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A união estável e o direito sucessório face ao novo Código Civil brasileiro

A união estável e o direito sucessório face ao novo Código Civil brasileiro

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Sumário: 1. Introdução. 2. Considerações Gerais sobre o Concubinato e a União Estável. 3. A Constituição de 1988 e a União Estável. 4. A Legislação Infraconstitucional. 4.1. A Lei nº 8.971/94. 4.2. A Lei nº 9.278/96. 5. Os Direitos dos Conviventes na Sucessão Causa Mortis e a Lei nº 10.406/2002. 6.. Conclusão.


1 – INTRODUÇÃO.

Este trabalho pretende realizar uma análise da situação dos conviventes, no que toca aos direitos sucessórios, à luz das normas jurídicas contidas no Novo Código Civil Brasileiro.

O que se pretende é responder à seguinte indagação: o novo Código Civil trouxe uma redução nos direitos sucessórios reservados ao companheiro sobrevivente?

Partindo de uma reflexão histórica sobre os institutos jurídicos do concubinato e, mais recentemente, da união estável, abordaremos a questão proposta sob a ótica do Código Civil de 1916, das leis 8.971/94 e 9.278/96 para, finalmente, desaguarmos no texto do artigo 1.790 do NCCB.


2 – CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O CONCUBINATO E A UNIÃO ESTÁVEL.

Como muito bem aborda ARNOLDO WALD [1], o concubinato é um assunto que por muitos anos alguns civilistas excluíram dos seus estudos, por entendê-lo irrelevante do ponto de vista jurídico, enquanto outros preferiam tratá-lo como matéria inerente ao direito das obrigações.

De uma forma geral o legislador brasileiro tratou o concubinato de maneira muito restritiva, impondo-lhe uma série de sanções, que só começaram a ser abrandadas pela doutrina e pela jurisprudência no início dos anos sessenta, quando se começou a admitir o reconhecimento de direitos patrimoniais advindo de relações estáveis mantidas entre pessoas de sexo diferente, desde que não se constituísse em adultério.

Na segunda metade da década de 70, com o advento da Lei nº 6.515/77, conhecida como a lei do divórcio, e com amparo na norma existente no art. 57, § 2º da lei dos Registros Públicos – Lei nº 6.015/73 – chegou-se a admitir que a companheira de homem solteiro pudesse desfrutar do direito de utilizar-se do patronímico do companheiro.

Desde então a doutrina, atenta ao crescimento do número de uniões de casais sem o registro matrimonial, vem traçando um perfil que diferenciava a figura do concubinato daquela outra, a qual denominava companheirismo. No primeiro caso estariam as pessoas que mantinham relacionamento afetivo e sexual periódico e fora do lar conjugal, ou seja, estariam os concubinos em uma situação de adultério, face ao impedimento de um ou de ambos os concubinos para contrair núpcias. No segundo caso, tratar-se-ia da hipótese de relações afetivas e sexuais mantidas por pessoas sem impedimento para o matrimônio de forma estável e pública. Esta segunda hipótese também se conformou à doutrina denominar concubinato puro.

Pois bem. Considerando que o número de casais vivendo nestas circunstâncias era cada vez maior, o direito passou a se preocupar com as conseqüências jurídicas desses relacionamentos, mormente no que diz respeito à formação de um patrimônio comum e sua posterior sucessão, tanto intervivos, por ocasião da separação, como também em razão da morte de um dos companheiros.

Até 1988 a jurisprudência formada nos pretórios brasileiros, em especial a oriunda do Supremo Tribunal Federal, entendia que a simples situação de convivência, ainda que pública e notória e sob o mesmo teto, não seria suficiente para que fosse reconhecido o direito da concubina à parte do patrimônio amealhado ao longo da convivência.

Além da união estável, deveria a concubina demonstrar que havia constituído com o convivente uma verdadeira sociedade de fato, onde a prova da existência do esforço comum para a formação do patrimônio reclamado era fundamental para o deferimento do direito postulado.

Tal entendimento forjou a Súmula 380 do STF, oriunda de reiteradas decisões daquela Corte e que assim dispunha: "Comprovada a existência da sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum."

De fato, poderíamos distinguir três situações específicas no tocante aos eventuais direitos das concubinas.

Uma primeira posição seria referente a da concubina que além da convivência em comum teria estabelecido com o outro uma sociedade de fato desenvolvendo esforço em comum na formação do patrimônio, ensejando a aplicação da súmula 380 do STF, para a solução do direito patrimonial decorrente desta situação jurídica.

A segunda posição dizia respeito à situação da concubina que, envolvida numa união estável, apesar de não contribuir na formação direta do patrimônio durante a convivência, prestou inúmeros serviços domésticos ao concubino, merecendo, pois, uma compensação pelo esforço realizado, mormente em razão da existência de um contrato consensual de prestação de serviços domésticos.

E, finalmente, a da concubina que, não obstante o relacionamento afetivo e sexual, não contribuiu efetivamente para a formação do patrimônio e nem mesmo prestou ao outro serviços de natureza doméstica, ficando esta alijada tanto da pretensão à meação quanto de eventuais indenizações por serviços prestados.


3 - A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A UNIÃO ESTÁVEL.

A Carta Política de 1988, em seu artigo 226, § 3º, assim dispôs:

"Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...)

§ 3º. Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento."

Portanto, o constituinte de 1988 considerou a união estável mantida entre homem e mulher como tendo status de família, medida por demais louvável, até porque naquele instante não se poderia mais ignorar esta situação jurídica negando-lhe a proteção legal ou, o que era pior, impondo à mulher um ônus processual por vezes difícil de exercer, que era a prova da efetiva contribuição material para que fosse o direito à meação protegido pelo Estado.

Por evidente, parte da doutrina civilista de imediato cobriu de ácidas críticas a opção tomada pelo legislador constitucional. Argumentavam que a equiparação da união estável ao casamento seria motivo de desprestígio para o matrimônio, o que de todo era inconcebível. Tal posicionamento já vinha sendo defendido por renomados civilistas, tal qual o professor ORLANDO GOMES, que em obra datada de 1984, precedendo, portanto, o texto constitucional supra referido, já consignava que a proteção dispensada à família ilegítima, não deveria, entretanto, equipará-la àquela constituída pelo matrimônio, pois se isso ocorresse o instituto do casamento estaria irremediavelmente desacreditado pela própria lei. [2]

Dentre os críticos de tal equiparação, cumpre-nos destacar, igualmente, a posição do eminente Professor WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO [3], senão vejamos:

"De concessão em concessão, chegar-se-á ao aniquilamento da família legítima; nada mais a separará da ilegítima. De se lembrar aqui a prudente advertência de Plínio Barreto: há uma luta contínua entre as duas instituições, a legal e a ilegal, ensaiando esta (o concubinato) os mais variados meios de ação para reduzir o domínio daquela (o matrimônio). Ora, quanto mais o concubinato puxa a coberta para si, mais desnudado fica o matrimônio."

Não obstante os posicionamentos contrários à equiparação prevista na CF/88, não se pode olvidar que a Constituição não equiparou a união estável ao casamento do ponto de vista institucional, apenas garantiu às relações de fato a proteção estatal, estabelecendo a necessidade de lei ordinária que disciplinasse a união estável no tocante aos requisitos fundamentais para sua constituição, bem como precisasse os efeitos patrimoniais desta sociedade por ocasião de sua dissolução, seja por convenção das partes ou pela superveniência da morte de um dos participantes.


4 – A LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL

4.1. A LEI Nº 8.971/94

No ocaso do Governo Itamar Franco tivemos a oportunidade de assistir à promulgação da lei 8.971, de 30 de dezembro de 1994, que introduziu no direito positivo brasileiro normas de regência no que tange aos direitos dos concubinos a alimentos e aos direitos patrimoniais derivados da sucessão mortis causa.

A mencionada lei, que teve sua origem no Projeto 37/92, do Senado Federal, por iniciativa do então Senador Nelson Carneiro, como sempre incansável na busca de uma legislação de família mais justa e atualizada, cuidou da matéria de forma muito superficial, merecendo severas críticas da doutrina, mormente por entenderem alguns que ao invés de regulamentar o § 3º, do art. 226, da CF/88, facilitando a conversão da união estável em casamento, a lei teria feito exatamente o contrário, vez que pelos direitos reservados aos companheiros, estimulava o aumento das uniões estáveis desprestigiando ainda mais a instituição do matrimônio.

Apesar das críticas, algumas oriundas das penas de conceituados juristas, tais como Saulo Ramos, a lei supriu razoavelmente bem o vácuo legislativo referente à sucessão patrimonial aberta em razão da morte de um dos concubinos, facultando ao sobrevivente a proteção jurídica há muito reclamada.

Inicialmente, impende destacar que os direitos sucessórios deferidos aos companheiros no artigo 2º da Lei nº 8.971/94 pressupõem que estejam atendidos os requisitos estabelecidos no artigo 1º, que exige para a configuração da hipótese do companheirismo o decurso de no mínimo 05 anos de convivência, salvo se houver prole comum, além da inexistência de outra união e, ainda, que estivessem os companheiros vivendo efetivamente juntos por ocasião da abertura da sucessão.

Evidente a preocupação de legislador em acolher sob o manto dessa lei apenas as pessoas que estivessem vivendo um concubinato puro.

Atendidos os requisitos antes citados, o companheiro sobrevivente passou a gozar do direito de usufruto sobre parte do patrimônio deixado por ocasião da morte do outro, variando o percentual conforme tenha o de cujus herdeiros descendentes ou apenas herdeiros ascendentes.

No primeiro caso, o companheiro sobrevivente, enquanto não constituísse nova união, teria direito ao usufruto de ¼ do patrimônio hereditário. No segundo caso teria direito ao usufruto de ½ dos bens [4].

Além do direito de usufruir de parte do patrimônio do defunto, a referida legislação no inciso III, do artigo 2º, modificou o art. 1603, do Código Civil então em vigência, para incluir o companheiro sobrevivente no rol de herdeiros legítimos, bastando para tanto que o defunto não houvesse deixado herdeiros descendentes ou ascendentes ou, nesta hipótese, não houvesse testado o patrimônio de forma a afastar da sua sucessão o convivente.

Por força deste inciso III, morrendo alguém sem filhos ou ascendentes vivos, ainda que tivesse herdeiros colaterais, tais como irmãos, a herança seria integralmente recolhida pelo(a) companheiro(a) sobrevivente.

Como se pode ver, a lei nº 8971/94 estabelece o direito ao usufruto vidual, sem fazer qualquer restrição ao fato de também existir o direito de meação, conforme tratado no art. 3º, o que de plano disseminou ampla discussão doutrinária e jurisprudencial. Afinal, em havendo bens resultantes do esforço comum dos companheiros (o que garante a meação sobre este patrimônio comum ao sobrevivente), também teria direito o sobrevivo ao usufruto tratado no art. 2º ?

Sobre o tema, pedimos venia para transcrever a opinião de Euclides de Oliveira [5], com a qual estamos em perfeita sintonia.

"Meação e usufruto não se repelem, na medida em que a lei aponta causas distintas para sua percepção, sem maiores restrições. Repete-se o paralelo com o usufruto concedido ao cônjuge viúvo (art. 1.611, § 1º, do CC/16) em que se excepciona, apenas, a hipótese de casamento no regime da comunhão universal de bens, inaplicável aos companheiros.

Mas não se desconhece o caráter polêmico do tema, à consideração de que somente se justificaria o usufruto vidual como forma de atendimento ao cônjuge viúvo sem direito algum a outra forma de participação na herança. Nessa linha, a jurisprudência tem negado o usufruto ao viúvo que, embora casado sob o regime de comunhão parcial, seja meeiro nos aqüestos."

Como já afirmamos, também entendemos que o posicionamento já adotado sobre o assunto, no tocante à sucessão entre cônjuges, igualmente se aplica à hipótese de existência de direito de meação entre companheiros. Não há razão para tratamento privilegiado aos que se enquadram nesta situação jurídica.

De sorte, apesar de imprecisa, a lei nº 8.971/94 trouxe avanços no tocante ao reconhecimento de direitos sucessórios aos companheiros garantindo-lhes uma segurança jurídica até então só reservada aos casados. Não obstante, outros pontos poderiam ter sido definidos de uma vez por todas pela legislação em comento, o que infelizmente não ocorreu, vejamos, por exemplo, a tímida definição do direito de meação (artigo 3º), que na lei só se aplica à hipótese de dissolução da sociedade por morte de um dos companheiros, quando se poderia perfeitamente disciplinar a matéria inclusive para as hipóteses de dissolução intervivos, vez que da forma prevista no retrocitado artigo, o STF já havia pacificado a matéria por meio da súmula nº 380.

4.2 – A LEI Nº 9.278/96.

Em razão das críticas incidentes sobre a Lei nº 8.971/94, conforme já abordado alhures, desde logo se pensou na elaboração de nova legislação que pudesse regular toda a matéria referente à união estável, a fim de que assim, de fato, se regulamentasse o parágrafo 3º, do art. 226, da Carta Republicana de 1988.

Esta tentativa acabou por resultar na Lei nº 9.278, promulgada pelo então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, no dia 10 de maio de 1996, legislação que teve como ponto de partida o Projeto Legislativo nº 1.888, de 1991, apresentado pela Deputada Beth Azize, baseado no anteprojeto da lavra do eminente jurista Álvaro Villaça de Azevedo.

A nova legislação, repito, que tinha por fim regulamentar o art. 226, § 3º, da CF/88, logo de início muda a concepção de união estável antes prevista pela Lei nº 8.971/94, deixando de exigir para sua caracterização o decurso de prazo mínimo de cinco anos de comprovada convivência, também passando a ser desnecessário que os interessados demonstrassem os requisitos pessoais outrora previstos.

A partir de então, considerava o legislador como sendo união estável e, portanto, merecedora da proteção legal, vez que reconhecida como entidade familiar, a convivência duradoura pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de vida em comum.

Note-se que a lei nº 9.278/96 não exigia para a configuração da união estável a coabitação, haja vista que ao dispor sobre os deveres dos conviventes (art. 2º) o legislador não inclui o dever de morar sob o mesmo teto, fugindo, desta forma, à orientação adotada pelo legislador de 1916, que ao contrário, entendeu por fixar este dever no inciso II, do art. 231.

Uma das modificações introduzidas pela Lei nº 9.278/96 refere-se à presunção de existência de contribuição, e assim de sociedade, sobre os bens onerosamente adquiridos pelos conviventes na constância da relação. Tal regra afasta a necessidade de comprovação de esforço comum, como antes exigia a súmula 380 do Colendo STF.

Trata-se, a nosso sentir, de presunção absoluta, ressalvando-se, por óbvio, as exceções apresentadas na própria legislação, tais como a existência de contrato escrito dispondo em contrário e/ou a demonstração de terem sido os bens adquiridos com o produto da alienação de bens anteriores de propriedade exclusiva de um dos conviventes.

Em matéria sucessória, a Lei nº 9.278/96 estabelece em favor do convivente sobrevivo o direito real de habitação sobre o imóvel destinado à residência da família, em caráter vitalício, desde que o beneficiado não venha a constituir nova união estável ou casamento.

Não temos dúvida da natureza sucessória deste direito, exatamente porque se espelha no artigo 1.611, § 2º, do CC/1916, que reconhecia este mesmo direito ao cônjuge, portanto, somos da opinião que ainda que se revista de um caráter de assistência material, que o colocaria, podemos dizer, na conta de uma conseqüência do direito alimentar, o direito real de habitação veio a acrescer o rol de direitos sucessórios deferidos em prol do convivente por ocasião da morte do outro, por força da vigência da Lei nº 8.971/94.

Percebam que ao contrário do que sustentam alguns, a Lei nº 9.278/96 não ab rogou a Lei nº 8.971/94, que continuou perfeitamente vigente naquilo em que não foi modificada pela legislação posterior, como por exemplo, no que pertine a matéria referente à sucessão mortis causa presente no artigo 2º, acrescida do direito real de habitação que integra o parágrafo único do artigo 7º, da Lei nº 9.278/96.

Infelizmente, a nova lei dos conviventes também não foi feliz ao dispor sobre a matéria, vez que imprecisa e omissa em alguns momentos e muito benevolente em matéria de sucessão causa mortis.

Foi imprecisa ao dispensar os conviventes da obrigação de demonstrarem a ausência de impedimentos para que pudesse a união estável transformar-se em casamento.

A dispensa da comprovação da situação pessoal de cada convivente abre espaço para que se especule sobre a possibilidade de proteção jurídica a uniões múltiplas, o que de fato não era o objetivo da lei, tanto que no artigo 1º menciona o legislador a união de um homem e uma mulher. A imprecisão poderia ter sido evitada pelo legislador.

No tocante à concessão do direito real de habitação ao convivente por ocasião da dissolução da união pela morte do outro, nos parece exagerada quando já se reconhecia o direito ao usufruto e à herança, ambos pela Lei nº 8.971/94. Vejam que o convivente estaria recebendo maior proteção do que o cônjuge, vez que para este o CC/1916 reservava o direito ao usufruto ou à habitação, conforme fosse o regime de bens adotado no matrimônio, enquanto a Lei nº 9.278/96, ao não restringir o direito real de habitação, o defere cumulativamente com o exercício do usufruto já reconhecido pela legislação anterior.


5. OS Direitos dos conviventes na sucessão causa mortis e

a Lei nº 10.406/2002.

O Novo Código Civil, ao estabelecer as normas inerentes aos efeitos patrimoniais da convivência estável por ocasião da sucessão causa mortis, começa pecando pela impropriedade da técnica legislativa, ao inserir a matéria no Capítulo I, reservado para as disposições gerais, deixando de fazê-lo no local adequado que, salvo melhor juízo, deveria ser no Capítulo III, onde se encontram os dispositivos relacionados à ordem de vocação hereditária.

Nota-se que em um único artigo – art. 1790 – o legislador esgota a matéria, ensejando, por força do vazio legislativo, diversas dúvidas no operador do direito, iniciando-se pela incerteza quanto à manutenção ou não, no que é pertinente às questões da sucessão hereditária, das Leis nºs 8.971/94 e 9.278/96.

O eminente Prof. SÍLVIO DE SALVO VENOSA, ao comentar as mudanças do Novo Código Civil, com peculiar lucidez abordou logo de início a imprecisão gerada pela redação contida no caput do art. 1.790, que expressamente reserva a "participação" do consorte na herança do outro, somente quanto aos bens adquiridos de forma onerosa na vigência da união estável.

Ora, o Novo Código Civil, no livro reservado ao Direito de Família, mais precisamente no art. 1.725, estabelece que:

"Art. 1725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens."

Se há na ordem jurídica civil vigente expressa autorização para que os conviventes contratem um regime de bens diverso do previsto na comunhão parcial, nos parece um contrasenso estabelecer que os efeitos patrimoniais sucessórios decorrentes do falecimento de um dos conviventes restrinja-se aos bens onerosamente adquiridos na constância da união. E se os conviventes optaram por regular suas relações patrimoniais de forma diferente da estabelecida no regime da comunhão parcial de bens? Seria justo privar o sobrevivente da sucessão hereditária no tocante aos bens adquiridos antes do início da união?

A aplicação literal da norma presente no artigo 1790 parece indicar que o desejo do legislador foi realmente restringir a participação do convivente ao patrimônio formado após o início da convivência, o que forçaria, como bem destaca SILVIO VENOSA, a adoção da solução testamentária quando a intenção dos conviventes fosse a de ampliar o campo de ação das regras sucessórias, já que o contrato escrito pactuado pelos conviventes, definindo regime de bens diverso do legal, efetivamente não pode substituir o testamento, conforme princípio que pontua esta figura jurídica.

Outro ponto que certamente suscitará dúvidas e, portanto, acirrados debates na doutrina e na jurisprudência, consiste, como já citamos antes, em definir se o novo código revogou totalmente as Leis nºs 8.971 e 9.278, naquilo em que estas regulavam a matéria relacionada à sucessão mortis causa.

Pela aplicação do princípio da especialidade, somos da opinião de que estariam revogados os artigos 2º da Lei nº 8.971/94 e o parágrafo único, do art. 7º, da Lei nº 9.278/96, vez que tratam de questões pertinentes à sucessão causa mortis, que agora são expressamente disciplinadas no art. 1.790, do Novo Código Civil.

A prevalecer este entendimento, sem dúvida o convivente que sobreviver experimentará uma injustificável diminuição no seu patrimônio jurídico, já que os direitos antes previstos nas acima referidas legislações foram revistos e reduzidos pelo NCCB.

Antes de 11/01/2003, data de início da vigência da Lei nº 10.406/2002, sobrevindo a morte do autor da herança, sendo ele convivente e não tendo deixado herdeiros necessários – à época descendentes e ascendentes – o(a) companheiro(a) sobrevivente recolheria a herança em sua totalidade, não obstante a existência de herdeiros legítimos colaterais. Esta a dicção que se extraía do inciso III, do art. 2º, da Lei nº 8.971/94.

Pois bem. Após 11/01/2003, com aplicação do disposto no art. 1.790 do NCCB, usando o mesmo exemplo do parágrafo acima, e desde que a abertura da sucessão tenha se verificado em data posterior a 10/01/2003, o(a) companheiro(a) sobrevivente só terá direito a recolher a totalidade da herança se não existirem parentes sucessíveis do autor da herança, por força da norma que se extrai da leitura do inciso III, do artigo supracitado.

Vejam, portanto, que antes o(a) companheiro(a) sobrevivo era precedido na ordem vocacional sucessória apenas pelos descendentes ou ascendentes do de cujus. Hoje, para que o(a) companheiro(a) sobrevivente receba toda a herança é preciso concorrer com herdeiros colaterais do falecido até o 4º grau.

Também foi infeliz o legislador quando ao tratar dos direitos sucessórios dos companheiros, não inseriu expressamente o direito real de habitação, antes previsto no parágrafo único do art. 7º, da Lei nº 9.278/96. No silêncio do NCCB sobre o assunto, somos pelo entendimento que se encontra revogado o referido parágrafo único e, por conseguinte, afastada do ordenamento jurídico pátrio a possibilidade de deferir ao companheiro, por ocasião da morte do outro, o direito real de habitação.

Ousamos, neste ponto, divergir do posicionamento adotado pelo Professor SÍLVIO DE SALVO VENOSA, por entender que mesmo na Lei nº 9.278/96 a norma inserida no parágrafo único, do art. 7º, tinha natureza de direito sucessório, tal qual a que existia no § 2º, do art. 1.611, do Código Civil/1916.

De sorte, se o legislador, ao ordenar no artigo 1.790 os direitos sucessórios dos companheiros, não incluiu o direito real de habitação, que expressamente se encontra previsto no art. 1.831, quando se trata da sucessão do cônjuge, é porque, ao meu sentir, teve a clara intenção de excluir tal vantagem que antes lhe era reservada. Seria, assim, um outro retrocesso legislativo.

Talvez afinado com este mesmo pensamento é que o Poder Legislativo, por meio do Projeto de Lei nº 6.920/2002, pretende modificar não só a redação do artigo 1.790, mas também o conteúdo do direito ali depositado, acrescentando ao artigo o parágrafo único que reedita a norma relacionada ao direito real de habitação, conforme havia estabelecido a Lei nº 9.278/96, porém de forma mais adequada, uma vez que corrige as imprecisões contidas no dispositivo da Lei nº 9.278/96, estabelecendo que o direito em tela só seria reconhecido na hipótese de ser o único destinado à residência da família.


6. CONCLUSÃO.

Não obstante os princípios da eticidade, socialidade e operabilidade, que efetivamente se encontram em destaque no Novo Código Civil, nos parece que as normas que integram o art. 1.790, das Disposições Gerais, do Livro IV, reservado ao Direito das Sucessões, merecem urgente revisão.

Extreme de dúvida que o princípio da socialidade do Direito Civil não se encontra presente no tocante aos direitos sucessórios decorrentes das relações estáveis entre homem e mulher.

Num primeiro momento, urge modificar a redação do caput do art. 1.790 de modo a permitir que o direito sucessório também seja assegurado aos conviventes que tenham contratado entre si regime de bens diverso daquele previsto na comunhão parcial. Também merece modificação o inciso IV, do mencionado artigo, para que seja o(a) companheiro(a) sobrevivente chamado(a) a receber integralmente a herança na falta de descendentes ou ascendentes do de cujus, inserindo, expressamente, a figura do companheiro no inciso III do art. 1.829.

Por fim, de se registrar que comungamos com o mesmo posicionamento defendido pela Advogada CIBELE PINHEIRO MARÇAL TUCCI6, no sentido de que embora não seja adequada a novidade presente na Lei nº 10.406/2002 no que se refere à concorrência do cônjuge na legítima dos herdeiros descendentes e ascendentes, se assim optou o legislador, não vejo razão para não se estender o mesmo direito ao companheiro, equiparando-o em definitivo ao cônjuge, quando se tratar de proteção jurídica em razão da sucessão aberta pelo falecimento do outro.


Notas

1 Wald, Arnoldo – O novo direito de Família – 14 ed. Revista – Editora Saraiva, 2002 / p. 235.

2 Direito de Família, 6ª ed., São Paulo, p. 40

3 Curso de Direito Civil; direito de família, 20 ed. São Paulo, Saraiva, p. 18.

4 Art. 2º, incisos I e II, da Lei nº 8.971/94

5 Euclides de Oliveira, União Estável – Do concubinato ao casamento, Ed. Método, 6º edição, p.208

6 Novo Código Civil – Doutrinas/Assunto Especial – Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, nº22 – março-abril 2003, p. 112/115.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Luiz Victor Monteiro. A união estável e o direito sucessório face ao novo Código Civil brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 332, 4 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5239. Acesso em: 16 abr. 2024.