Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/50684
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

O clamor social pela punição e a invocação do direito penal do inimigo.

A terceira velocidade do direito penal

O clamor social pela punição e a invocação do direito penal do inimigo. A terceira velocidade do direito penal

Publicado em . Elaborado em .

O texto busca apresentar a incompatibilidade do direito penal do inimigo com o ordenamento jurídico brasileiro, as suas principais características e a sua invocação pela sociedade e pela grande mídia, em relação a crimes, axiologicamente, considerados graves.

É inquestionável que a população brasileira clama pela punição de criminosos em decorrência da prática de delitos. Axiologicamente, tais crimes possuem alta reprovação social.

Diante de tais fatos típicos, a sociedade roga por penas de caráter perpétuo e pena de morte. Ainda, em alguns locais, utiliza-se do exercício da autotutela, pela qual os indivíduos fazem as suas “próprias leis.”

Cotidianamente, as pessoas expõem nas ruas e nas redes sociais incentivos às condutas supramencionadas, e ainda defendem o retorno da ditadura militar (sem qualquer argumento histórico ou científico), apenas afirmam que o “governo dos militares não tinham tamanha bandidagem e que as pessoas podiam andar livremente”.

Ainda, estão em voga na grande mídia, principalmente, em jornais ditos sensacionalistas (que lucram com a violência e não apresentam qualquer comportamento ético, como bem abordado por Balzac em “Ilusões Perdidas”) expõem comentários sem quaisquer fundamentos jurídicos e que incitam publicamente a violência pelos cidadãos e pelos policiais.

Tais apresentadores de televisão disseminam na população brasileira mais insegurança e ódio das Instituições estatais.  Muitos destes comentaristas incentivam as Polícias, explicitamente, a matar os criminosos com clara apologia a fato criminoso (conduta descrita no artigo 287 do Código Penal Brasileiro como delito, a ser punido por detenção de três a seis meses ou multa).

Neste ínterim se encontra o chamado Direito Penal do Inimigo.  A sociedade, inconscientemente, invoca a teoria de Günter Jakobs, que se pauta pelo chamado Funcionalismo Sistêmico, o qual concebe que a função do Direito Penal é restabelecer e reforçar a validade da norma jurídica. O Direito Penal do inimigo é conhecido como a terceira velocidade do Direito Penal.

Assim, a função do Direito Penal seria reforçar as expectativas normativas. Trabalha com o Direito Penal do Inimigo, baseando-se em teorias de contratualistas, em especial, de Thomas Hobbes.

Para Jakobs, seriam necessários a utilização de dois sistemas penais distintos. Portanto, para o criminoso dito comum, deve-se pautar pela utilização e aplicação de um Direito Penal do cidadão, todavia, para aqueles violadores do pacto social, deve-se aplicar o Direito Penal do Inimigo, sob o argumento de que estes não poderiam ser beneficiários das garantias que o Estado concebe aos demais cidadãos (que não violaram o contrato social). 

Entretanto, para Jakobs, quem é o inimigo?

O inimigo seria identificado pela prática reiterada de crimes, possuidor de maus antecedentes, por ter habitualidade criminosa e, principalmente, por integrar organizações criminosas estruturadas ou ser terrorista.

Em suma, o inimigo tem que ser combatido, não pelo Direito Penal comum, mas pelo Direito Penal do Inimigo.

De forma sucinta, o Direito Penal do Inimigo apresenta algumas características, tais como a antecipação da punibilidade, ou seja, devem ser punidos os atos meramente preparatórios, crimes de mera conduta e crimes de perigo abstrato.

Sugere o autor um Direito Penal prospectivo, que “olha para frente”, para antecipar o inimigo. Como exemplo, no ordenamento jurídico brasileiro, tem-se a Lei 13.260/2016 (Lei do terrorismo), que pune atos meramente preparatórios, conforme previsão abaixo.

“Art. 5o  Realizar atos preparatórios de terrorismo com o propósito inequívoco de consumar tal delito:

Pena - a correspondente ao delito consumado, diminuída de um quarto até a metade”. (grifo nosso)

Ainda, o Direito Penal do Inimigo pauta-se por leis de luta e de combate, ou seja, são aquelas regras que identificam e punem com mais rigor os crimes praticados pelo inimigo.

Nesta senda, o Direito Penal do Inimigo abusa na utilização de tipos penais abertos, elementos normativos do tipo e leis penais em branco[i]. Tipos penais que não são norteados pelo princípio da taxatividade, assim, respectivamente, podem ser valorados pelo juiz ou complementados por outra norma de natureza administrativa. O argumento se fundamenta na imprevisibilidade do inimigo, pois seriam necessários tipos penais mais flexíveis e não taxativos para o devido combate daquele que violou as expectativas sociais.

Finalmente, o Direito Penal do Inimigo defende a Relativização de garantias do indivíduo, para aplicar penas e restrições de liberdade para aqueles que não reconhecem a ordem social.

Em suma, o Direito Penal do inimigo não é compatível com a Constituição Federal. Viola princípios constitucionais e penais. O Supremo Tribunal Federal (STF), por inúmeras vezes, pronunciou-se pela inconstitucionalidade de dispositivos legais que versavam por um Direito Penal do inimigo. Assim, o art. 44 da 11.343/2006 (Lei de Drogas) veda a aplicação da liberdade provisória e penas restritivas de direito para os delitos desta Lei. Contudo, o STF declarou as referidas vedações inconstitucionais.

Igualmente, declarou a inconstitucionalidade do art. 2º, §1º, da Lei 8.072/90 de Crimes hediondos, versava que a pena deveria ser cumprida “integralmente no regime fechado". Logo, em posterior alteração, o legislador previu que pena deveria ser cumprida em regime “inicialmente fechado". Em ambas as situações, o STF declarou inconstitucional o mencionado dispositivo, em prestígio aos princípios da Individualização das penas e da reserva constitucional de jurisdição.  

Portanto, o Direito Penal do inimigo deve ter a sua aplicação rechaçada, pois não se compatibiliza com o nosso ordenamento jurídico e com a concepção do Estado Democrático de Direito com viés garantista, como bem apresentado pelo jurista italiano Luigi Ferrajoli, em sua importante obra chamada “Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal.”.


Nota

[i] É importante pontuar que o tipo penal em branco se difere de elementos normativos do tipo que impõem ao juiz a necessidade de especial juízo de valor sobre o tipo penal. O magistrado deverá recorrer a métodos de interpretação, pois o tipo carece de compreensão imediata. Como exemplo, apresentam-se tipos penais que contenham termos no preceito primário, tais como “mulher honesta”, “ato obsceno”, “níveis tais que possam resultar” etc.


Autor

  • Paulo Henrique Ribeiro Gomes

    Possui pós-graduação em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós-graduação em Filosofia e Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Advogado, inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil (Seção Minas Gerais). Membro do Instituto de Ciências Penais (ICP).

    Textos publicados pelo autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Paulo Henrique Ribeiro. O clamor social pela punição e a invocação do direito penal do inimigo. A terceira velocidade do direito penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4841, 2 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50684. Acesso em: 20 abr. 2024.