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O Estado como objeto de estudo

as diferentes visões do Estado

O Estado como objeto de estudo: as diferentes visões do Estado

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1. INTRODUÇÃO

Este ensaio não pretende oferecer um conceito definitivo de Estado. Afinal, a definição de Estado varia de acordo com a perspectiva adotada pelo analista, o período histórico em que o estudo está sendo realizado e, principalmente, a posição ideológica de quem o define. Assim sendo, adotarei um conceito básico, sujeito a inúmeros aperfeiçoamentos: Estado é uma organização complexa que detém o poder político.

Considerando que o poder político se caracteriza pela exclusividade do uso legítimo da força, o Estado possui o monopólio da violência legítima, a qual pode ser aplicada a todos os membros da sociedade. Devido a esse monopólio, o Estado pode executar uma de suas principais funções, que é organizar a coação. Por outro lado, qualquer membro da sociedade que pratique atos violentos sem a sanção prévia do Estado será punido. Nesse sentido, Gramsci relacionou o Estado ou sociedade política com o domínio (apud Bobbio, 1986:956). Situado em outra posição do espectro ideológico, Weber afirmou que "por Estado se há de entender uma empresa institucional de caráter político onde o aparelho administrativo leva avante, em certa medida e com êxito, a pretensão do monopólio da legítima coerção física, com vistas ao cumprimento das leis". (apud Bobbio, obra citada).

Destaque-se, ainda, que o poder político estatal possui três características básicas: exclusividade (só o Estado pode empregar a violência legítima), universalidade (todos os membros da sociedade estão sujeitos à ação do Estado) e inclusividade (todas as atividades desenvolvidas na sociedade podem ser objeto da ação estatal imperativa, por meio da utilização do ordenamento jurídico).

As limitações de espaço, típicas de um ensaio, impedem o detalhamento exaustivo de todas as visões teóricas do Estado. Logo, as diversas teorias serão agrupadas em duas grandes correntes de pensamento: a clássica-liberal e a marxista. Cada uma delas será analisada muito rapidamente.

Não serão abordadas as teorias sobre as formas socialistas de Estado, considerando-se que o Brasil está inserido no mundo capitalista e que este ensaio possui um caráter eminentemente prático, ou seja, voltado para a nossa realidade cotidiana.

Após a exposição das principais características dessas correntes, o autor expressará o seu entendimento de Estado.


2. AS DIFERENTES VISÕES DE ESTADO

2.1 A visão Clássica-liberal

Ela é centrada no comportamento individual, explicado pela natureza humana, e na relação entre indivíduos. Defende que os membros da sociedade atuam em grupos, mutuamente competitivos, e não como elementos de classes sociais. Assim sendo, na sociedade manifestam-se interesses grupais ou individuais, nunca de classe, o que desqualificaria qualquer análise baseada em conflitos de classes. Nessa ótica, o Estado ideal atua como um árbitro neutro, que se situa acima desses interesses, age de forma imparcial e visa sobretudo ao bem-comum.

Outro aspecto fundamental dessa visão é a importância atribuída aos direitos individuais, quer políticos quer econômicos, estes últimos consubstanciados na propriedade privada.

Esse projeto de Estado surgiu com as mudanças drásticas ocorridas na Europa nos séculos XVI e XVII, que provocaram, entre outros fenômenos, a crise da legitimidade divina. É importante ressaltar que, desde a Antigüidade, a maior parte dos governantes procurou gerir o Estado com base em "direitos divinos". Logo, essa crise de legitimidade abalou profundamente os alicerces do poder até então vigente.

Paralelamente, ocorre um processo de laicização do direito, representado pela diferenciação entre as normas jurídicas e as religiosas e pela formação de juristas leigos. Tanto essa mudança na forma de enxergar o Estado como essa alteração no direito foram fundamentais para o estabelecimento da primazia burguesa. Afinal, nem a Monarquia Absoluta nem o Direito Canônico eram adequados ao desenvolvimento pleno do capitalismo.

A ascenção do modo de produção capitalista implicou significativas mudanças sociais e políticas, acarretando a formação de novos conceitos ideológicos. Não se pode esquecer que as três formas clássicas de poder – econômico, político e ideológico – afetam-se reciprocamente. Logo, a ocorrência de mudanças marcantes em uma delas implica alterações sensíveis nas demais.

Dentro desse contexto de transformações, Thomas Hobbes começa a formular a doutrina clássica, ainda com base teológica. Segundo ele, o Estado nasce para evitar que a sociedade se desagregue e atinja o estado de natureza, onde todos lutam contra todos. Para evitar essa degradação que conduziria ao desaparecimento da sociedade, os indivíduos abrem mão de parcela de seus direitos em favor do Estado.

Posteriormente, John Locke retoma as teses de Hobbes, porém acrescenta novos elementos. Além de preservar a ordem e eliminar o risco da queda no estado de natureza, Locke defende ser necessário garantir a propriedade privada e a liberdade individual. Para tanto, propõe um contrato social, que seria um acordo entre iguais visando defender esses valores. Ressalte-se, contudo, que para Locke só os homens proprietários são considerados cidadãos, ou seja, só eles seriam "iguais". Visando preservar ao máximo a liberdade individual e a propriedade privada, condena a monarquia absoluta, considerada como incompatível com o governo civil – seu modelo de Estado. Em substituição ao poder absoluto do monarca, propõe que o governo seja colegiado.

A teoria de Locke foi certamente influenciada pela experiência da Inglaterra, onde ocorreram vários conflitos entre o Parlamento (poder colegiado) e o Rei (poder autocrático). Três anos antes do lançamento do segundo volume do seu Tratado sobre o Governo Civil, a Revolução Gloriosa limitou os poderes do rei inglês em favor do Parlamento. Frise-se que essa revolução ocorreu cem anos antes da sua congênere francesa, que acabou com a monarquia absoluta na França.

terceiro autor clássico mais importante é Jean-Jacques Rousseau, que difere de Hobbes e Locke em um ponto fundamental: a condenação veemente da propriedade privada, considerada por ele como corruptora dos homens e fonte de muitos males. Rousseau encara a sociedade civil como uma obra dos ricos, que visa proteger os interesses desses. Por outro lado, ele se aproxima de Locke ao afirmar que o povo renuncia à uma parcela de sua liberdade em favor do Estado. Em virtude dessa renúncia, o Estado representa a vontade geral da sociedade.

Diferentemente dos autores clássicos que utilizaram argumentos políticos, os liberais utilizam fundamentalmente análises econômicas. Eles afirmam que o homem é egoísta e visa exclusivamente melhorar seu padrão de vida. Porém, agindo em coletividade, mesmo que pensando somente em seu próprio interesse, os homens conseguem maximizar o bem-estar coletivo.

A busca da eficiência é a marca registrada do liberalismo. Assim sendo, o livre mercado é o mecanismo ideal de regulamentação social, pois é o mais eficiente. O Estado deve se limitar a proteger os cidadãos das ameaças externas e manter a ordem interna, garantindo a propriedade privada e a liberdade individual. Ele atua como um juiz esportivo que está preocupado apenas em manter as regras do jogo, sem se preocupar se elas são justas ou não.

Após vislumbrar rapidamente essa evolução conceitual, vamos analisar a forma como os Estados liberais contemporâneos atuam. Sob esse aspecto, podemos distinguir dois tipos de Estado liberal: o passivo e o ativo.

Estado passivo possui três variantes: o conservadorismo do livre-mercado, o sistema político e o neo-liberalismo. Essa corrente, como um todo, encara o Estado como um mal necessário, que deve se limitar a garantir a ordem interna e a segurança de suas fronteiras. Suas características básicas são: privilegiar a liberdade individual e a propriedade privada; proteger os interesses de classes; considerar o mercado como o regulador supremo da sociedade e estimular a competição individual.

conservadorismo do livre mercado defende a primazia do mercado e o afastamento do Estado das atividades econômicas. Atualmente, está praticamente em desuso.

A teoria do Sistema Político, proposta por David Easton, encara o Estado como um sistema político, compostos por "estruturas". É um modelo abstrato, simplificado e, por isso mesmo, de utilização geral. Apresenta como vantagem a facilidade para elaborar estudos comparativos. Por outro lado, é criticável por separar os sistemas políticos dos econômicos e por ser abstrato demais. Além disso, não consegue explicar revoluções e outras interrupções da ordem legal.

neo-liberalismo procura resgatar a total independência da esfera econômica. O Estado pode até garantir certa igualdade política – entendida como a possibilidade concedida a todos os cidadãos de participar de eleições diretas e periódicas. Porém, ele não deve se imiscuir no mercado econômico. Apesar de atualmente estar sendo considerado pela mídia e por muitos políticos brasileiros como o sistema do momento, ainda existem sérias dúvidas sobre a capacidade do neo-liberalismo de resolver os problemas sociais.

Por outro lado, não se pode esquecer que os principais países capitalistas, ao mesmo tempo em que pregam o neo-liberalismo, defendem os respectivos mercados internos e adotam medidas para ajudar suas empresas a vender no exterior, ainda que a custa de subsídios governamentais – o que contraria frontalmente a teoria do livre mercado. Além disso, como ficou demonstrado no recente julgamento do caso Microsoft, o governo americano intervém sempre que a atuação das empresas no mercado ultrapassa certos limites: por exemplo, quando a livre concorrência é ameaçada. Logo, esses países não são tão liberais quanto se proclamam.

Já o Estado ativo possui três vertentes: o liberalismo reformista, o autoritarismo e o totalitarismo. O reformismo admite a intervenção estatal no domínio econômico visando sanar falhas do livre mercado (crises do capitalismo e flutuações econômicas excessivas), minimizar abusos do direito de propriedade (função social da propriedade e proteção à ecologia) e limitar a concentração do capital (constituição de monopólios/oligopólios). Sua principal característica é enfatizar o bem-estar da sociedade. O exemplo típico de política pública adotada por um Estado reformista foi o "New Deal", plano proposto pelo ex-presidente dos Estados Unidos Franklin Delano Roosevelt para enfrentar a grande depressão econômica de 1929 e que teve como base as idéias de John Maynard Keynes.

A maior diferença entre os Estados autoritário e totalitário e o liberal reformista reside no respeito desse último à democracia. O Estado liberal reformista é apontado como o melhor caminho para conciliar democracia, que implica maior participação popular nas decisões políticas, e capitalismo, que concentra renda e aumenta as desigualdades sociais. Nesse sentido, Claus Offe frisa que a ampliação da democracia no mundo capitalista ocidental só foi possível graças à instituição do Welfare State ou Estado do Bem-Estar, decorrente do Estado liberal reformista. Ressalte-se, ainda, que esse modelo de Estado procura sempre se legitimar por meio de políticas públicas que melhorem a situação da classe trabalhadora.

Estado autoritário tutela os interesses da sociedade civil, desprezando a democracia nos moldes liberais. Seu caráter ativo se revela nas suas tentativas de diminuir as desigualdades sociais, por meio de medidas populistas. Apesar dessa relativa preocupação social, não visa construir uma sociedade sem classes. Ao contrário, é controlado por uma classe. Para melhor tutelar a sociedade, monta uma estrutura social corporativa, que lhe permite determinar quais serão seus interlocutores na sociedade civil. No Brasil, entre 1937 e 1945, Getúlio Vargas construiu um Estado com características nitidamente autoritárias.

Estado totalitário elimina as distinções entre Estado e sociedade civil, nele todas as relações sociais são politizadas, há um controle total do Estado sobre todos os aspectos da vida dos cidadãos. A título de exemplo, pode-se lembrar que o sucesso profissional dos indivíduos é determinado pela sua filiação ao partido único que controla o Estado. Mesmo intelectuais do porte de Norberto Bobbio foram obrigados a se filiar a partidos únicos para conseguir dar prosseguimento a suas carreiras ou mesmo para apenas poder trabalhar, conforme ele mesmo narra em sua autobiografia "Diário de um século" (pp. 25 a 35).

É interessante observar que, no século XX, uma das causas do surgimento dos Estados totalitários é a possibilidade de constituição de Estados socialistas. São exemplares os casos da Itália (Fascismo), da Alemanha (Nazismo), de Portugal (Salazarismo) e da Espanha (Franquismo).

Atualmente, o Estado liberal é o modelo característico do mundo capitalista ocidental. Politicamente, adota a forma de democracias pluralistas ou sociais democracias. O pluralismo se baseia na premissa de que os cidadãos não são bem informados, racionais e interessados em política, além disso não decidem com base em parâmetros ideológicos. A omissão eleitoral desses cidadãos é vista como benéfica, pois se eles participassem maciçamente do processo eletivo o resultado seria muito negativo. Essa omissão é compensada pela intensa participação das elites, as quais competem entre si pelo poder. Essas elites, que são compostas por indivíduos bem preparados e conscientes, vão dirigir o Estado da melhor forma possível. Por outro lado, a apatia geral indicaria que as pessoas estão satisfeitas com o atual status quo. Ressalte-se também a intensa ação dos grupos de interesses que pressionam o governo a tomar atitudes que beneficiem seus membros.

A social democracia adota o pluralismo como base, acrescentando-lhe alguns aperfeiçoamentos. Nesse modelo, a classe capitalista, que permanece hegemônica, incentiva novas formas de participação popular corporativa. De caráter basicamente reformista, apesar de preservar o modo de produção capitalista, enfatiza a busca de ganhos incrementais para as classes trabalhadoras. É o "Pós-capitalismo", que prega a superação das desigualdades sociais e a irrelevância das classes sociais na definição estrutural da sociedade.

          2.2 A VISÃO MARXISTA

Ao analisar o Estado, todos os teóricos marxistas partem dos seguintes pressupostos:

as condições materiais de uma sociedade, consubstanciadas no modo e nas relações de produção, formam a base de sua estrutura social, da consciência humana e da sua forma de Estado;

o Estado não busca o bem-comum, ao contrário, age de acordo com os interesses da classe dominante, é a expressão política da estrutura de classes vigente. Ele não está acima dos conflitos sociais, mas profundamente envolvido neles;

o Estado é uma instituição de classes socialmente necessária, pois pratica determinadas tarefas que são essenciais para a sobrevivência da sociedade, entre as quais se destacam a mediação do conflito de classes e a manutenção da ordem capitalista;

o Estado é encarregado da repressão na sociedade burguesa.

Apesar de haver esses pontos em comum e considerando que Marx não desenvolveu uma teoria completa e única do Estado, seus discípulos se dividem em quatro grandes grupos quando estudam o Estado capitalista: Instrumentalismo (Lenin, G. William Domhoff, Ralph Miliband e Paul Sweezy); Estruturalismo (Nicos Poulantzas, Louis Althuser e Antonio Gramsci); Criticalismo (Escola de Frankfurt, Herbert Marcuse e Jürgen Habermas) e Estatismo (Claus Offe, Erik Olin Wright e James O’Connor).

Os Instrumentalistas afirmam que o Estado capitalista é um instrumento utilizado pela burguesia para se manter como classe dominante. Esse modelo de Estado, cuja função principal é dirigir a coerção, é controlado diretamente pela burguesia e representa a força armada dessa última. Por estar tão diretamente vinculado à luta de classes, o Estado só existe enquanto perdurar esse conflito. Os adeptos dessa corrente pregam a tomada violenta do poder, a destruição do aparelho estatal burguês e a construção do Estado Socialista, o qual extinguirá a propriedade privada dos meios de produção, permitindo o advento do comunismo e a extinção do próprio Estado.

Estruturalismo e o Estatismo baseiam-se numa relativa autonomia do Estado em relação à burguesia. Entretanto, apesar de não ser um mero instrumento da burguesia, o Estado continua tendo suas ações limitadas pela luta de classes. Para eles, a burocracia adquire autonomia em duas situações. A primeira, que ocorre muito mais frequentemente, deriva dos conflitos internos da própria classe dominante que são solucionados com maior facilidade por uma burocracia independente. Acrescente que os burgueses em geral não participam diretamente do aparelho estatal.

A segunda situação decorre do fato de a burocracia, apesar de permanecer como agente da classe dominante, lutar constantemente por mais poder. Assim sendo, em determinadas situações muito especiais, como por exemplo quando há um relativo equilíbrio entre as classes em luta, ela pode se afirmar como autônoma. Por outro lado, mesmo esse Estado autônomo depende economicamente da burguesia dominante para desenvolver o país e obter recursos – via arrecadação de tributos. Além disso, depende do suporte político proveniente das classes em luta. Logo, não essa burocracia não é nunca inteiramente autônoma.

criticalismo funda-se na análise político-econômica do Capital, especialmente no que concerne às leis econômicas do desenvolvimento capitalista definidas por Marx. Joachim Hirsch, adepto dessa corrente de pensamento, define o Estado burguês como "a expressão de uma forma histórica específica de dominação de classe, e não simplesmente como o portador de funções sociais particulares" (apud Carnoy, 1994:77). Acrescenta que ao Estado incumbe criar a infra-estrutura que os capitais privados não podem gerar, devido aos seus limitados interesses de lucro. Além disso, o Estado capitalista deve intervir para compensar as reduções decorrentes da lei da taxa decrescente de lucro e restabelecer a acumulação de capital. Nessa visão, o Estado atua para facilitar a extração do excedente dos trabalhadores. É essa extração, e não a luta de classes, a variável fundamental para a compreensão da forma do Estado (ibidem).


3. CONCLUSÃO

Após ter apresentado de forma extremamente resumida as duas principais visões teóricas do Estado, apresento a minha visão particular: o funcionamento do Estado capitalista contemporâneo – nosso objeto de estudo por excelência – é melhor explicado pelo modelo pluralista, com os aperfeiçoamentos introduzidos pela social democracia.

Essa conclusão encontra respaldo na existência de inúmeros países capitalistas cuja situação política atual corresponde ao modelo teórico pluralista. Entre os elementos típicos desse modelo detectados na prática, destaca-se a existência de numerosos grupos de interesses que atuam nesses países. Esses grupos, que vêm crescendo em número e influência, são organizados de forma competitiva, ordenados não hierarquicamente, auto-determinados e defensores dos mais diversos interesses: ecologia, direito das minorias, interesses econômicos de grandes corporações, etc. Eles não são obrigatoriamente autorizados, reconhecidos, subvencionados, criados ou controlados pelo Estado nem detém o monopólio da atividade representativa dentro das respectivas categorias. Assim sendo, o seu conjunto forma um sistema de representação de interesses que atende à descrição clássica da sociedade pluralista.

Outro fenômeno estreitamente ligado ao modelo pluralista, e que pode ser observado com freqüência, é a baixa participação popular nas eleições. Um dos maiores exemplos é o processo eleitoral norte-americano. Os Estados Unidos são um país de tradição liberal e democrática, como se pode comprovar a partir da inexistência de golpes militares tão comuns na América Latina e na África e de regimes totalitários como os que existiram na Europa (Portugal, Espanha, Itália e Alemanha). Entretanto, a cada eleição diminui a participação popular. Fenômeno semelhante acontece no Brasil, onde, apesar de o voto ser obrigatório, o índice de abstenção eleitoral é bastante elevado.

Esses fatos podem explicados a partir das teses de Schumpeter: eles ocorrem porque nem todos na sociedade estão no mesmo nível de desenvolvimento cultural, existem líderes e seguidores, além de eleitores desinteressados e mal informados. Assim sendo, os objetivos da sociedade devem ser formulados pelos líderes, que constituem uma elite politicamente atuante, devotada ao estudo dos problemas sociais relevantes e capaz de compreendê-los. Acrescenta que a omissão da maioria desinteressada é melhor que a participação de elementos inconscientes e que a apatia significa, geralmente, satisfação com o status quo, conforme foi anteriormente explicitado.

No Brasil atual, constata-se a existência de uma grande quantidade de pessoas desinformadas e de muitos cidadãos relativamente cultos que estão desinteressados da política. É interessante observar a quantidade de universitários que considera a participação político-eleitoral um desperdício de tempo, que não conduz a nada. Essas pessoas, em geral, priorizam a via individual para a solução de seus problemas, dedicando-se exclusivamente às próprias carreiras profissionais.

É, igualmente, crucial para entender o funcionamento de nossa democracia pluralista avaliar a influência da propaganda política. Cada vez mais, a mídia adquire capacidade de influir decisivamente no processo eleitoral – basta lembrar da campanha presidencial do ex-Presidente Fernando Collor, especialmente do resumo do segundo debate exibido no Jornal Nacional. Por meio do marketing político, a opinião pública pode ser convencida a aderir a soluções propostas pela elite dominante, sem questioná-la em profundidade. Nesse contexto, o Estado adquire um poder próprio, pode adotar as soluções que melhor lhe aprouver, implantar a legislação que julgar mais conveniente e utilizar as políticas públicas que avaliar como mais condizentes ao desenvolvimento econômico e social.

Ressalte-se que, nesse modelo de Estado, o poder dos eleitores é bastante restrito. Como Schumpeter já havia afirmado, eles podem destituir um governo e substituí-lo por outro. Entretanto, as escolhas estão restritas àqueles políticos que se apresentaram como candidatos. Acrescento que suas escolhas são muitas vezes direcionadas pelo processo de propaganda mencionado acima. De qualquer forma, são os políticos que definem quais problemas são fundamentais, devendo ser solucionados preferencialmente, e quais as soluções passíveis de serem adotadas. No Brasil, isso ficou muito claro com a opção feita por Fernando Henrique Cardoso de atacar primordialmente a inflação, mesmo que ao custo de um enorme incremento na dívida interna e nos índices de desemprego.

fato de considerar o pluralismo capaz de explicar o funcionamento do Estado capitalista contemporâneo não implica dizer que esse modelo funciona de forma satisfatória. Ao contrário, especialmente no caso brasileiro, vê-se que o Estado está cada vez mais impotente para enfrentar os problemas básicos da sociedade, quais sejam saúde, educação e segurança.

Por outro lado, a própria teoria pluralista havia estabelecido condições básicas para o sucesso do seu modelo de Estado:

o material humano da política deve ser de qualidade suficientemente elevada. No Brasil, são freqüentes as denúncias de corrupção envolvendo políticos. Além disso, constata-se a existência de muitos parlamentares culturalmente despreparados;

o âmbito efetivo das decisões políticas não deve ser muito ampliado, isto é, muitas decisões devem ser tomadas por especialistas competentes fora da legislatura. Hoje, observa-se que as decisões mais importantes carregam um viés político decisivo, ou seja, esse âmbito em nosso país é demasiadamente amplo;

o governo democrático deve dirigir uma dedicada burocracia, que constitua um poder por si só. Nessa perspectiva, a burocracia profissional e independente garantiria um mínimo de neutralidade ao Estado. No Brasil atual, entretanto, uma parcela extremamente significativa dos cargos mais elevados da nossa burocracia é ocupada por pessoas sem vínculo efetivo com o serviço público. Um caso exemplar é o dos presidentes e diretores do Banco Central que, após deixarem os cargos públicos, assumem funções na iniciativa privada. Esse estado de coisas conduz ao domínio da burocracia pela classe economicamente dominante;

os eleitores e legisladores devem ser moralmente invulneráveis à corrupção. Novamente, constata-se o contrário, haja vista as inúmeras denúncias de compras de votos e todo tipo de corrupção;

a competição pela liderança exige uma grande capacidade de tolerância pela diferença de opiniões. Constata-se, na prática, que o Executivo procura sempre que possível desqualificar as opiniões da oposição e de qualquer outro crítico do modelo econômico por ele implantado;

o sistema político é concebido como um mercado e as decisões dos eleitores são baseadas na versão política da teoria neoclássica da utilidade. Logo, os eleitores seriam consumidores e os políticos empreendedores. No Brasil, as elites não apenas controlam o processo de tomada de decisão como não respondem efetivamente ao eleitorado. Elas não apenas formulam os problemas, mas tentam manipular a opinião dos eleitores a respeito das possíveis soluções.

Diante da inexistência dessas premissas básicas para o sucesso do modelo, fica fácil prever a ocorrência de problemas sérios para o Estado brasileiro – os quais estão sendo verificados no momento.

Destaque-se, ainda, que nos países capitalistas mais desenvolvidos o pluralismo evoluiu para a social democracia, a qual acrescentou a participação corporativa no Estado de Bem-Estar e reformas incrementais que melhoraram o padrão de vida dos trabalhadores. Por outro lado, essas reformas estão ameaçadas pela crise fiscal que se abateu sobre a maioria dos países capitalistas e ameaça o Welfare State.

          Finalmente, devemos ratificar nosso posicionamento anterior de que o funcionamento do Estado capitalista atual é falho – especialmente nos países periféricos como o Brasil. Assim sendo, não resta dúvidas que o modelo atual precisa de urgentes mudanças. Quais serão essas mudanças e qual teoria poderá explicar o seu funcionamento no futuro são questões para serem discutidas em um novo trabalho. Por ora, cabe indagar se será possível ao Estado capitalista, especialmente após a crise do Estado de Bem-Estar, conciliar a eficiência do capitalismo na geração de riquezas que ficam concentradas nas mãos de poucos com a satisfação das necessidades básicas da imensa maioria dos cidadãos.

Apesar de haver esses pontos em comum e considerando que Marx não desenvolveu uma teoria completa e única do Estado, seus discípulos se dividem em quatro grandes grupos quando estudam o Estado capitalista: Instrumentalismo (Lenin, G. William Domhoff, Ralph Miliband e Paul Sweezy); Estruturalismo (Nicos Poulantzas, Louis Althuser e Antonio Gramsci); Criticalismo (Escola de Frankfurt, Herbert Marcuse e Jürgen Habermas) e Estatismo (Claus Offe, Erik Olin Wright e James O’Connor).

Os Instrumentalistas afirmam que o Estado capitalista é um instrumento utilizado pela burguesia para se manter como classe dominante. Esse modelo de Estado, cuja função principal é dirigir a coerção, é controlado diretamente pela burguesia e representa a força armada dessa última. Por estar tão diretamente vinculado à luta de classes, o Estado só existe enquanto perdurar esse conflito. Os adeptos dessa corrente pregam a tomada violenta do poder, a destruição do aparelho estatal burguês e a construção do Estado Socialista, o qual extinguirá a propriedade privada dos meios de produção, permitindo o advento do comunismo e a extinção do próprio Estado.

O Estruturalismo e o Estatismo baseiam-se numa relativa autonomia do Estado em relação à burguesia. Entretanto, apesar de não ser um mero instrumento da burguesia, o Estado continua tendo suas ações limitadas pela luta de classes. Para eles, a burocracia adquire autonomia em duas situações. A primeira, que ocorre muito mais frequentemente, deriva dos conflitos internos da própria classe dominante que são solucionados com maior facilidade por uma burocracia independente. Acrescente que os burgueses em geral não participam diretamente do aparelho estatal.

A segunda situação decorre do fato de a burocracia, apesar de permanecer como agente da classe dominante, lutar constantemente por mais poder. Assim sendo, em determinadas situações muito especiais, como por exemplo quando há um relativo equilíbrio entre as classes em luta, ela pode se afirmar como autônoma. Por outro lado, mesmo esse Estado autônomo depende economicamente da burguesia dominante para desenvolver o país e obter recursos – via arrecadação de tributos. Além disso, depende do suporte político proveniente das classes em luta. Logo, não essa burocracia não é nunca inteiramente autônoma.

O criticalismo funda-se na análise político-econômica do Capital, especialmente no que concerne às leis econômicas do desenvolvimento capitalista definidas por Marx. Joachim Hirsch, adepto dessa corrente de pensamento, define o Estado burguês como "a expressão de uma forma histórica específica de dominação de classe, e não simplesmente como o portador de funções sociais particulares" (apud Carnoy, 1994:77). Acrescenta que ao Estado incumbe criar a infra-estrutura que os capitais privados não podem gerar, devido aos seus limitados interesses de lucro. Além disso, o Estado capitalista deve intervir para compensar as reduções decorrentes da lei da taxa decrescente de lucro e restabelecer a acumulação de capital. Nessa visão, o Estado atua para facilitar a extração do excedente dos trabalhadores. É essa extração, e não a luta de classes, a variável fundamental para a compreensão da forma do Estado (ibidem).


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

4.1 BOBBIO, Norberto. Diário de um século – Autobiografia. Rio de Janeiro: Campus, 1998.

4.2 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: Universidade de Brasília, 1986.

4.3 CARNOY, Martin. O Estado e Teoria Política. 4ª ed. São Paulo: Papyrus, 1994.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Guilherme Henrique de La Rocque. O Estado como objeto de estudo: as diferentes visões do Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 45, 1 set. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/52. Acesso em: 24 abr. 2024.