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Judicialização da saúde: a qual ente público cabe o cumprimento de decisões judiciais referentes ao aspecto prestacional do serviço público de saúde?

Judicialização da saúde: a qual ente público cabe o cumprimento de decisões judiciais referentes ao aspecto prestacional do serviço público de saúde?

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Trata-se de artigo jurídico que aborda o tema das ações judiciais onde há condenação da União a efetivamente realizar cirurgia, internação ou exame clínico, o que dificulta e, inclusive, inviabiliza o cumprimento da decisão judicial.

INTRODUÇÃO

Trata-se de artigo jurídico que aborda o tema das ações judiciais onde há condenação da União a efetivamente realizar cirurgia, internação ou exame clínico, o que, conforme se exporá, dificulta e, inclusive, inviabiliza o cumprimento da decisão judicial diante da inexistência de hospitais geridos e subordinados à União (Ministério da Saúde).

Espera-se munir as mais diversas instituições como, por exemplo, Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública, todas diretamente envolvidas no fenômeno da “judicialização da saúde”, com o conhecimento necessário para assegurar que, no desempenho das respectivas atribuições, tenham uma atuação consciente, crítica e, sobretudo, voltada para o fortalecimento e aperfeiçoamento do Sistema Único de Saúde, em cumprimento aos comandos constitucionais.

FUNDAMENTAÇÃO

Cabe destacar, como pedra de toque, que a União não tem como proceder materialmente à internação, realização de cirurgia e ao tratamento de pacientes, uma vez que os hospitais da rede pública são geridos e administrados segundo a rede de saúde credenciada pelos Estados e Municípios.

Neste sentido vale pontuar que a Lei nº 8080/90, disciplinadora das condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, bem como da organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, prevê que a execução dos serviços de saúde compete originariamente aos Municípios, consoante se depreende do inciso I do seu art. 18, que se transcreve:

Art. 18. À direção municipal do Sistema de Saúde (SUS) compete: I - planejar, organizar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde e gerir e executar os serviços públicos de saúde; (...)

A mencionada lei prevê, ainda, que cabe aos estados executar supletivamente as ações e serviços de saúde, conforme se verifica do inciso III do seu art. 17:

Art. 17. À direção estadual do Sistema Único de Saúde (SUS) compete:

I - promover a descentralização para os Municípios dos serviços e das ações de saúde;

II - acompanhar, controlar e avaliar as redes hierarquizadas do Sistema Único de Saúde (SUS);

III - prestar apoio técnico e financeiro aos Municípios e executar supletivamente ações e serviços de saúde; (...)

Nota-se, portanto, que a obrigação de prestar materialmente serviços de saúde constitui-se atribuição legal dos Estados e Municípios, devendo-se ressaltar que à União competem às atribuições previstas no art. 16 da Lei nº 8080/90, dentre as quais se inclui a formulação de Políticas Públicas relacionadas ao Sistema Único de Saúde, nos seus diversos aspectos, de forma ampla e genérica, assim como o repasse de dotações do orçamento da Seguridade Social destinadas ao financiamento do Sistema Único de Saúde, nos termos do art. 31 da multicitada lei. Nesse particular, veja-se o que dispõem os referidos dispositivos:

Art. 16. A direção nacional do Sistema Único da Saúde (SUS) compete:

I - formular, avaliar e apoiar políticas de alimentação e nutrição;

II - participar na formulação e na implementação das políticas:

a) de controle das agressões ao meio ambiente;

b) de saneamento básico; e

c) relativas às condições e aos ambientes de trabalho;

III - definir e coordenar os sistemas:

a) de redes integradas de assistência de alta complexidade;

b) de rede de laboratórios de saúde pública;

c) de vigilância epidemiológica; e

d) vigilância sanitária;

IV - participar da definição de normas e mecanismos de controle, com órgão afins, de agravo sobre o meio ambiente ou dele decorrentes, que tenham repercussão na saúde humana;

V - participar da definição de normas, critérios e padrões para o controle das condições e dos ambientes de trabalho e coordenar a política de saúde do trabalhador;

VI - coordenar e participar na execução das ações de vigilância epidemiológica;

VII - estabelecer normas e executar a vigilância sanitária de portos, aeroportos e fronteiras, podendo a execução ser complementada pelos Estados, Distrito Federal e Municípios;

VIII - estabelecer critérios, parâmetros e métodos para o controle da qualidade sanitária de produtos, substâncias e serviços de consumo e uso humano;

IX - promover articulação com os órgãos educacionais e de fiscalização do exercício profissional, bem como com entidades representativas de formação de recursos humanos na área de saúde;

X - formular, avaliar, elaborar normas e participar na execução da política nacional e produção de insumos e equipamentos para a saúde, em articulação com os demais órgãos governamentais;

XI - identificar os serviços estaduais e municipais de referência nacional para o estabelecimento de padrões técnicos de assistência à saúde;

XII - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde;

XIII - prestar cooperação técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o aperfeiçoamento da sua atuação institucional;

XIV - elaborar normas para regular as relações entre o Sistema Único de Saúde (SUS) e os serviços privados contratados de assistência à saúde;

XV - promover a descentralização para as Unidades Federadas e para os Municípios, dos serviços e ações de saúde, respectivamente, de abrangência estadual e municipal;

XVI - normatizar e coordenar nacionalmente o Sistema Nacional de Sangue, Componentes e Derivados;

XVII - acompanhar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde, respeitadas as competências estaduais e municipais;

XVIII - elaborar o Planejamento Estratégico Nacional no âmbito do SUS, em cooperação técnica com os Estados, Municípios e Distrito Federal;

XIX - estabelecer o Sistema Nacional de Auditoria e coordenar a avaliação técnica e financeira do SUS em todo o Território Nacional em cooperação técnica com os Estados, Municípios e Distrito Federal. (Vide Decreto nº 1.651, de 1995)

Parágrafo único. A União poderá executar ações de vigilância epidemiológica e sanitária em circunstâncias especiais, como na ocorrência de agravos inusitados à saúde, que possam escapar do controle da direção estadual do Sistema Único de Saúde (SUS) ou que representem risco de disseminação nacional.

Art. 31. O orçamento da seguridade social destinará ao Sistema Único de Saúde (SUS) de acordo com a receita estimada, os recursos necessários à realização de suas finalidades, previstos em proposta elaborada pela sua direção nacional, com a participação dos órgãos da Previdência Social e da Assistência Social, tendo em vista as metas e prioridades estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias.

Neste contexto, é importante pontuar que a obrigação da União em relação aos procedimentos de internação, cirurgia e exame cinge-se ao co-financiamento de seu custo, bem como a fiscalização e avaliação técnica de sua qualidade, conforme se constata da regra supra transcrita. Ou seja, a operacionalização dos procedimentos em análise não são realizados/executados pelo Ministério da Saúde. A Secretaria de Atenção à Saúde deste Ministério, por meio da Nota Técnica n° 1007/2012 confirma a afirmação acima, conforme se observa, in litteris:

Como sabido, o SUS tem como premissas básicas a descentralização político-administrativa, a universalização de acesso e a integralidade e igualdade da assistência.

Neste caso, a responsabilidade do Ministério da Saúde se traduz em ações para definir normas nacionais, tendo um papel normativo, provedor de recursos da sua competência; regulador do Sistema; definidor do tabelamento dos procedimentos ofertados à população pelo SUS; elaborador de políticas públicas; e gerenciador de sistemas nacionais de informações, estabelecendo estratégias que possibilitem o acesso mais equânime e diminuam as diferenças regionais.

O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas Federais, Estaduais e Municipais, da administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo poder público, integram o Sistema Único de Saúde, que tem como princípios básicos a descentralização com direção única de cada governo, a equidade, a universalidade de acesso com justiça, a integralidade da assistência, hierarquização, diretrizes de descentralização e a participação social, entre outros.

Uma das diretrizes que o norteia é a Regionalização que orienta a descentralização das ações e serviços de saúde e os processos de negociação e pactuação entre os gestores. Com isto foram redefinidos os papéis dos três níveis de direção do SUS (Federal, Estadual, e Municipal).

Nesse diapasão, a Lei Complementar nº 141/2012 institui o valor mínimo e normas de cálculo do montante mínimo a ser aplicado, anualmente, pela União em ações e serviços públicos de saúde; os percentuais mínimos do produto da arrecadação de impostos a serem aplicados anualmente pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios em ações e serviços públicos de saúde; os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e dos Estados destinados aos seus respectivos Municípios, visando à progressiva redução das disparidades regionais e; as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal.

A referida Lei Complementar elenca, no seu art. 3º, todas as despesas que serão consideradas como ações e serviços públicos de saúde. Destaca-se o inciso II, que dispõe como serviço público de saúde a atenção integral e universal à saúde em todos os níveis de complexidade, incluindo assistência terapêutica e recuperação de deficiências nutricionais.

A portaria GM/MS n° 204/2007 do Ministério da Saúde, que não foi inteiramente revogada pela LC 141/2012, uma vez que há dispositivos compatíveis com a nova legislação, dispõe que os recursos federais são transferidos, do fundo federal para o fundo estadual e para o fundo municipal, para execução de ações e procedimentos de média e alta complexidade (Teto MAC), na qual está incluída a realização de exame, internação e cirurgia. Valioso transcrever os Blocos de financiamento existentes, sendo eles:

I-Atenção Básica; Atenção Básica; Atenção Básica;

II-Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar; Hospitalar;

III-Vigilância em Saúde; Vigilância em Saúde; Vigilância em Saúde;

IV-Assistência Farmacêutica; Assistência Farmacêutica; Assistência Farmacêutica;

V-Gestão do SUS; e Gestão do SUS; e Gestão do SUS; e

VI-Investimento na Rede de Serviços de Saúde. Investimento na Rede de Serviços de Saúde. Investimento na Rede de Serviços de Saúde.

Deste modo, com base na referida portaria (GM/MS n°204/2007), os pagamentos dos custos com os procedimentos hospitalares de média/alta complexidade serão efetivados com o dinheiro do bloco de financiamento da atenção de média e alta complexidade.

A União repassa regularmente ao Estado e ao Município os recursos federais destinados a custear os procedimentos de média e alta complexidade.

O rateio dos valores repassados do fundo federal para o estadual e o municipal observará as necessidades de saúde da população, as dimensões epidemiológica, demográfica, socioeconômica, espacial e de capacidade de oferta de ações e de serviços de saúde e, ainda, o disposto no art. 35 da Lei nº 8.080/1990, de forma a atender os objetivos do inciso II do § 3o do art. 198 da Constituição Federal, conforme dispõe o art. 17 da LC. 141/2012.

Importante frisar que o valor repassado é suficiente para financiar o referido bloco de atenção, sendo definido a partir das características de cada local e pactuado nas Comissões Intergestoras Tripartite (CIT) e Bipartite (CIB), havendo a possibilidade de interposição de recurso por parte dos municípios ou dos estados quando discordarem dos valores repassados, conforme disciplina o artigo 15 da Portaria nº 699/2006 do Ministério da Saúde.

Consigne-se que os demais Entes Federados, estados e municípios, devem compor o financiamento de todas as ações, conforme determina a emenda constitucional n°29 e disciplina o artigo 2º da Lei Complementar nº 141/2012, cujo teor é o seguinte:

Art. 2º Para fins de apuração da aplicação dos recursos mínimos estabelecidos nesta Lei Complementar, considerar-se-ão como despesas com ações e serviços públicos de saúde aquelas voltadas para a promoção, proteção e recuperação da saúde que atendam, simultaneamente, aos princípios estatuídos no art. 7o da Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, e às seguintes diretrizes:

I - sejam destinadas às ações e serviços públicos de saúde de acesso universal, igualitário e gratuito;

II - estejam em conformidade com objetivos e metas explicitados nos Planos de Saúde de cada ente da Federação; e

III - sejam de responsabilidade específica do setor da saúde, não se aplicando a despesas relacionadas a outras políticas públicas que atuam sobre determinantes sociais e econômicos, ainda que incidentes sobre as condições de saúde da população.

Parágrafo único. Além de atender aos critérios estabelecidos no caput, as despesas com ações e serviços públicos de saúde realizadas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios deverão ser financiadas com recursos movimentados por meio dos respectivos fundos de saúde.

Com base na normatização existente, o papel da União é de definir políticas públicas e repassar regularmente os valores definidos no limite financeiro da média e alta complexidade ambulatorial e hospitalar aos Estados e Municípios.

Os Municípios e os Estados, a partir de sua livre e espontânea aquiescência, têm por responsabilidade gerir o dinheiro e os estabelecimentos de saúde públicos ou conveniados com o SUS. Portanto, é o ente municipal e/ou estadual que credencia ou não determinado estabelecimento de saúde em seus limites territoriais no SUS, que escolhe qual estabelecimento irá ou não fazer determinado procedimento.

Para o Bloco de Atenção da Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar, que inclui as cirurgias, internações e exames, as Secretarias Municipais e Estaduais de Saúde devem estabelecer um planejamento regional hierarquizado para formar a rede Estadual e/ou Regional de Atenção em Média/Alta Complexidade, com a finalidade de prestar assistência à população local que necessite ser submetida aos procedimentos classificados como de Média/Alta Complexidade.

Assim, cabe aos Estados e aos Municípios a formação de sua Rede de Atenção, isto é, implementar os procedimentos em referência para que a população local tenha a assistência. Se o Estado ou Município não gerenciam bem a rede de atenção de média e alta complexidade a responsabilidade é exclusivamente do ente faltante, uma vez que o dinheiro foi repassado e cabia a esses entes fazerem a gerência.

É importante ressaltar que, com a promulgação da Lei Complementar nº 141/2012, que disciplina a transferência de recursos da União/Ministério da Saúde para Estados e Municípios, além dos percentuais mínimos que devem ser aplicados pelos Estados/Municípios nas ações e serviços públicos de saúde, não há mais que se falar na constitucionalidade ou não das Portarias do Ministério da Saúde que tratavam do assunto, ainda que fossem de constitucionalidade clara e evidente.

Portanto, os Estados e Municípios não podem mais se imiscuir do dever de cumprir a aplicação do percentual mínimo de recursos para os serviços públicos de saúde, assim como não podem mais questionar os critérios utilizados pela União para o rateio de verbas a serem repassadas aos referidos entes federados. Ainda assim, conforme já dito, entende-se que as Portarias que regularam a matérias SÃO CONSTITUCIONAIS e não foram totalmente revogadas pela nova legislação já em vigor.

Finalmente, é de se destacar que a descentralização visa uma melhor assistência à população, pois o gestor local é a entidade mais apropriada para identificar as necessidades da sua população. Essa é a razão pela qual o sistema foi estruturado da forma supra mencionada.

CONCLUSÃO

Com estes apontamentos quer-se demonstrar a atribuição de cada Ente na execução dos serviços de saúde, bem como expor que a União (Ministério da Saúde) não possui meios físicos de cumprir eventuais decisões judiciais que determinam a direta execução de procedimentos relativos a internação, cirurgia e exames.

Nesses casos, o Ministério da Saúde busca junto à respectiva Secretaria municipal e/ou estadual de saúde o cumprimento da determinação judicial que, uma vez impossibilitada de cumprimento diante da negativa dos referidos entes, ou, da falta de resposta à solicitação, somente é possível de se realizar através de depósito em conta judicial do valor correspondente aos custos dos procedimentos, com posterior prestação de contas nos autos judiciais do valor gasto, situação essa que é para ser utilizada apenas como ULTIMA RATIO, uma vez que onera, sobremaneira, os recursos públicos federais.


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