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Empregado hipossuficiente e o ajuizamento da reclamação trabalhista

direito de escolher entre o local da prestação de serviço ou outro lugar que lhe seja mais conveniente

Empregado hipossuficiente e o ajuizamento da reclamação trabalhista: direito de escolher entre o local da prestação de serviço ou outro lugar que lhe seja mais conveniente

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O objetivo do presente trabalho é tentar demonstrar que o art. 651, da CLT, que estabelece a competência das Varas do Trabalho, não tem recebido da doutrina e dos tribunais a interpretação mais justa e conveniente, que atenda ao fim a que se presta tal norma, qual seja, beneficiar o empregado, normalmente a parte mais fraca na relação de emprego.

O Direito do Trabalho é eminentemente protetivo. E o disposto no art. 651 não fugiu à regra geral de proteção. Dessa forma, ao estabelecer que a reclamação deve ser proposta na localidade onde o empregado prestou serviço, o fez em benefício do trabalhador, entendendo que no último local da prestação de serviço este teria mais facilidade para realizar as provas do seu direito. Entretanto, se o empregado entender que juízo diverso daquele atenderá melhor aos seus interesses, nada impedirá que lá demande seu empregador pois, se a regra do artigo em comento é para favorecer o obreiro, não deve ser aplicada quando lhe for prejudicial.

Portanto, se o trabalhador for obrigado, em algumas situações, a demandar seu empregador na localidade da prestação de serviços, restará vulnerado o princípio constitucional da isonomia, emergindo situações de total desequilíbrio entre as partes.

Por diversas circunstâncias o empregado apresenta sua reclamação trabalhista em face do empregador em localidade diferente daquela na qual prestou serviços. O empregador se defende alegando exceção de incompetência, o que é acolhido pela Vara do Trabalho, com fundamento no art. 651 da CLT. Todavia, essa denegação de competência, ao nosso sentir, não se coaduna com a moderna tendência do Direito, a qual visa assegurar a todos a facilidade de acesso ao Poder Judiciário.

Imagine-se um empregado contratado no Estado de São Paulo para prestar serviços em uma certa empresa no Estado do Piauí. Em razão da contratação o empregador fornece-lhe moradia. Rescindido o contrato de trabalho, desocupa o imóvel e retorna ao seu Estado natal. Se for obrigado a se deslocar de seu Estado de origem para propor reclamação trabalhista no Estado da prestação de serviço, ou a permanecer nesse Estado para solucionar seu dissídio laboral, isto criaria uma situação de desigualdade, visto que o empregado quase sempre não tem condições econômicas de custear as despesas com transporte ou estadia.

No exemplo acima, seria uma negação ao princípio constitucional do amplo acesso à justiça, exigir que o empregado demande seu empregador no local da prestação de serviço, pois isso inviabilizaria a obtenção da prestação jurisdicional, "porquanto não será difícil de imaginar que dentre os obstáculos mais freqüentes, senão o mais grave, de inibição do direito fundamental de acesso à justiça, é o de ordem econômica, que afasta impiedosamente os desvalidos da fortuna de acesso à ordem jurídica justa, privando-os, consequentemente, de verem reparadas ou evitadas as lesões contra si consumadas ou ameaçadas" (Robson Flores Pinto. Hipossuficientes: assistência jurídica na Constituição, São Paulo: LTr, 1997, p. 28).

Considerando-se a hipossuficiência do empregado, deslocar a competência para o local da prestação de serviço, muitas vezes seria o mesmo que inviabilizar seu acesso à Justiça, pois tornar-se-ia oneroso, dificultoso e em alguns casos impossível ao trabalhador litigar em localidade distante de sua residência, aumentando ainda mais a disparidade entre capital e trabalho.

O professor Sérgio Pinto Martins, comentando o art. 651 da CLT, mostra-se de acordo com aquela prescrição legal ao dizer que "o objetivo da lei é que o empregado possa propor a ação no local em que tenha condições de melhor fazer sua prova, que é no local onde por último trabalhou" (Comentários à CLT, 3ª edição, São Paulo: Atlas, 2000, p. 674).

Todavia, respeitosamente, ousamos discordar do professor Sérgio Pinto e também das Varas do Trabalho que se dão por incompetentes, quando ocorrem na prática hipóteses semelhantes a essa aqui ventilada, e também, porque nem sempre o juízo do último local de trabalho é o mais conveniente ao empregado, podendo-lhe ser até mesmo prejudicial. Logo, deve caber ao trabalhador a escolha do juízo mais viável à solução de seu dissídio laboral.

Numa análise ligeira do art. 651 da CLT, pode-se chegar equivocadamente à conclusão de que sempre será benéfico ao empregado ajuizar sua ação trabalhista no local onde prestou serviço, face a redação utilizada por esse dispositivo: "A competência das Juntas de Conciliação e Julgamento é determinada pela localidade onde o empregado, reclamante ou reclamado, prestar serviços ao empregador, ainda que tenha sido contratado noutro local ou no estrangeiro". Porém nem sempre isso ocorre, pois o hipossuficiente é quem vai eleger o foro trabalhista que melhor lhe aprouver. Assim, nada impede que a competência territorial seja transmudada em absoluta para que cumpra seu fim principal, que é a proteção do economicamente débil. Ademais, como ensina Júlio César Bebber, "não se pode tomar a literalidade de tudo o que o legislador escreve, para interpretar a norma. Especialmente quando se trata da Consolidação das Leis do Trabalho, que é um diploma legal pouco técnico". (Princípios do Processo do Trabalho, São Paulo: LTr, 1997, p. 264).

O exegeta deve extrair do art. 651 um entendimento que busque dar-lhe maior efetividade, pois "o Direito deve ser interpretado inteligentemente, não de modo a que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis" (Carlos Maximiliano. Interpretação e aplicação do direito, 2ª ed., São Paulo: Ed. Da Livraria Globo, 1933, p. 183)

Interpretar é escolher dentre os objetivos que o texto legal possa apresentar, o justo e conveniente. Se o objetivo do art. 651 é facilitar a produção de provas pelo empregado, este tem a faculdade de eleger outro juízo que não o do local da prestação de serviços para dirimir sua demanda, se entender que dessa forma seu direito será melhor protegido.

Não se pode interpretar o art. 651 celetista, isoladamente, sem considerar o disposto no art. 5º, XXXV, da CF/88, pois este facilita o acesso à justiça, possibilitando a todos postular tutela jurisdicional preventiva ou reparatória relativamente a um direito. Desta forma, toda e qualquer lei que dificulte à parte exercer seu direito de acesso à justiça, atenta contra o princípio da ação e por isso deve ser rechaçada. Este é o caso do art. 651 que, se interpretado à letra, constituiria grande empecilho ao trabalhador conforme o exemplo dado. Portanto, não pode o sistema jurídico dizer e desdizer ao mesmo tempo, ou seja, facilitar o acesso à justiça e, simultaneamente, restringi-lo. Nesse sentido, o caput do art. 651 da CLT, tem de ser interpretado à sombra da referida norma constitucional.

Corroborando esse entendimento de que a competência pode ser alterada em benefício da parte hipossuficiente, a ilustre doutrinadora Ada Pellegrini Grinover [et alli], ensina que "nos casos de competência de foro, o legislador pensa preponderantemente no interesse de uma das partes em defender-se melhor, de modo que a intercorrência de certos fatores pode modificar as regras ordinárias de competência territorial" (As Nulidades no Processo Penal, 7ª ed., São Paulo: RT, 2001, p.45).

Consigne-se que no processo trabalhista e civil vige o princípio da verdade formal, ou seja, o juiz se convence pela provas constantes dos autos. Diferentemente do processo penal em que o interesse da parte está aquém do interesse público "expresso no princípio da verdade real: onde se deram os fatos é mais provável que se consigam provas idôneas que os reconstituam mais fielmente no espírito do juiz" (Ada Pellegrini Grinover, op. cit., p. 46). Logo, o processo trabalhista se contenta com a verdade constante dos autos (formal), podendo a competência prevista no art. 651 ser alterada, por se tratar de norma dispositiva.

Arruda Alvim, conceitua prova judiciária, dizendo consistir esta "naqueles meios definidos pelo direito ou contidos por compreensão num sistema jurídico (v. arts. 332 e 366), como idôneos a convencer (prova como ‘resultado’) o juiz da ocorrência de determinados fatos, isto é, da verdade de determinados fatos, os quais vieram ao processo em decorrência de atividade principalmente, dos litigantes (prova como ‘atividade’)" (Manual de Direito Processual Civil, 5ª ed., v. 2, São Paulo: RT, 1996, p. 399).

As conseqüências jurídicas a serem alcançadas no processo estão associadas às afirmações sobre os fatos. A parte deve primeiro afirmar algo sobre certo fato e, a seguir, comprovar a veracidade dessa afirmação. Para que as afirmações feitas pelas partes sejam levadas em consideração pelo juiz no momento de julgar, imperiosa é a demonstração de sua veracidade, podendo-se afirmar, portanto, que a função da prova é formar a convicção do julgador.

Se o empregado demanda em local diverso daquele da prestação de serviço, o risco sobre conseguir ou não provar o direito alegado, é todo seu. Desta forma, não há razão para que os juizes trabalhistas do local onde fora proposta a demanda, se diverso da localidade da prestação de serviço, dêem-se por incompetentes, ante a apresentação de exceção por parte do empregador, porque esta decisão vulnera o sentido teleológico do art. 651, além de criar uma situação que deixa o empregado, normalmente hipossuficiente, impedido de obter a prestação jurisdicional do Estado.

Anote-se ainda que são raríssimas as vezes em que o empregado exerce o jus postulandi, estando quase sempre orientado por advogado em sua reclamação. Face a essa assistência do profissional do Direito, a escolha de juízo diferente daquele em que se deu a prestação de serviço, é feita consciente de que melhor atenderá aos interesses do trabalhador.

Em vista da diferença de capacidade econômica existente entre o trabalhador e o empregador, não basta simplesmente a norma assegurar a igualdade formal entre ambos. Tem que garantir na prática a concreção de seus direitos. E isso é possível extraindo-se do art. 651 uma interpretação que dê ao trabalhador privilégio de foro e assim maior segurança e proteção à parte mais fraca como, aliás, é uma garantia constitucional num "Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social". (Alexandre de Moraes. Direito Constitucional, 10ª ed., São Paulo: Atlas, 2001, p. 199).

Na legislação infraconstitucional também se verifica a mesma postura garantidora da efetiva proteção ao economicamente infortunado, como naquelas ações com base no Código de Defesa do Consumidor, em que "O foro do domicílio do autor é uma regra que beneficia o consumidor, dentro da orientação fixada no inc. VII do art. 6º do Código, de facilitar o acesso aos órgãos judiciários" (Ada Pellegrini Grinover [et alii]. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, p. 701).

No mesmo sentido, o Novo Código Civil traz em diversos dispositivos proteção à parte cultural e materialmente apoucada (arts. 113, 166, 421, 422, 423, entre outros). O art. 113 diz que os negócios jurídicos devem ser interpretados de acordo com a boa-fé. Com isso evita-se a proteção de interesses de uma das partes contratante em detrimento da outra. Grande inovação também trouxe o art. 166, inciso VI. Esse artigo traz a preocupação do legislador em tutelar a parte hipossuficiente na formação do negócio jurídico, impedindo a efetivação de obrigações que imponham sacrifício exagerado a uma das partes, obviamente a mais frágil. O art. 421 introduz de maneira clara, no direito contratual, o princípio da função social, limitando a liberdade de contratar e negando validade ao contrato firmado com intuito de apenas satisfazer interesses estritamente pessoais ou desprovidos de qualquer sentido social. E ainda nos artigos 422 e 423, assim como em muitos outros dispositivos, resta clara a tendência do novo Código Civil de proteção à parte mais fraca, impondo uma mitigação ao princípio do pacta sunt servanda, fundada na supremacia do interesse público.

Em conclusão, podemos afirmar que se o empregado declarar sua hipossuficiência, fará jus a propor ação trabalhista em local diverso daquele da prestação de serviços, porque a regra do art. 651 da CLT fora instituída com a finalidade de protegê-lo. Destarte não há empecilho legal para a interpretação extensiva desse dispositivo, a fim de buscar seu sentido finalístico, qual seja, proteger o mais fraco, evitando com isso maltrato ao princípio constitucional da isonomia.

Esforçamo-nos para interpretar o citado art. 651, de forma consonante com a tendência de socialização do Direito, encampada principalmente pela Constituição Federal Brasileira, Código de Defesa do Consumidor e atual Código Civil, que visam a concretização da igualdade social, um dos fundamento do Estado Democrático de Direito, provocando o debate sobre a matéria pelos juslaboralistas.


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Informações sobre o texto

Título original: "O direito de o empregado hipossuficiente optar entre ajuizar reclamação trabalhista no local da prestação de serviço ou em outro lugar que lhe seja mais conveniente".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Roberto. Empregado hipossuficiente e o ajuizamento da reclamação trabalhista: direito de escolher entre o local da prestação de serviço ou outro lugar que lhe seja mais conveniente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 298, 1 maio 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5183. Acesso em: 16 abr. 2024.