para estrangeiros (ressalvada a hipótese do art. 190 da CF/88), é imprópria sua utilização para pessoas jurídicas. Outra, aliás, não é a diretriz dos arts. 183 e 191 mencionados. [98] Além disso, ao exigir que o possuidor tenha estabelecido no imóvel "sua" moradia, a redação do par. único do art. 1.238 não deixa dúvidas quanto ao caráter pessoal e indelegável da habitação, pelo que a redução do prazo não se aplica, e. g., quando, no interstício, tenha havido locação ou arrendamento do imóvel. Por fim, de modo a evitar abusos, o critério da "habitualidade" da moradia deverá ser verificado com parcimônia pelo juiz. "Habitual" não se confunde com "ocasional".

Nada obstante, é possível o aproveitamento do tempo de posse do antecessor (art. 1.243), desde que presentes as mesmas condições exigidas ao atual possuidor. E aqui, ao contrário da regra do art. 9º, §3º, do Estatuto da Cidade, [99] a usucapião do par. único do art. 1.238 não exige que o sucessor da posse já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão do antecessor. Basta que à posse anterior se some tempo suficiente de moradia do sucessor.

De sua vez, não são quaisquer obras ou serviços que possibilitam a redução do prazo da usucapião ordinária. Exige-se o caráter produtivo. Assim, em imóveis urbanos, tratando-se de regra excepcional cuja interpretação se deve fazer restritivamente, é indevida a aplicação da redução do prazo, v. g., em caso de imóvel utilizado como local de simples lazer do possuidor. É bem verdade que o art. 182 da CF/88, ao tratar da política de desenvolvimento urbano, fixa o objetivo de "ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes" (destacou-se). Assim, poder-se-ia argumentar, obras destinadas ao lazer satisfariam a política de garantir "bem-estar" ao possuidor de imóvel urbano. Contudo, além de a preocupação com o bem-estar do habitante dizer respeito à política confiada ao "Poder Público municipal", não se confundindo assim com a usucapião regulamentada por lei federal, não se pode baralhar "caráter produtivo" com "bem-estar do habitante". Não bastasse o fato da barreira linguística [100] – aqui insuperável pelo intérprete –, quando a Constituição quis, de certa forma, aproximar conceitos tão diversos, usou expressões do tipo "adequado aproveitamento", a exemplo do que ocorreu no §4º do mesmo art. 182.

Quanto a imóveis rurais, aplica-se supletivamente a legislação que cuida da verificação da produtividade como requisito para desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária.

Em relação à usucapião extraordinária, o recém-aprovado Código não mais distingue o prazo aquisitivo com base na residência dos sujeitos envolvidos. Unificou-se em 10 anos o período necessário para usucapir. Porém, foi diminuído para 5 anos o prazo "se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada (sic) posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico" (par. do art. 1.242). [101]

Desse modo, ainda que qualificada pela boa-fé na formal aquisição onerosa de imóvel, outra vez a função social impõe redução ao prazo prescricional aquisitivo. Porém, as hipóteses não se assemelham inteiramente às do par. único do art. 1.238. Em primeiro plano, porque a lei não exige habitualidade na morada. [102] Em segundo lugar, no caso da usucapião extraordinária de prazo reduzido, dispensa o Código o "caráter produtivo" das obras e serviços realizados no imóvel, contentando-se com a exteriorização de "investimentos de interesse social e econômico". Logo, amplia-se o leque de possibilidades de incidência da nova regra.

Ao final, considerando a própria característica particular do imóvel a que se refere o art. 1.238, o "interesse social" aqui é entendido de forma ampla, abrangendo não só interesses da coletividade mas também aqueles que, apesar de aparentemente individuais, devam ser incentivados, garantidos ou patrocinados pelo Estado. É dizer, a indeterminação do conceito de "interesse social" será preenchida, caso a caso, à luz de determinadas diretrizes contidas na Constituição e leis vigentes. Daí, v. g., investimentos destinados à "convivência familiar" ou ao "lazer" de crianças e adolescentes alavancam a redução do prazo da usucapião extraordinária, pois o caput do art. 227 da CF/88 contém princípio programático de atuação estatal nesse sentido.

Em matéria de perda da propriedade, contudo, a maior inovação do Código de 2002 diz respeito aos §§4º e 5º do art. 1.228:

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

§ 2º São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.

§ 3º O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.

§ 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.

§ 5º No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.

Assim, por força do §4º, poderá o juiz decretar a perda da propriedade sobre imóvel de extensa área, havendo ininterrupta posse de boa-fé, por mais de cinco anos, por parte de considerável número de pessoas, desde que os possuidores tenham na área realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante. De outro lado, exige o §5º seja fixada justa indenização ao proprietário, condicionando ainda o registro do imóvel em nome dos possuidores somente quando for pago o preço.

Por tais normas, ao condicionar a perda da propriedade a considerações ligadas ao interesse social e econômico relevante, mais uma vez se revela a preocupação do legislador com a função social da propriedade. Contudo, o novo instituto apresenta numerosos problemas.

Em primeiro lugar, não se trata de forma de usucapião, pois a efetiva perda da propriedade deve ser antecedida de indenização equivalente ao "preço" do imóvel. Ademais, ao contrário da típica sentença de cunho declaratório da usucapião, a hipótese em tela dá origem a sentença do tipo "constitutivo", na medida em que o ato judicial só terá eficácia translativa de domínio após o pagamento da indenização.

Não bastasse a exigência de indenização, distingue-se o instituto em tela da usucapião especial coletiva criada pelo art. 10 do Estatuto da Cidade [103] pois esta: (a) é de aplicação restrita às áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados; (b) só se aplica a possuidores de baixa renda; (c) está condicionada à utilização da área para fins de moradia dos possuidores; (d) prescinde da posse de boa-fé; (e) exige a impossibilidade de se identificar os terrenos ocupados por cada possuidor; e (f) não beneficia possuidores que sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.

De outro lado, não se pode confundir o instituto com algum tipo de desapropriação, pois o registro da propriedade se dá em favor de particulares. Assim, falta-lhe a característica mais singela da desapropriação que é a transferência compulsória da propriedade particular (ou pública de entidade de grau inferior para a superior) para o Poder Público ou seus agentes delegados. [104] Ademais, outras objeções podem ser alinhadas: (a) não há procedimento administrativo que o anteceda; (b) não é o Poder Público quem deve suportar a despesa com a indenização; (c) já existe hipótese de interesse público para desapropriação em caso muito semelhante (art. 2º, IV, da Lei 4.132, de 10/09/62); e (d) a antiga tradição brasileira segundo a qual ao juiz não compete decidir sobre a oportunidade e conveniência da desapropriação (art. 9º do DL 3.365, de 21/06/41).

Por fim, se o Código enumerou a desapropriação no §3º do art. 1.228, pode-se dizer que o §4º subseqüente criou outra forma de perda de propriedade pois utilizou a expressão o "proprietário também pode ser privado da coisa...".

Portanto, a regra dos §§4º e 5º do art. 1.228 da nova codificação parece regular caso de alienação compulsória de imóvel, cabendo ao Judiciário avaliar a presença dos pressupostos autorizadores, ligados ao interesse social ou econômico, que impõem o suprimento da vontade do proprietário. [105] É dizer, em prol do melhor atendimento à função social, permitem-se que os possuidores adquiram a propriedade do imóvel, de forma onerosa, mesmo contra a vontade de seu titular.

Nesse prumo, sob pena de não se atingir a vontade da norma, a alienação forçada há de ser considerada forma originária de aquisição da propriedade, tornando o imóvel, uma vez registrado em nome dos possuidores, insuscetível de reivindicação e liberado de quaisquer ônus, [106] cabendo aos eventuais credores somente a sub-rogação no preço pago ao antigo proprietário.

De sua vez, o novo Código não condicionou a vigência do instituto a nenhum óbice além da cláusula geral de vigência de um ano estabelecida no art. 2.044. [107] Assim, entrando em vigor a Lei 10.406/2002, são aplicáveis os §§4º e 5º do art. 1.228. Dessarte, enquanto não editadas regras processuais específicas, deve-se utilizar o procedimento comum ordinário, com certas adaptações ligadas à natureza do novo instituto. [108]

Nada obstante, a ausência de regras processuais é problemática. Caso o preço não seja pago espontaneamente e não possuam os possuidores bem penhoráveis, o proprietário ficará em situação delicada. O fato de o registro da área continuar em seu nome em nada o ajuda se não houver fixação de prazo razoável, na sentença, para que o preço seja pago pelos possuidores. Esse, porém, é problema que foge à temática deste estudo, por merecer estudo aprofundado de direito processual, em especial sobre a questão das sentenças condicionais (CPC, art. 460, par. único).

Quanto à contagem do prazo necessário à alienação forçada, [109] vê-se que a regra do art. 1.243 não se estende aos §§4º e 5º do art. 1.228. Logo, a contrario sensu, afigura-se que o novo Código não deseja a soma do tempo de posse dos antecessores ao dos adquirentes.

Por fim, em caso de imóvel rural, a grande extensão da área deve ser aquilitada pelo juiz com base no art. 4º da Lei 8.629/93. Tratando-se de imóvel urbano, haverá de utilizar-se de algum parâmetro descrito na lei municipal do plano diretor (art. 182, §2º da CF/88). Na omissão do legislativo municipal, deve o juiz se valer da regra do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, mas não pode negar vigência aos §§ 4º e 5º do art. 1.228.

Mas não é tudo. A Lei 10.406/2002 veiculou outras figuras que devem ser interpretadas sem olvidar a íntima ligação que mantêm com o princípio da função social, mesmo tratando-se de institutos de longa data.

Nessa linha, pelos arts. 1.258 e 1.259, a construção que invada solo alheio pode ensejar a aquisição da propriedade da área invadida:

Art. 1.258. Se a construção, feita parcialmente em solo próprio, invade solo alheio em proporção não superior à vigésima parte deste, adquire o construtor de boa-fé a propriedade da parte do solo invadido, se o valor da construção exceder o dessa parte, e responde por indenização que represente, também, o valor da área perdida e a desvalorização da área remanescente.

Parágrafo único. Pagando em décuplo as perdas e danos previstos neste artigo, o construtor de má-fé adquire a propriedade da parte do solo que invadiu, se em proporção à vigésima parte deste e o valor da construção exceder consideravelmente o dessa parte e não se puder demolir a porção invasora sem grave prejuízo para a construção.

Art. 1.259. Se o construtor estiver de boa-fé, e a invasão do solo alheio exceder a vigésima parte deste, adquire a propriedade da parte do solo invadido, e responde por perdas e danos que abranjam o valor que a invasão acrescer à construção, mais o da área perdida e o da desvalorização da área remanescente; se de má-fé, é obrigado a demolir o que nele construiu, pagando as perdas e danos apurados, que serão devidos em dobro.

Dessarte, em vez da antiga sistemática que impunha a simples demolição do prédio invasor, [110] em nítida preocupação com o atendimento à função social da propriedade, é possível manter de pé a construção, com a transferência da propriedade do solo invadido, independentemente da data do esbulho.

Pela nova codificação, a caracterização do abandono do imóvel foi facilitada, com a presunção – absoluta – da intenção de abandonar o imóvel, quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais (§2º do art. 1.276), a menos que a área se encontre na posse de outrem (caput do art. 1.276). [111]

Também as velhas regras acerca do uso nocivo da propriedade foram embebidas da função social. Continua assegurado o direito do proprietário ou possuidor de fazer cessar interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha (art. 1.277 do CC novo), determinando a lei nova, porém, se devam considerar as interferências conforme a natureza da utilização e a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança (par. único do mesmo artigo). [112] No entanto, prevê o novo Código que eventual interesse público - aqui servindo de parâmetro de aferição do atendimento da função social - poderá justificar a perturbação, "caso em que o proprietário ou o possuidor, causador delas, pagará ao vizinho indenização cabal" (art. 1.278, caput). Tudo sem prejuízo a que o vizinho possa exigir a redução ou eliminação das interferências, quando possível (par. do art. 1.278).

Não olvidando o antigo direito de passagem do dono de prédio encravado (art. 1.285), o Código recém-aprovado criou a figura da passagem de cabos, tubulações e outros condutos subterrâneos de utilidade pública, em proveito dos prédios vizinhos (art. 1.286). Outra concessão à função social do imóvel em detrimento da propriedade privada.

Por fim, de certa forma, antecipa o novo Código a regulação da ótica ecológica da função social de propriedade, conforme diretriz contida no §1º do art. 1.228 já comentado.

Nesse prumo, no art. 1.291, impõe-se a vedação de poluição, por parte do possuidor do imóvel superior, das águas indispensáveis às primeiras necessidades da vida dos possuidores dos imóveis inferiores. [113]

Ademais, proibiram-se construções capazes de poluir, ou inutilizar, para uso ordinário, a água do poço, ou nascente alheia, a elas preexistentes (art. 1.309), bem como escavações ou quaisquer obras que tirem ao poço ou à nascente de outrem a água indispensável às suas necessidades normais (art. 1.310).

Contudo, a parte final do artigo 1.291 permite ao possuidor de imóveis superiores a poluição das águas que não forem indispensáveis às primeiras necessidades de vida dos possuidores dos imóveis inferiores, mediante recuperação ou o desvio do curso artificial das águas, se possível, ou o ressarcimento dos danos sofridos. Nessa parte, porém, ao admitir a possibilidade de poluição de águas, o novo Código retrocedeu, já que a disciplina da matéria está melhor tratada na Lei 6.938, de 31/08/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, e respectivos regulamentos. [114] Logo, seria melhor manter a diretriz fixada no art. 1.228, §1º, que remetia a questão à legislação especial.


8 – CONCLUSÕES

1. Superando velhas concepções absolutistas, a idéia da função social alterou a estrutura do direito de propriedade, convertendo-o em poder-dever voltado à destinação do bem a objetivos que, transcendendo o simples interesse do proprietário, venham a satisfazer indiretamente as necessidades dos demais membros da comunidade.

2. Na Constituição de 1988, a função social da propriedade tem status de princípio constitucional que norteia o exercício do direito de propriedade (inciso XXIII do art. 5º e inciso III do art. 170). Nada obstante, a Constituição também materializou regras relativas à função social em artigos específicos (redação original do §1º do art. 156, hoje alterado pela EC n. 29, de 13/09/2000; §2º do art. 182; caput do art. 184; par. único do art. 185; art. 186; e inciso I do §1º do art. 173, na redação dada pela EC n. 19, de 04/06/98).

3. A função social vigora em relação a toda e qualquer propriedade privada, material ou imaterial, individual ou coletiva, urbana ou rural, móvel ou imóvel, cabendo à lei regular a forma com que se considera atingido o princípio em relação a cada tipo de propriedade, conforme a destinação reservada aos respectivos bens.

4. No entanto, ao disciplinar os requisitos de cumprimento da função social, não poderá o legislador desviar-se de sua finalidade normativa, erigindo deveres desarrazoados ou que tornem impraticável o exercício do direito de propriedade. Ademais, a não-satisfação do princípio só haverá de acarretar as conseqüências estabelecidas na própria Constituição.

5. A alteração da estrutura do direito de propriedade promovida pelo princípio da função social justifica a releitura das normas infraconstitucionais acerca da propriedade, mesmo aqueles antigos institutos de direito privado, cujas origens remontam o tempo do direito romano.

6. Nessa perspectiva, o novo Código Civil, instituído pela Lei 10.406/2002, incorpora a preocupação com a observância do princípio da função social em muitos momentos, a começar da própria conceituação do direito de propriedade em geral, cujo exercício deverá pautar-se de acordo com finalidades econômicas, sociais e voltadas à preservação do equilíbrio ecológico, do patrimônio histórico e artístico (§1º do art. 1.228).

7. Além disso, a influência do princípio da função social da propriedade na Lei 10.406/2002 é sentida em várias outras inovações normativas, entre as quais se destacam: (a) a supressão da garantia de proteção do direito do proprietário se desenvolvidas atividades por terceiros a "uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse legítimo em impedi-las" (art. 1.229); (b) a proibição ao abuso do direito de propriedade (§2º do art. 1.228); (c) diminuição do prazo de usucapião considerando a fixação, no imóvel, de moradia habitual ou a realização de obras ou serviços de caráter produtivo (par. único do art. 1.238); (d) a alienação forçada prevista nos §§4º e 5º do art. 1.228; (e) a aquisição de propriedade por meio de construção invasora (arts. 1.258 e 1.259); (f) a facilitação da caracterização do abandono de imóvel foi facilitada; (g) a tolerância ao uso nocivo da propriedade quando existente interesse público que justifique a perturbação (art. 1.278, caput); (g) o direito de passagem de cabos, tubulações e outros condutos subterrâneos de utilidade pública, em proveito dos prédios vizinhos (art. 1.286); (h) a vedação de poluir as águas indispensáveis às primeiras necessidades da vida dos possuidores dos imóveis inferiores (no art. 1.291); (i) a proibição de construções capazes de poluir, ou inutilizar, para uso ordinário, a água do poço, ou nascente alheia, a elas preexistentes (art. 1.309), bem como de escavações ou quaisquer obras que tirem ao poço ou à nascente de outrem a água indispensável às suas necessidades normais (art. 1.310).

8. Nada obstante, tais inovações despertarão problemas sérios, especialmente a alienação forçada, bem assim nem sempre representam progressos, a exemplo do art. 1.309, se comparadas com a legislação preexistente. No entanto, é positivo o saldo deixado pela nova codificação em matéria de regulamentação do princípio da função social.


Notas

01. Mais exatamente, anota EROS ROBERTO GRAU, o pressuposto da função social é a propriedade privada, pois seria pleonasmo falar-se em função social da propriedade coletiva (Os princípios e as regras jurídicas. In ____. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). São Paulo: RT, 1990, p. 244). Ressalte-se que esse comentário de GRAU consta em obra publicada em 1990. Porém, ele próprio já havia mencionado a possibilidade de a função social se referir às empresas estatais, como veio a ser recentemente positivado pela EC n. 19/98, que alterou a redação do art. 173, referindo-se à função social das empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias.

02. A expressão é de EROS ROBERTO GRAU (op. cit., p. 251).

03. Pela didática divisão das limitações da propriedade feita por ARNOLDO WALD (Curso de direito civil brasileiro. Vol. III. Direito das coisas. 10. ed. São Paulo: RT, p. 114 e seguintes), podem-se distinguir três ordens de limitações. As voluntárias formam aquelas criadas por ato dispositivo do próprio proprietário, como a concessão de direitos reais limitados em favor de terceiros (usufruto, servidão, uso), bem assim a instituição de cláusulas resolutórias que eliminam o caráter perpétuo do direito (fideicomisso, venda com reserva de domínio, alienação fiduciária) ou a faculdade de dispor do bem (cláusula de inalienabilidade). As existentes no interesse particular são limitações às quais se enquadram as regras de direito de vizinhança, em caráter suplementar às limitações administrativas. Por fim, as limitações existentes no interesse público, segundo WALD, são repercussão das emanações da soberania estatal representadas pela tributação, a desapropriação e a requisição. Sobre essas últimas, porém, os administrativistas não concordam com tal classificação lato sensu de limitações. Preferem eles distinguir espécies pertencentes ao gênero das restrições do Estado sobre a propriedade privada, entre as quais se incluem as chamadas limitações administrativas propriamente ditas (v. g., DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 8. ed. São Paulo: Atlas, 1997, p. 101/153).

04. Nesse sentido, com fulcro em estudo de CARLOS ARI SUNFELD, veja-se EROS ROBERTO GRAU, op. cit., p. 250-251. Cf. especialmente o artigo de ARAÚJO SÁ, Adonis Callou de. Função social da propriedade e preservação ambiental. Boletim dos Procuradores da República, n. 19, p. 10-18, nov. 1999).

05. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 276.

06. Função social da propriedade e preservação ambiental, Boletim dos Procuradores da República, n. 19, p. 10-18, nov. 1999.

07. Cf. "O papel do Poder Judiciário na efetivação da função social da propriedade". Cadernos Renap – Rede Nacional dos Advogados e Advogadas Populares n. 2, nov. 2001, p. 36.

08. Teoria de derecho agrario, v. 2, p. 472-473, apud BORGES, Paulo Torminn. Institutos básicos do direito agrário. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 8-9.

09. Apud TEPEDINO e SCHREIBER, op. cit., p. 40.

10. Direito agrário brasileiro. 2. ed. Goiânia: AB Editora, 1998, p. 49-53.

11. BORGES, op. cit., p. 5 e seguintes.

12. Apud MARQUES, op. cit., p. 49.

13. MARQUES, op. cit., p. 50.

14. Op. cit., p. 38.

15. Idem.

16. Direito administrativo. 8. ed. São Paulo: Atlas, 1997, p. 104/105.

17. É este o teor do art. 2º do Estatuto da Terra, na parte em que tratou da função social:

"Art. 2° É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.

§ 1° A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente:

a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias;

b) mantém níveis satisfatórios de produtividade;

c) assegura a conservação dos recursos naturais;

d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem."

18. Cf. art. 157, III, da CF/67 e art. 160, III, da CF/69.

19. Op. cit., p. 105/106.

20. Sobre o assunto, cf. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Trad. José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 350-389.

21. Nesse sentido, apoiando-se em ALEXY, DWORKIN e CRISAFULLI, cf. PAULO BONAVIDES, Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 243. Outrossim, v.g.: CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1998, p. 1.086; GRAU, op. cit., p. 122-128; BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 141; BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade de leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p. 153. Contra: JOSÉ AFONSO DA SILVA, para quem a junção de regras e princípios no conceito de normas "exige a conceituação precisa de norma e regras, inclusive para estabelecer a distinção entre ambas, o que os expositores da doutrina não têm feito, deixando assim obscuro seu ensinamento" (Curso..., p. 96).

22. É importante de antemão evidenciar que o conceito adotado de "disposição" é sinônimo do de "preceito", mas se difere daquele de "norma jurídica". Com base em CANOTILHO e VITAL MOREIRA, designar-se-á "por ‘disposição’ ou ‘preceito’ o simples enunciado de um texto ou documento normativo; e por ‘norma’ o significado jurídico-normativo do enunciado lingüístico" (Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991, p. 47). Equivale a dizer, "disposição é a parte de um texto ainda a interpretar" e "norma é parte de um texto já interpretado" (CANOTILHO, Dir. const. e teoria..., p. 1.128).

23. Cf. REVORIO, Franciso Javier Días. Valores superiores e interpretación constitucional. Madrid: Centro de Estudos Políticos y Constitucionales, 1997, p. 101-102.

24. Dir. const. e teoria..., p. 1.177.

25. Cf. REVORIO, op. loc. cit.

26. Curso de direito administrativo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 545-546. Esse conceito de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO também é adotado por BARROSO, op. cit., p. 143 e citado por GRAU, op. cit., p. 97.

27. Op. cit., p. 49.

28. Curso..., p. 96. Tal conceito é válido para o presente estudo, a despeito de seu autor não concordar com a submissão dos princípios ao gênero das normas.

29. Op. cit., p. 257.

30. Segundo CANOTILHO, a distinção entre princípios e regras pode ser apontada pelos seguintes critérios: a) grau de asbtração; os princípios são normas com grau de abstração superior; b) grau de determinalidade: na aplicação do caso concreto, ao contrário dos princípios, as regras são suscetíveis de aplicação direta; c) caráter de fundamentabilidade: os princípios são normas com um papel fundamental no ordenamento jurídico, devido à sua posição de hierárquica no sistema das fontes de direito ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico; d) "proximidade" da idéia do direito: os princípios são "standards" juridicamente vinculantes radicados nas exigências de "justiça" (DWORKIN) ou na "idéia de direito" (LARENZ), enquanto as regras podem ser vinculativas em razão de conteúdo meramente funcional; e) natureza normogenéticas: os princípios são fundamentos que constituem a ratio das regras jurídicas. Cf. Direito constitucional..., p. 1.086-1.087.

31. GRAU, de sua vez, utilizou-se de vários autores, com aparente predileção pelas lições de RONALD DWORKIN.

32. Apud BONAVIDES, op. cit., p. 253. No mesmo sentido, GRAU, op. cit., p. 107.

33. Contrariamente, ALEXY admite obtemperamento ao caráter definitivo das regras exposto por DWORKIN. Diz o mestre alemão que, em razão da decisão de um caso concreto, é possível introduzir numa regra alguma cláusula de exceção a partir da qual aquela perde seu caráter definitivo para a decisão. Afirma ainda que a cláusula de exceção pode ser criada com base num princípio, daí por que, ao contrário do que pretende DWORKIN, existiriam cláusulas de exceção que não poderiam sequer ser teoricamente enumeradas, conferindo assim às regras certo caráter prima facie (ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. 2. reimp. Madrid: Centro de Estudos Políticos y Constitucionales, 2001, p. 99-100). No entanto, como ficará melhor exposto, tal concepção de ALEXY gera problemas no estudo da questão relativa ao afastamento ou não da regra quando há de prevalecer, contra o princípio que lhe dá base, um princípio opositor.

34. É bem verdade que, para atingir a abstração e generalidade desejadas, as regras jurídicas devem ser formuladas em linguagem textual aberta, mas nem por isso é acertado dizer que estejam elas sujeitas a exceções que não podem ser previamente especificadas. De efeito, é justamente em razão de sua "textura aberta" que se admite que uma regra se aplique a esta e não àquela situação. Mesmo quando a regra não seja aplicada em face de situações futuras, pois não contempladas em seu enunciado, não há que se falar em exceção, e sim em não incidência da regra. Cf. GRAU, op. loc. cit.

35. A idéia de conformação dos princípios como mandamentos de otimização (Optimierungsgebot) é de ALEXY (Teoria..., cit.) e parece ser também adotada por CANOTILHO, que trata os princípios como "normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fácticos e jurídicos" (Direito constitucional e teoria..., p. 1.087). Mas nem por isso a idéia passa incólume pelo crivo crítico da doutrina, como demonstra INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO, ao dizer que o raciocínio de ALEXY não é utilizável "somente na aplicação dos princípios, mas também na concretização de todo e qualquer standard normativo" (COELHO, Inocêncio Mártires. Elementos de teoria da Constituição e de interpretação constitucional. In ____; BRANCO. Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 76op. cit., p. 51).

36. Teoría..., p. 99. CANOTILHO se vale de conceito praticamente idêntico. Para ele, princípios "são normas que exigem a realização de algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fácticas e jurídicas." (Op. cit., p. 1.177)

37. ALEXY, op. loc. cit.

38. ALEXY, idem.

39. Os princípios..., p. 113.

40. Os conceitos de concretização e densificação de uma norma são aqueles mesmos expostos por CANOTILHO (Dir. constitucional e teoria..., p. 1.127).

41. Comentando os princípios constitucionais, é digna de nota a delimitação de um sistema interno de princípios e regras constitucionais exposto por CANOTILHO. Para o autor, também os princípios constitucionais respeitam certa graduação, conforme os diferentes graus de concretização (densidade semântica) que possuem. Dessa forma, CANOTILHO sugere a articulação de esquema progressivo de densificação dos princípios constitucionais (princípios estruturantes princípios constitucionais gerais princípios constitucionais especiais), até a densificação feita pela atuação (→) das regras constitucionais, formando assim um sistema de "esclarecimento recíproco". CANOTILHO diz ainda que os princípios estruturantes não são densificados apenas por esses princípios e regras constitucionais. Assevera que o processo de concretização acontece, principalmente, pelas regras feitas pelo legislador (concretização legislativa) e pela aplicação do direito pelos tribunais (concretização judicial), culminando com a descoberta da "norma de decisão" do caso jurídico-constitucional, ponta final do processo de concretização do princípio. A despeito disso, porém, para CANOTILHO, todas as normas originais de uma constituição têm o mesmo valor (Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 70-71), sendo improcedente a eleição de normas constitucionais "fortes" e "fracas", bem como a doutrina da existência de normas constitucionais originais inconstitucionais.

42. CANOTILHO. Dir. const. e teoria..., p. 1.127.

43. O choque pode ser evitado com a introdução de cláusula de exceção em uma das regras, prevendo-se hipótese de aplicação da outra. Nesse sentido, cf. ALEXY, op. cit., p. 88.

44. Por todos, confira-se a exposição de NORBERTO BOBBIO (Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Trad. Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Brasília: UnB, 1999, p. 91-110) acerca da antinomia jurídica, cujos critérios de resolução foram em três resumidos (lex superior derogat inferiori, lex specialis derogat generalis e lex posterior derogat priori).

45. Op. cit., p. 251.

46. GRAU, op. cit., p. 134. Aqui, portanto, segue-se caminho diverso do adotado para ALEXY, segundo o qual, diferentemente do princípio, uma regra não é deixada de lado (soslayada, na tradução espanhola) quando, num caso concreto que se deve decidir, o princípio oposto tenha maior peso que o princípio sobre o qual se apóia a regra (op. cit., p. 100). Afigura-se que o equívoco de ALEXY é reflexo de sua tentativa de infirmar a tese do caráter definitivo das regras exposto por DWORKIN, o que deu margem à afirmação de ser possível introduzir numa regra cláusula de exceção baseada em determinado princípio contrário, daí por que a regra perderia seu caráter definitivo para a decisão do caso concreto. Foi em razão disso que ALEXY teve de aceitar ficasse de pé uma regra, a despeito de prevalecer, no caso, o princípio oposto.

47. O que não impede, porém, como leciona CANOTILHO, que a própria Constituição já alinhe certas regras que densifiquem o princípio da função social da propriedade.

48. Cf. SILVA, Curso..., p. 285.

49. Aqui, porém, a utilização do princípio da função social se desviou daquela empregada pelo Constituinte originário, pois se refere à função social das empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias.

50. Op. cit., p. 247.

51. Nesse sentido: BENEDITO FERREIRA MARQUES, para quem o princípio incide "sobre qualquer bem, corpóreo ou incorpóreo" (op. cit., p. 50). Ademais, nas palavras de JOSÉ AFONSO DA SILVA, a função social atinge "a propriedade em geral" (Curso..., p. 284), daí por que se estende "a todo e qualquer tipo de propriedade" (ibidem, p. 780).

52. SILVA, Curso..., p. 277. No mesmo sentido, ARAÚJO SÁ, op. loc. cit.

53. Exceção é o artigo 186 da CF/88, que, ao cuidar da função social da propriedade rural, acabou por reduzir a margem regulatória do legislador, ao estabelecer os requisitos previstos nos incisos I a IV.

54. Sobre o assunto, afirma CELSO RIBEIRO BASTOS haver "uma perfeita sintonia entre a fruição individual do bem e o atingimento da sua função social." (Curso de direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 210).

55. Op. cit., p. 249.

56. BASTOS, op. cit., p. 210.

57. No caso, por exemplo, da propriedade sobre bens de consumo e de uso pessoal, anota JOSÉ AFONSO DA SILVA que, em razão do princípio da função social, justifica-se até "a intervenção do Estado no domínio da sua distribuição, de modo a propiciar a realização ampla da função social." (Curso..., p. 779.)

58. Op. cit., p. 276.

59. Op. cit., p. 48-49.

60. Tal norma foi recentemente regulamentada pela Lei 10.257/2001, cujo projeto aprovado pelo Congresso acabou por consagrar (no Capítulo II da Seção II, que antecede os artigos 5º a 6º), ao lado do parcelamento e da edificação compulsórios, a figura da utilização compulsória, extrapolando assim a permissão constitucional contida no §4º, inciso I, do art. 182, motivo pelo qual foi vetado o inciso II do §2º do art. 5º do Estatuto da Cidade, ao fundamento de que "em se tratando de restrição a direito fundamental – direito de propriedade –, não é admissível a ampliação legislativa para abarcar os indivíduos que não foram contemplados pela norma constitucional" (Mensagem n. 730, de 10/07/2001, DOU de 11/07/2001, p. 5).

61. Norma disciplinada pela Lei 10.257/2001, artigo 7º.

62. Confira-se a regulamentação do art. 8º da Lei 10.257/2001.

63. Regulamentado pela Lei 8.257, de 26/11/91. Ainda sobre o assunto, foi oposto veto ao §8º do art. 8º do projeto que deu origem à Lei 10.409, de 11/01/2002 (cf. DOU de 14/01/2002). O dispositivo vetado excepcionava a expropriação se provada a boa-fé do proprietário que não estivesse na posse direta da gleba onde encontrado plantio ilegal.

64. Op. cit., p. 286.

65. Sobre o assunto do "núcleo essencial" dos direitos fundamentais, por todos, cf. BRANCO. Paulo Gustavo Gonet. Aspectos da teoria geral dos direitos fundamentais. In ____; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 127.

66. Entendendo assim: SILVA, Curso..., p. 778.

67. Nesse sentido, v. g., ALCIR GURSEN DE MIRANDA, citado por FERREIRA MARQUES (op. cit., p. 52) e LIMA. Getúlio Targino. A posse agrária sobre bem imóvel: implicações no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1992.

68. MARQUES, op. cit., p. 53.

69. Ap. Cível n. 196005284/Santo Ângelo, Tribunal de Alçada do RS, 4ª Câmara Cível, Rel. Juiz WELLINGTON PACHECO BARROS, j. 11/04/96.

70. AGI n. 70001037027, 18ª Câmara Cível, TJRS, Rel. Des. ILTON CARLOS DELLANDREA, julgado em 29/06/2000. No mesmo sentido: "Função social da propriedade não significa ensejar-se a invasão, a quem assim entender. Respeito à ordem jurídica, como inabalável valor para a coexistência civilizada." (APC n. 598450419, 20ª Câmara Cível, TJRS, Des. ARMÍNIO JOSÉ ABREU LIMA DA ROSA, julgado em 26/10/1999.)

71. A Lei 10.257/2001, regulamentando os artigos 182 e 183 da Constituição, cuida do Estatuto da Cidade.

72. Acerca da teoria dos poderes implícitos, segundo CARLOS MAXIMILIANO, "quando a Constituição confere poder geral ou prescreve dever franqueia também, implicitamente, todos os poderes particulares, necessários para o exercício de um, ou cumprimento do outro" (Hermenêutica e aplicação do direito. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 312). Para maiores detalhes na doutrina pátria, cf. BONAVIDES, Curso..., p. 430-434.

73. Esse dispositivo, atualmente, encontra-se com a redação alterada por força da MP 2.183-56, de 24/08/2001, a qual, porém, não alterou substancialmente esse aspecto da questão.

74. De qualquer modo, está atualmente em vigor a MP 2.183-56/2001, cujo artigo 2º promove alteração na redação do art. 6º do Estatuto da Terra, com a exata finalidade de deferir ao INCRA competência para, mediante convênio, delegar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios o cadastramento, as vistorias e avaliações de propriedades rurais situadas no seu território, bem como outras atribuições relativas à execução do Programa Nacional de Reforma Agrária, observados os parâmetros e critérios estabelecidos nas leis e nos atos normativos federais.

75. O conceito de módulo fiscal é aquele decorrente da alteração do texto do art. 50 do Estatuto da Terra, por força da Lei 6.746, de 10/12/79.

76. Sobre a definição de imóvel rural, cf. art. 4º, inciso I, da Lei 8.629/93. Porém, deve-se atentar à grande celeuma apontada pelos jus-agraristas, que remontam a importância do critério da destinação da gleba para fins de sua categorização como imóvel rural, o que encontra óbices em razão da definição contida nos artigos 29 e 32 do Código Tributário Nacional. Acerca do assunto, cf. o julgado do STF no RE 93.850/MG, Pleno, Min. MOREIRA ALVES, RTJ 105/194 e especialmente a ótima exposição de MARQUES, op. cit., p. 37-44.

77. Cf. SILVA, Curso..., p. 786.

78. Op. cit., p. 212.

79. Nesse sentido, citando trabalho de ROSALINA PINTO DA COSTA RODRIGUES PEREIRA, cf. MARQUES, op. cit., p. 56-57.

80. Cf. ARAÚJO SÁ, Função social..., cit.

81. STF, Pleno, MS 22.328/PR, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, DJU de 19/09/97, p. 45.583.

82. Eis o teor dos dispositivos inseridos no art. 2º da Lei 8.629/93:

"§ 6º O imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações.

§ 7º Será excluído do Programa de Reforma Agrária do Governo Federal quem, já estando beneficiado com lote em Projeto de Assentamento, ou sendo pretendente desse benefício na condição de inscrito em processo de cadastramento e seleção de candidatos ao acesso à terra, for efetivamente identificado como participante direto ou indireto em conflito fundiário que se caracterize por invasão ou esbulho de imóvel rural de domínio público ou privado em fase de processo administrativo de vistoria ou avaliação para fins de reforma agrária, ou que esteja sendo objeto de processo judicial de desapropriação em vias de imissão de posse ao ente expropriante; e bem assim quem for efetivamente identificado como participante de invasão de prédio público, de atos de ameaça, seqüestro ou manutenção de servidores públicos e outros cidadãos em cárcere privado, ou de quaisquer outros atos de violência real ou pessoal praticados em tais situações.

§ 8º A entidade, a organização, a pessoa jurídica, o movimento ou a sociedade de fato que, de qualquer forma, direta ou indiretamente, auxiliar, colaborar, incentivar, incitar, induzir ou participar de invasão de imóveis rurais ou de bens públicos, ou em conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo, não receberá, a qualquer título, recursos públicos."

83. Sobre o assunto, não custa repetir, veja-se o excelente artigo, já citado, do Procurador da República no Ceará ARAÚJO SÁ, que traça a ligação entre o cumprimento da função social e a proteção do meio ambiente.

84. Comentando a questão da "razoabilidade interna", cf. BARROSO, Luís Roberto. O princípio da razoabilidade e da proporcionalidade no direito constitucional, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, n. 23, p. 65-78, abr./jun. 1998.

85. Op. loc. cit.

86. Tanto já era princípio geral que WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO sustentava a existência de um interesse social que cerceava o proprietário que quisesse se opor à passagem de cabos empregados na tração do bonde aéreo do Pão de Açúcar ou à perfuração do solo para instalação do metrô (cf. Curso de direito civil. 27. ed. São Paulo: Saraiva. 3. v., p. 93).

87. Sem modificar, porém, a regulação especial das jazidas, minas e demais recursos minerais, conforme dispõe o art. 1.230.

88. Tais comportamentos proibidos ocorrem com freqüência em condomínios edilícios, onde é maior a interação entre vizinhos. Exemplo é a intolerância frente ao uso de pequena parcela do espaço de garagem, inútil a seu proprietário.

89. Esse é um dos argumentos utilizados por ROBERT ALEXY para negar a existência de princípios absolutos (Teoria..., p. 106).

90. Em matéria de usucapião da propriedade móvel, manteve-se, no substancial, o mesmo regime do Código de 1916.

91. Curiosamente, o novo Código trata usucapião no feminino, enquanto o de 1916 o fazia no masculino. Corretas as duas utilizações, conforme Dicionário Houaiss da língua portuguesa (Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 2.815), ainda que o Aurélio só aceite a forma feminina (14. reimp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [ca 1986], p. 1.434), não havia motivos para se alterar o tratamento legislativo.

92. Não olvidar a proibição de usucapião em imóveis públicos (arts. 183, §3º, e 191, par. único, da CF/88).

93. Atentar, porém, para o art. 2.029, que manda acrescer dois anos à contagem do prazo par. único dos arts. 1.238 e 1.242, até que se completem dois anos da entrada em vigor do novo Código.

94. Nesse sentido, CELSO RIBEIRO BASTOS enxerga nas previsões de usucapião contidas nos arts. 191 e 183 da CF/88 afinidade com o instituto da função social da propriedade (Comentários..., 7º vol, 1990, p. 336/337).

95. Omissa a previsão do usucapião nas Cartas de 1967 e 1969, o art. 156, §3º, da CF/46, o art. 148 da CF/37 e o art. 125 da CF/37 também falavam em "morada" do possuidor.

96. Cf. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 1.958.

97. Interpretando assim o art. 183 da CF/88, cf. CELSO RIBEIRO BASTOS, Comentários..., 7º vol, 1990, p. 228, rodapé).

98. Diz o art. 9º do Estatuto, ao tratar da usucapião especial de imóvel urbano:

"Art. 9º Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1º O título de domínio será conferido ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

§ 2º O direito de que trata este artigo não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

§ 3º Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, a posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão."

99. Sobre o sentido lingüisticamente possível como limite objetivo da interpretação, cf. COELHO, Elementos..., p. 76.

100. Conferir o art. 2.029, que manda acrescer dois anos à contagem do prazo par. único dos arts. 1.238 e 1.242, até completar-se dois anos da entrada em vigor do novo Código.

101. Motivo a mais para reforçar a desejada cautela do juiz na verificação da hipótese do par. único do art. 1.238.

102. Confira-se o teor do dispositivo citado:

"Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1º O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.

§ 2º A usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelo juiz, mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de registro de imóveis.

§ 3º Na sentença, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas.

§ 4º O condomínio especial constituído é indivisível, não sendo passível de extinção, salvo deliberação favorável tomada por, no mínimo, dois terços dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio.

§ 5º As deliberações relativas à administração do condomínio especial serão tomadas por maioria de votos dos condôminos presentes, obrigando também os demais, discordantes ou ausentes."

103. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 19. ed. atualiz. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 508.

104. De se ressaltar que o velho Código também previa casos de alienação forçada, como no art. 632 (alienação de coisa indivisível em condomínio) e no art. 237 (suprimento da outorga uxória), hipóteses essas reguladas no novo Código nos artigos 1.322 e 1.648, respectivamente.

105. Por isso, deve o juiz condicionar o pagamento do preço ao pagamento dos tributos eventualmente incidentes sobre o imóvel.

106. É bem verdade que o novo Código, até dois anos após sua entrada em vigor, manda acrescer dois anos à contagem do prazo do §4º do art. 1.228, conforme art. 2.030, c/c art. 2.029. Mas isso não se confunde com condição de vigência.

107. Não é intenção deste trabalho o estudo dos aspectos processuais que subjazem o tema. Mas, à guisa de simples visão superficial, a petição inicial deverá fazer-se acompanhada da planta do imóvel, com memorial descritivo das benfeitorias e com a identificação de todos os co-possuidores (legitimados ativos necessários). Exige-se a citação dos confrontantes, a exemplo do art. 942 do CPC. Além disso, há interesse público na intervenção do órgão do Ministério Público (art. 82, III, do CPC), ainda que se trate de imóvel urbano. Obrigatória também a intimação dos titulares de direito real sobre o imóvel e dos representantes da Fazenda Pública dos três níveis da Federação, pois a alienação forçada é forma de aquisição originária da propriedade.

108. Não olvidar a regra de transição dos arts. 2.030 e art. 2.029, que acresce dois anos à contagem do prazo do §4º do art. 1.228, no período de até dois anos após a entrada em vigor do novo Código.

109. Com exceção, óbvio, das hipóteses em que o construtor era beneficiário da usucapião.

110. Outra novidade diz respeito à entidade para qual será revertida a propriedade dos imóveis rurais abandonados. O art. 589, §2º, do Código antigo (com redação da Lei 6.969, de 10/12/81), destinava os imóveis objeto de abandono ao Estado, Território ou ao Distrito Federal onde se encontrassem, não importando fossem urbanos ou rurais; o novo Código, mais consentâneo com a competência constitucional relativa à desapropriação para fins de reforma agrária, transfere à União a propriedade dos imóveis rurais.

111. A jurisprudência já se inclinava pela averiguação do grau de tolerabilidade do uso incômodo da propriedade em face dos usos e costumes locais (cf. fontes citadas por DINIZ. Maria Helena. Código Civil anotado. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 426).

112. A matéria já era regulada pelo Código de Águas (Decreto 24.643, de 10/07/34), que revogou implicitamente os artigos 563 a 568 do antigo Código Civil. Porém, ficou mais clara a proteção às águas destinadas às primeiras necessidades dos imóveis inferiores. É que a disciplina do Decreto 24.643/34, numa leitura desavisada, admitia, em certas condições, a poluição de águas destinadas a interesses relevantes à agricultura ou indústria (art. 111). Contudo, se analisado seu art. 71, §3º, percebe-se que o Código de Águas dava preferência, sobre quaisquer outros, ao "uso das águas para as primeiras necessidades da vida."

113. Sobre crimes especialmente relacionados com a poluição das águas, cf. arts. 33, 53, I, e 54 da Lei 9.605, de 12/02/98.


Autor

  • Juliano Taveira Bernardes

    Juliano Taveira Bernardes

    juiz federal em Goiás, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás, mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília (UnB), ex-membro da magistratura e do Ministério Público do Estado de Goiás, membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC)

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERNARDES, Juliano Taveira. Da função social da propriedade imóvel. Estudos do princípio constitucional e de sua regulamentação pelo novo Código Civil brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 151, 4 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4573. Acesso em: 25 abr. 2024.