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Aposição de ciente sem recurso.

Advogado dativo. Defensor Público. Promotor na defesa de interesses individuais. Advogado sem poderes específicos. Ilegalidade. Responsabilidade civil

Aposição de ciente sem recurso. Advogado dativo. Defensor Público. Promotor na defesa de interesses individuais. Advogado sem poderes específicos. Ilegalidade. Responsabilidade civil

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Todos os atos praticados em um processo judicial, seja ele de natureza penal ou civil, devem ser comunicados as partes, como regra na pessoa de seu advogado, constituído ou dativo.

O Código de Processo Civil, em seu artigo 234, preceitua que "intimação é o ato pelo qual se dá ciência a alguém dos atos e termos do processo, para que faça ou deixe de fazer alguma coisa".

Em outras palavras, por meio da intimação se comunica à parte que algo ocorreu no processo, esta comunicação se presume que chegará ao conhecimento da parte por meio de seu advogado.

A relação entre a parte e o advogado é disciplinada a partir do artigo 38 do Código de Processo Civil brasileiro, que é assim grafado: "a procuração geral para o foro, conferida por instrumento público, ou particular assinado pela parte, habilita o advogado a praticar todos os atos do processo, salvo para receber a citação inicial, confessar, reconhecer a procedência do pedido, transigir, desistir, renunciar ao direito sobre que se funda a ação, receber, dar quitação e firmar compromisso".

Portanto, como regra, os advogados apenas possuem poderes gerais, salvo se no instrumento de procuração contiver cláusula concedendo poderes especiais. Os advogados dativos, os Defensores Públicos e o Ministério Público, este último quando na defesa de interesses individuais, portanto, apenas possuem poderes gerais, excluídos os mencionados na parte final do artigo 38 do Código de Processo Civil.

Apesar da ausência de poderes específicos para renunciar ao direito sobre que se funda a ação, a prática indica que é comum a aposição da expressão, ciente, sem recurso, quando da intimação de sentenças e despachos por parte de advogados dativos, Defensores Públicos e membros do Ministério Público, na defesa de interesses individuais.

Tal pratica, contudo, afigura-se ilegal. Imaginemos algumas hipóteses cíveis e criminais:

Determinada pessoa é denunciada por infração ao artigo 157 do Código Penal. Apesar dos argumentos apresentados pela Defensoria Pública local resta condenado. Ao ser intimado, pessoalmente, da sentença manifesta o desejo de recorrer. A Defensoria Pública apresenta as razões recursais, que, entretanto, são rejeitadas pelo Tribunal de Justiça. O Acórdão é confeccionado. O Defensor, ao ser intimado, diz que: ciente, sem recurso.

Em outra situação, de natureza cível, a Defensoria Pública, o advogado dativo ou o Ministério Público patrocinam uma ação civil ex delicto. A decisão, em primeira ou segunda instância, entretanto, é desfavorável ao autor. Intimação dirigida à Defensoria Pública que exara o famigerado ciente, sem recurso.

Nas duas hipóteses acima, o encarregado por patrocinar a defesa dos interesses da parte, com a aposição do ciente, sem recurso, simplesmente renunciou ao direito que a parte postulava, sem que tenha poderes para tanto.

O advogado dativo ou o defensor público, como já assente na doutrina e na jurisprudência, não são obrigados a interposição de recursos. Devem, na análise do caso concreto, seguir os ditames de sua consciência. Mas daí a se permitir que renuncie ao direito da parte, que não lhe outorgou poderes para tanto, já vai uma grande distância.

Nas hipóteses aventadas o advogado dativo ou defensor público fulminaram as hipóteses recursais. E se as partes (os donos do direito) resolverem contratar advogados particulares para prosseguir com a ação, levando-a, por exemplo, ao conhecimento do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal. Com quais poderes o advogado dativo ou o Defensor Público agiram? Obviamente nenhum.

Em matéria criminal, onde resta em jogo a liberdade um dos bens mais valiosos do ser humano a aposição da expressão ciente sem recurso, em muitas vezes autoriza o início do cumprimento da pena. Significa o reconhecimento da procedência da pretensão estatal, por alguém que não tem a confiança da parte.

A maior parte das pessoas defendidas pelos serviços de assistência judiciária, defensores públicos ou advogados dativos não o fazem por escolha, mas apenas por falta de recursos materiais para contratar um advogado. Não é o caso de se discutir quem é melhor: o advogado público ou privado, mas de se reconhecer que a relação de fidúcia inexiste, na maioria das vezes, entre o defensor público e o assistido.

Desta forma, afigura-me ilegal a prática instalada ao longo do País em que defensores públicos e advogados dativos renunciam ao direito de recorrer, apondo a expressão ciente sem recurso, sem que tenham autorização expressa do Réu neste sentido. Demonstrada a ilegalidade, há de se perquirir suas conseqüências.

A primeira, e talvez a principal delas, é que tal expressão deve ser considerada como não escrita, pois destituída de valor. A segunda conseqüência deve ser analisada à luz da responsabilidade civil.

Sérgio Cavalieri Filho (Programa de Responsabilidade civil) discorre, com percuciência, sobre a responsabilidade civil do advogado. Diz que:

A advocacia, dada a relevância do seu papel social, foi colocada na Constituição entre as funções essenciais da Justiça, ao lado do Ministério Público e da Defensoria Pública. Para proporcionar ao advogado as condições necessárias ao pleno exercício de sua profissão, com liberdade, independência e sem receio de desagradar a quem quer que seja, a Constituição (art. 133) lhe assegura a inviolabilidade por seus atos e manifestações, nos limites da lei. Mas, em contrapartida, deve responder pelos seus atos quando violadores dos deveres profissionais.

Ora, o advogado, dativo ou particular, ou o Defensor Público que age fora dos limites dos poderes que possui inequivocamente viola o seu dever profissional e deve ser responsabilizado em todas as esferas possíveis, inclusive civilmente.

O autor acima citado rememora que o advogado privado responde contratual e pessoalmente, mas que quando o ato ilícito é praticado por Defensor Público ou por Procurador de entidades públicas a responsabilidade será objetiva e suportada pela Pessoa Jurídica de Direito Público em nome da qual atua, de acordo com as regras que regem a responsabilidade do Estado. Ressalva, entretanto, o direito de regresso.

Obviamente a responsabilidade não pode decorrer da simples existência da sucumbência. Relembrando as hipóteses lembradas no início deste estudo, o Réu não teria direito a auferir uma indenização pelo fato de ter sido condenado, nem pelo fato da pretensão veiculada na ação civil ex delicto lhe ser desfavorável. A responsabilização pelo resultado adverso somente teria lugar nos casos de culpa grave, conforme resulta da interpretação do artigo 34, IX do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil.

A responsabilidade patrimonial decorreria da supressão de uma possibilidade, pelo abuso no exercício dos poderes que lhe foram conferidos, ou pior, pelo exercício de um poder que não tinha, o de desistir do restante do prazo recursal, que, em última análise, significa renúncia ao direito sobre o qual se funda a ação.

Como já mencionado, no que respeita à conveniência ou não de recorrer, entendo, acato integralmente a lição de Sérgio Cavalieri Filho, que sendo o advogado o primeiro juiz da conveniência de se ajuizar ou não a ação, deve sê-lo, também, da conveniência de recorrer, mormente se tratando de recurso especial ou extraordinário, sujeitos a requisitos rigorosos de admissibilidade.

A responsabilidade patrimonial que aqui se sustenta decorre da renúncia ao direito de recorrer, da supressão de uma oportunidade, sem que se tenha poder específico para tanto. Tal renúncia, sem a autorização do réu, em um sistema positivo como o nosso, onde sempre existe uma corrente minoritária, uma divergência jurisprudencial ou doutrinária trata-se de verdadeira aberração.

Cabe salientar que o direito de não recorrer não é um direito absoluto do advogado dativo ou do defensor público, pois se existirem os pressupostos necessários para a interposição de algum recurso estes devem ser manejados. A liberdade, nesta hipótese, é vinculada, máxime para o Defensor Público.

Assim, tenho que o acima exposto é suficiente para concluir-se pela ilegalidade da freqüente aposição da expressão ciente sem recurso, por parte de defensores públicos, advogados dativos, procuradores de assistência judiciária e por advogados privados sem que tenha poderes expressos e específicos para renunciar ao direito sobre que se funda a ação.


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Informações sobre o texto

Título original: "Aposição de Ciente sem recurso. Advogado dativo. Defensor Público. Ministério Público na defesa de interesses individuais. Advogado privado sem poderes específicos. Ilegalidade. Responsabilidade civil".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, André de Moura. Aposição de ciente sem recurso. Advogado dativo. Defensor Público. Promotor na defesa de interesses individuais. Advogado sem poderes específicos. Ilegalidade. Responsabilidade civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 518, 7 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6011. Acesso em: 18 abr. 2024.