Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/53793
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A judicialização dos direitos sociais no Brasil em perspectiva

A judicialização dos direitos sociais no Brasil em perspectiva

Publicado em . Elaborado em .

Neste artigo, apresenta-se uma perspectiva dos Direitos Sociais, partindo de seu surgimento até sua positivação pela Carta Constitucional de 1988, abordando a judicialização da matéria.

INTRODUÇÃO      

O século XVIII foi marcado, dentre outros fatos, pelo desenvolvimento do Constitucionalismo e pelo surgimento dos Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão – aqueles que compreendem uma atuação positiva do Estado, a fim de suprir as necessidades básicas do povo. Visava-se uma melhoria das péssimas condições trabalhistas, resultantes do desenvolvimento industrial, através da implantação de uma política de assistência social e da elaboração de normas garantidoras de direitos mínimos fundamentais a uma existência digna: os chamados direitos sociais.

A Constituição mexicana de 1917 e a de Weimar, na Alemanha, em 1919, destacam-se por serem as pioneiras em trazer de forma positiva a implicação do Estado na garantia dos direitos sociais. No Brasil, tal avanço só viria na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934 e se manteve nas constituições brasileiras posteriores, inclusive na Constituição da República Federativa do Brasil  de 1988 (CRFB/1988), atualmente vigente.

Na CRFB/1988, o legislador constitucional optou por criar um capítulo próprio para os direitos sociais, diferenciando-os dos direitos de ordem econômica – que, em constituições anteriores, encontravam-se sempre misturados com os de ordem social. O artigo 6º traz um rol de direitos sociais positivados na Constituição Federal de 1988:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (BRASIL, Constituição, 1988)

Os direitos sociais garantidos pelo texto constitucional são aqueles que possibilitam melhores condições sociais à população e se ligam, de certa forma, à igualdade jurídica, com o escopo de alcançar ou tornar propício o alcance da chamada igualdade material: dar assistência desigual aos desiguais com a finalidade de torná-los iguais aos demais. Como assevera José Afonso da Silva (2014), “valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais, na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real – o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade.”.


ASPECTOS CONCEITUAIS DOS DIREITOS SOCIAIS

 Segundo Silva (2014), não é fácil separar os direitos sociais dos econômicos, visto que estão interligados, mas conclui que o direito econômico tem dimensão institucional e os direitos sociais constituem formas de tutela social. Para ele, os direitos sociais disciplinam situações subjetivas, pessoais ou grupais, de caráter concreto, sendo, portanto, prestações positivas proporcionadas pelo Estado, direta ou indiretamente, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, promovendo maior igualdade.

Mendes (2012) concorda com o insigne constitucionalista e acrescenta que, em relação aos direitos sociais, é preciso levar em consideração que a prestação devida pelo Estado varia de acordo com a necessidade específica de cada cidadão.  Ou seja, enquanto o Estado tem que dispor de um valor determinado para arcar com o aparato capaz de garantir a liberdade dos cidadãos universalmente, no caso de um direito social como a saúde, no entanto, deve dispor de valores variáveis em função das necessidades individuais de cada cidadão.

A CRFB/1988, em seu art. 6°, elenca os  direitos sociais – educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados – e indica ainda outros, como os inscritos no artigo 7° – que trata dos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais –, no artigo 8° – que trata da associação profissional ou sindical – , no artigo 9° – que trata do direito de greve – , no artigo 10 – que trata da participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos – e  no artigo 11 – que institui a eleição de representante em empresas de mais de duzentos empregados.

Pela leitura de tais dispositivos, infere-se que os direitos sociais buscam, acima de tudo, a dignidade da pessoa humana, por meio de direitos que são fundamentais na formação de uma sociedade digna e igualitária. São direitos que buscam suprir tanto as necessidades individuais quanto as coletivas.


CARACTERISTICAS DOS DIREITOS SOCIAIS

Os direitos sociais, embora assim denominados, são direitos de conteúdo econômico-social. Separar com nitidez os direitos sociais dos direitos econômicos não é um exercício simples. Nesse sentido, José Afonso da Silva (2014) cita como exemplo do imbricamento das naturezas econômica e social os direitos dos trabalhadores que, sendo um componente das relações de produção (de natureza econômica indiscutível, portanto), foram incluídos pelo constituinte como espécie dos direitos sociais (art. 7º).

Em certo sentido, pode-se admitir que os direitos econômicos constituirão pressupostos da existência dos direitos sociais, pois sem uma política econômica orientada para a intervenção e participação estatal na economia não se comporão as premissas necessárias ao surgimento de um regime democrático de conteúdo tutelar dos fracos e mais numerosos (SILVA, 2014, p.186).

Direitos de segunda geração – ou dimensão, como preferem outros –, os direitos sociais se apresentam como prestações positivas a ser implementadas pelo Estado, afim de possibilitar “melhores condições de vida aos mais fracos; direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais” (SILVA, 2014, p. 187).

O advento da CRFB/1988 trouxe significativos avanços no que se refere aos direitos sociais, pois, de forma inovadora, dedicou um capítulo exclusivo para seu tratamento, no título “Dos direitos e garantias fundamentais”. Nas Constituições anteriores, os direitos sociais sempre estiveram misturados com a ordem econômica, sendo a primeira delas a de 1934, sob influência da Constituição Alemã de Weimar (SILVA, 2014, p. 186).

José Afonso da Silva (2014, p. 187) propõe a seguinte classificação dos direitos sociais: a) direitos relativos ao trabalhador (arts. 7º a 11); b) direitos sociais relativos à seguridade social, abrangendo os direitos à saúde, à previdência social e à assistência social (arts. 193 a 204); c) direitos sociais relativos à educação, à cultura e ao esporte (arts. 205 a 2017); d) direitos sociais relativos à família, à criança, ao adolescente, ao idoso e às pessoas portadoras de deficiência (arts. 226 a 230); e e) direitos sociais relativos ao meio ambiente (art. 225). São, portanto, os direitos sociais, na concepção do insigne constitucionalista, proporcionadores do exercício efetivo da liberdade.


DIREITOS SOCIAIS EM ESPÉCIE

Direito à Alimentação

Pela primeira vez foi reconhecido num texto constitucional de fato como um direito fundamental social, com a finalidade principal de tirar a visão assistencialista e compensatória desse direito e mirar na necessidade do combate à fome e à miséria, sem, contudo, alterar a base econômica e política do país. A Lei 11.346 de 15.9.2006 em seu artigo 3º traz a definição da segurança alimentar e nutricional como direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos com quantidade e qualidade a garantir a saúde, respeitando as diversidades. Garantiu-se então, através de programas, um mínimo vital do direito à alimentação, direito inerente à dignidade da pessoa humana, como dispõe o art. 2º da referida lei. (SILVA, 2014).

Direito à Segurança

Tal direito está presente no artigo 5º, porém, segundo Pedro Lenza (2015), com um sentido diverso do encontrado no art. 6º, porque aquele expressa sentido de segurança individual, enquanto este refere-se à segurança pública, sendo, como os demais direitos fundamentais sociais, uma responsabilidade de todos e um dever do Estado e, como observa o art. 144, caput, com o objetivo de preservar a ordem pública e a incolumidade das pessoas assim como do patrimônio. (LENZA, 2015).

Direito ao Trabalho

Sua presença é vital para garantir às pessoas uma existência digna (art.170, caput). De acordo com Lenza (2015), é responsabilidade do Estado promover um arranjo político econômico não recessivo, por essa razão prevalece o princípio da busca do pleno emprego. O direito ao trabalho é princípio da República, art. 1º, inciso IV, da CRFB/1988, e a ordem econômica está baseada na “valorização do trabalho humano e na livre iniciativa”. (LENZA, 2015).

Direito à Moradia

Foi introduzido no art. 6º pela Emenda Constitucional 26, porém já era visto como direito social pelo art. 23, que coloca como competência da União e dos entes federados “promover programas de construção de moradias e a melhora das condições habitacionais de saneamento” (art. 23 CF). O direito à Moradia se conceitua como “ocupar um lugar como residência”, seja casa, apartamento ou outros. Esse direito não se refere à casa própria, apesar de a mesma ser a maneira mais eficaz de torná-lo efetivo. Ele possui ainda duas acepções jurídicas: uma negativa, na qual o cidadão não pode ser privado de uma moradia e também não pode ser impossibilitado de adquirir uma; e outra positiva, que “consiste no direito de obter uma moradia digna e adequada, revelando-se como um direito positivo de caráter prestacional”, legitimando, assim, o titular em sua pretensão de concretizar o direito através da ação positiva do Estado. (SILVA, 2014).

Direito ao Lazer

Conforme Lenza (2015), a natureza social desse direito é consequência do fato de que são ações estatais que influenciam o trabalho e a qualidade de vida, equilibrando as relações entre os indivíduos e o meio ambiente. Lazer é a entrega à ociosidade repousante, já recreação consiste na entrega ao divertimento, ao esporte, ao brinquedo, sendo que, para a realização dos dois, é necessário haver locais adequados, com sossego e com elementos que proporcionem a alegria e a folga. De acordo com o art. 217, §3º (CRFB/1988), o Poder Público deve proporcionar o lazer com a finalidade de promoção social. (LENZA, 2015).

Direito à previdência social

O direito à previdência social é definido como um complexo de direitos que se referem a seguridade social. Tal direito está fundado no princípio de seguro social, benefícios e serviços que se destinam a cobrir eventos de doença, invalidez, morte, velhice e reclusão, cuja base de cobertura está baseada na “contribuição”, favorável ao contribuinte e aos seus dependentes. O Regime de previdência social está presente na Constituição através da Emenda Constitucional 20/1998. 


JUDICIALIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS

A garantia dos direitos sociais dada pelo texto constitucional faz com que o judiciário seja invocado em face da omissão do Estado em seu papel garantidor de tais direitos. Segundo José Afonso da Silva (2014, p. 186), os direitos sociais se ligam com o direito de igualdade e se efetivam através de prestações positivas proporcionadas pelo Estado que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos.

Embora o artigo 6º da Constituição Federal defina como direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade, a proteção à infância e a assistência aos desamparados; tem-se verificado, no que toca à judicialização dos direitos sociais, que a grande maioria dos processos se referem à saúde. No tocante à saúde – requisito básico para uma existência condigna, do qual decorrerá o exercício dos demais direitos – há uma predominância de ações individuais, o que se pode reputar à máxima de que “cada caso é um caso”, advindo daí necessidades e solicitações pontuais, específicas de cada indivíduo. Uma vez impossibilitado de acessar aos recursos de que a medicina e a farmácia dispõem, o cidadão recorre ao estado, mormente como a última alternativa.

Em estudo que pesquisou demandas envolvendo direito à saúde e à educação em cinco estado brasileiros, além da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, foi constatado que 96% dos litígios referiam-se à saúde, enquanto apenas 4% versavam sobre direito à educação. Destes, somente 2% dos casos de direito à saúde eram ações coletivas, ao passo que 81% dos casos relativos à educação eram reclamações coletivas (MENDES, 2013, p. 632).

O supracitado autor, diante da judicialização dos direitos sociais, salienta que não cabe ao Poder Judiciário formular políticas sociais e econômicas, cabendo-lhe ater-se à verificação das políticas de implementação de direitos no que concerne aos ditames constitucionais do acesso universal e igualitário (MENDES, 2012, p. 505). Vale dizer que o Judiciário não é operador de políticas públicas, mas, e tão somente, observador delas no referente à legalidade.

É possível observar, pelo que se veicula nos noticiários, que paira sobre significativa parte da população a noção de que vale tudo na garantia dos direitos sociais e que o Estado deve atender indiscriminadamente ao que lhe for pleiteado, ficando evidente um entendimento equivocado de que todas as demandas devem ser sanadas pela administração pública.

Recentemente, os meios de comunicação no Brasil deram destaque ao movimento de pessoas com câncer que pediam a liberação de um fármaco de eficácia questionável e sobre o qual ainda não constam pesquisas conclusivas. Trata-se da fosfoetanolamina sintética, conhecida como “a pílula do câncer”. A tal “medicamento” é atribuído o poder de auxiliar no tratamento, ou mesmo a cura, do câncer. Diante da expectativa do combate eficaz à doença, grande número de pacientes acionaram o Poder Judiciário afim de que se revertesse a negativa do Sistema de Saúde em fornecer as pílulas de fosfoetanolamina sintética. Magistrados de todo o Brasil se mostraram divididos ao proferir suas decisões. Aqui, via-se uma decisão favorável ao pleito do paciente. Acolá, via-se uma negativa em obrigar que se lhe fornecessem as pílulas. A esse respeito, Mendes (2013) não vê como adequada a intervenção do Poder Judiciário no sentido de fazer liberar o uso de medicamentos sobre os quais a medicina ainda não se convenceu da eficácia no tratamento de doentes.[1]

Na hipótese de o medicamento ser ainda experimental, a Administração Pública deve zelar pela segurança e qualidade das ações e prestações de saúde, não sendo razoável que decisões judiciais determinem o custeio dessa espécie de tratamento, de eficácia duvidosa, associado a terapias alternativas (MENDES, 2013, p. 630).

A questão posta envolve tecnicalidades em que opiniões divergentes se colocam de frente e levam seus argumentos, cabendo ao Poder Judiciário dar a palavra final. Em meio ao embate de discursos e razões, Mendes (2013, p. 631) observa que as pessoas beneficiadas pela intervenção da toga são aquelas que possuem mais acesso à informação e um padrão socioeconômico mais elevado. Tal quadro levaria a uma situação contraditória ao projeto constitucional, que visa à extinção de benefícios ou privilégios.

A judicialização dos direitos sociais faz evidenciar a desigualdade que há na composição da sociedade brasileira e torna o Poder Judiciário um instrumentalizador de desigualdades, já que esse só age se provocado e só o provoca quem conhece direitos e meandros do Estado brasileiro.


CONCLUSÃO

Neste trabalho, evidenciou-se o reconhecimento da dignidade humana contido no texto constitucional. A Carta de 1988 trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro o reconhecimento dos direitos a saúde, educação, alimentação, trabalho, moradia lazer e segurança – os chamados direitos sociais.

A importância dos direitos sociais se liga à razão de ser do próprio Estado brasileiro, que tem como um de seus objetivos aquele de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I da CRFB/1988). Através deles, os cidadãos buscam o mínimo necessário a uma existência digna, entendendo-se como dignidade o valor de que se reveste tudo aquilo que não tem preço, ou seja, que não é passível de ser substituído por um equivalente.

A análise dos direitos sociais contida neste trabalho possibilitou a estes acadêmicos um entendimento do direito que ultrapassa o mero saber de leis e processos, alcançado uma dimensão humana, essencial aos operadores do direito. Este estudo também leva a uma noção de Estado mais abrangente do que a de pessoa jurídica de direito público; mais do que isso, o Estado é um grande esforço humano que visa à superação de misérias e mazelas; visando, enfim, a já referida dignidade.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição República Federativa do Brasil. 1988.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 19ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 8ª Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2013.

MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 9ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2014. 


Nota

[1] No que se refere à fosfoetanolamina sintética, mesmo diante da inconclusividade dos estudos e da não liberação de sua ministração pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa, por decisão política foi autorizado seu uso através da Lei n. 13.269, de 13 de abril de 2016.


Autor


Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelo autor. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi.