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Das alterações introduzidas pela Lei nº 10.931/2004 no instituto da alienação fiduciária em garantia

(Decreto-Lei nº 911/1969 e Lei nº 4.728/1965)

Das alterações introduzidas pela Lei nº 10.931/2004 no instituto da alienação fiduciária em garantia. (Decreto-Lei nº 911/1969 e Lei nº 4.728/1965)

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Prima facie, mister ressaltarmos que o presente estudo não tem a pretensão de esgotar os debates sobre a matéria, mas sim suscitar questões relevantes para que os operadores do direito possam tirar as suas conclusões e pôr em prática a novel legislação.

A Lei n.º 10.931 publicada no Diário Oficial da União em 03/08/2004, alterou significativamente a Lei n.º 4.728/65 e o Dec. Lei 911/69, sendo que esse último estabelece normas procedimentais sobre alienação fiduciária em garantia e dá outras providências.

Não podemos deixar de citar que, o Código Civil em vigor (Lei n.º 10.406/02) também disciplinou a matéria de propriedade fiduciária em seu Livro III, Título III, Capítulo IX (art.s. 1.361/1.368).

Como intróito, é de bom alvitre tecermos singelos comentários sobre conflitos de leis no tempo, a despeito da revogação, ab-rogação ou derrogação do Dec. Lei 911/69, pois alguns doutrinadores de renome vêem entendendo que tanto o Código Civil quanto a Lei 10.931/04 teriam ab-rogado o Decreto Lei 911/69, o que data maxima venia não concordamos.

A dúvida pairou na mente dos operadores, porque a Lei 10.931 em seu art. 67 dispôs que os art.s 66 e 66-A da Lei 4.728/65 foram revogados, mas não disse o mesmo do Decreto Lei 911/69, e este já havia alterado o mesmo art. 66 da referida lei.

Por outro lado, o Código Civil em seu art. 2.043 estabelece que, continuam em vigor as disposições de natureza processual constantes de leis cujos preceitos de natureza civil tenham sido incorporados ao Código, o que nos leva a considerar plenamente em vigor todas as normas procedimentais da ação de busca e apreensão, com as alterações introduzidas.

Desta feita, ao fazermos a correta comparação e ponderação das normas digladiadas, podemos compreender que o Dec. Lei 911/69 foi derrogado pela Lei 10.931 e pelo Código Civil, ou seja, foi revogado em parte, sendo, inclusive, conferida nova redação ao seu art. 3º, acrescido o art. 8-A, como também o 66-B a Lei 4.728/04.

Assim, podemos chegar à conclusão de que devem coexistir harmonicamente o Dec. Lei 911/69, o Código Civil (Lei n.º 10.406/02) e a Lei 10.931/04, da seguinte forma:

1.O Código Civil não revogou o Dec. Lei 911/69, mas sim trouxe inovações que devem ser aplicadas ao instituto, em especial no tocante aos contratos desta natureza (art. 1361 e seus parágrafos e 1.362);

2.O art. 1º do Dec. Lei 911/69, o qual conferiu nova redação ao art. 66 da Lei 4.728, foi revogado, passando a vigorar o Art. 55 da Lei 10.931/04 (art. 66-B) e não podemos deixar de ressaltar que o Código Civil (art. 1.361/1362) também contempla a matéria ventilada nesse artigo;

3. Subsistem os art.s. 2º, 3º caput, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º e 9º do Dec. Lei 911 por tratarem de matéria eminentemente procedimentais da ação de busca e apreensão sem as quais tal procedimento restaria esvaziado;

4.O caput do art. 3º do Dec. Lei 911/69 permanece íntegro, sendo totalmente revogados os seus incisos, passando a vigorar os incisos do art. 56 da Lei 10.931;

5.Finalmente, foi acrescentado o Art. 8-A ao Dec. Lei 911/69.

Tais dúvidas foram geradas devido à falta de cuidado do legislador, ou até mesmo por falta de conhecimento sobre as peculiaridades da matéria em comento, o que data maxima venia é um erro escusável ante os legisladores hodiernos.

Diante disso, podemos afirmar que o Dec. Lei 911/69 não foi ab-rogado, mas sim derrogado, estando plenamente em vigor os artigos supracitados, caso contrário o instituto restaria esvaziado, pois normas procedimentais de suma importância para o regular desenvolvimento da ação de busca e apreensão não seriam mais aplicáveis.

Superada a discussão acima, passaremos a análise dos dispositivos inovadores da Lei n.º 10.931/04.

Logo de princípio, o art. 55 que alterou a seção XIV da Lei 4.728/65, criou o art. 66-B o qual expressamente dispõe sobre a aplicabilidade da Lei n.º 10.406/02 no tocante a celebração do contrato que trás em seu bojo a garantia fiduciária.

Nos exatos termos dos art.s. 1361 e 1362 do Código Civil estão delineados, respectivamente, o conceito da propriedade fiduciária e os requisitos básicos do contrato.

A propriedade fiduciária se origina quando determinada pessoa (devedor-fiduciante), em razão do negócio jurídico celebrado, transfere a outra (credor-fiduciário) a posse indireta de determinado bem móvel infungível, sendo esta uma propriedade resolúvel.

Apesar de ser muito utilizada nos financiamentos de bens de consumo, a alienação fiduciária também se configura como um importante instrumento de garantia nas operações de financiamento para empresas. No entanto, sua utilização em referidos financiamentos quando o credor não é uma instituição financeira nacional sofreu grandes questionamentos nos tribunais.

O STF acabou por determinar que somente as instituições financeiras sujeitas à fiscalização do Banco Central do Brasil, poderiam utilizar o instituto, inclusive nos casos de financiamentos concedidos por instituições estrangeiras.

O contrato pode ser firmado por instrumento público ou particular e o título deve ser registrado junto ao Cartório do Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, ou em se tratando de veículos junto à repartição competente para o licenciamento.

Neste ponto, havia uma grande discussão sobre a necessidade ou não do registro do contrato junto ao RTD e/ou repartições de licenciamento de veículos.

Alguns doutrinadores e julgadores entendiam que tal providência era imprescindível, pois o revogado art. 1º do Dec. Lei 911/69 em seu §1º dispunha expressamente que: "(...) será obrigatoriamente arquivado por cópia ou microfilme, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do credor, sob pena de não valer contra terceiros (...)".

Contudo, parte majoritária da doutrina e jurisprudência entende que tal providência é prescindível, ainda mais quando a discussão travada seja entre os sujeitos do negócio jurídico, ou seja, entre o credor e o devedor, consoante pode-se verificar dos entendimentos abaixo descritos.

"Ação de Busca e Apreensão – Alienação Fiduciária Decreto Lei Nº911/69 – Contrato celebrado antes da vigência do novo código civil. Desnecessária a exigência de apresentação do contrato devidamente registrado no Cartório de Registro de Títulos e Documentos, eis que válido entre as partes signatárias, sujeitos do negócio jurídico. O registro do contrato só é exigível para lhe emprestar validade em relação a terceiros". (APELACAO CIVEL, n.º 2003.001.36661, 14ª CÂMARA CIVEL, Des. DES. WALTER D AGOSTINO)

"A ausência do registro do Contrato no Cartório de Títulos e Documentos pertinente não obsta o prosseguimento da ação de busca e apreensão em que pretende fazer valer o pactuado em face do próprio devedor e não contra terceiros. Recurso provido para fim de afastar a sentença de extinção do feito".(2º TACIVIL/SP – Ap. c/Ver. 479.359 – 7ª Câm. – Rel. Juiz Emmanoel França)

"Não obstante a falta de registro do contrato de alienação fiduciária, possível a ação de busca e apreensão do bem em poder do devedor ou de terceiro, desde que comprovada a contratação e sua inadimplência pelo alienante. Ressalva-se que eventuais direitos de terceiro de boa-fé poderão ser apreciados em vias próprias, dos embargos". (2º TACIVIL/RJ – AI 485.244 – 10ª Câm. – Rel. Juiz Euclides de Oliveira)

Em que pese os entendimentos contrários, com o advento do Código Civil, nos posicionamos no sentido de que, para se constituir a propriedade fiduciária, é desnecessário o registro junto ao RTD sendo mera liberalidade das partes realizarem tal ato, mas se a garantia for um veículo, um navio, uma aeronave, é necessário o registro na repartição competente para o licenciamento de veículos.

O posicionamento acima se justifica pelo fato do Código Civil ter se omitido em relação à obrigatoriedade e ao terceiro de boa-fé que adquire um bem dado em garantia fiduciária.

Ademais, a Lei 10.931/04 veio corroborar esse posicionamento através do §2º do Art. 66-B, dispondo que aquele devedor que alienar ou der em garantia a terceiro bem que já havia alienado fiduciariamente responde pelo tipo penal previsto no art. 171, §2º, inc. I do Código Penal.

Ainda sobre os requisitos do contrato, imprescindível que conste do mesmo o total da dívida, ou a sua estimativa, o prazo, ou a época do pagamento, a taxa de juros, a cláusula penal, o índice de atualização, as comissões e encargos cobrados e a descrição pormenorizada do bem objeto do contrato (art. 66-B da Lei 10.931/04 c/c Art. 1.362 do Código Civil).

Tais requisitos são necessários para resguardar o credor e o devedor no caso de inadimplemento do contrato, assegurando por via oblíqua o que dispõe o Código de Proteção e Defesa do Consumidor no tocante a transparência e harmonia das relações de consumo.

Uma questão surge sobre o tema: caso o contrato seja omisso em relação aos requisitos supracitados, em especial a taxa de juros, qual o índice que deve ser aplicado ao contrato?

Tal indagação merece uma maior digressão sobre o tema, fugindo ao propósito do singelo estudo e deverá ser abordado de forma adequada num momento futuro, mas desde já delineamos um posicionamento no sentido da aplicabilidade do art. 406 do Código Civil, porém não podemos deixar de ressaltar as regras básicas que compõem o Sistema Financeiro Nacional, as quais deverão ser trazidas à baila para o correto posicionamento sobre o assunto.

O art. 56 da Lei n.º 10.931/04 que revogou somente os incisos do art. 3º do Dec. Lei 911/69, trouxe significativas mudanças ao procedimento da ação de busca e apreensão, os quais merecem ser abordados de forma pormenorizada.

Logo de início observamos uma certa incongruência entre os parágrafos 1º, 2º e 3º do referido artigo, sob o aspecto da ampla defesa e do contraditório, mas que a própria lei num momento posterior tentou sanar tal disparidade.

O §1º prevê que, cinco dias após a execução da liminar consolida-se a posse direta e a propriedade nas mãos do credor fiduciário, competindo às repartições competentes expedir novo certificado de registro de propriedade em nome do credor ou de terceiro por ele indicado, livre de qualquer ônus.

Já o §2º dispõe que o devedor fiduciante no mesmo prazo de cinco dias poderá pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor na inicial, quando então o bem lhe será devolvido livre de qualquer ônus.

O §3º, por sua vez, dispôs que a resposta poderá ser apresentada no prazo de 15 (dias) da execução da liminar.

Ora a incongruência é evidente, pois decorridos 05 dias da execução da liminar, o veículo poderá ser vendido pelo credor fiduciário mesmo que o réu venha posteriormente a apresentar a sua defesa.

No nosso entender, seria mais técnico aguardar o prazo de defesa escoar, para, somente então, ser procedida a venda do veículo a terceiros.

A Lei, por outro lado, trouxe um artifício para evitar o abuso das financeiras na ânsia de vender antecipadamente os veículos apreendidos; no §6º prevê que se a sentença for de improcedência e o veículo tenha sido alienado a terceiros, o autor pagará além da condenação de praxe MULTA em favor do devedor fiduciante equivalente a 50% do valor originalmente financiado, devidamente atualizado.

Essa inovação vai fazer com que os credores fiduciários analisem pormenorizadamente a plausibilidade da venda do veículo, pois poderão sofrer conseqüências patrimoniais caso o bem seja vendido indevidamente.

Não podemos esquecer que, em muitos dos casos de alienação fiduciária, os devedores inadimplentes se antecipam ao credor e ajuízam ações de consignação em pagamento e/ou revisionais de cláusulas contratuais pelo rito comum ordinário, ante a não concordância com as cláusulas referentes aos encargos financeiros incidentes no contrato.

Mais a frete no §7º a Lei ressalta que, a cominação da multa do §6º não obsta o ajuizamento da ação de reparação de perdas e danos causada pelo credor fiduciário.

Retornando ao §2º, o legislador prevê que o devedor deve pagar a integralidade da dívida pendente, contudo, o que se entende por "dívida pendente?" Com absoluta certeza, boa parte da doutrina irá se inclinar pelo entendimento de que a divida pendente é o valor das prestações vencidas e não pagas; mas, não podemos esquecer que a maioria dos contratos de financiamento com garantia fiduciária trazem em seu bojo a cláusula de vencimento antecipado ante o descumprimento das obrigações contratuais, e, desta forma, outros doutrinadores entenderão que a divida pendente será a totalidade do débito, ou seja, as parcelas vencidas e vincendas do contrato inadimplido.

Ainda não há qualquer jurisprudência sobre o assunto, mas entendemos que o melhor posicionamento será o de considerar como dívida pendente a totalidade do débito oriundo do inadimplemento, pois o bem será entregue ao devedor fiduciante livre de qualquer ônus, não existindo mais a figura da emenda da mora.

O §3º abraçando tese por muitos suscitada, alterou o prazo para o réu da ação de busca e apreensão apresentar a sua resposta, deixando de ser 3 (três) dias, passando para 15 (quinze) dias. Ainda neste tema, o mesmo §3º omitiu que na contestação o réu só poderia alegar o pagamento do débito ou o cumprimento das obrigações contratuais (§2º do Dec. Lei 911/69), questão esta que gerava grande controvérsia entre os operadores do direito, que agora restou superada, podendo o réu apresentar sua resposta de forma ampla e irrestrita.

Finalmente, o §8º tem redação idêntica ao §6º do Dec. Lei 911/69 e foi acrescentado o §8º-A o qual dispõem que o procedimento do Dec. Lei 911/69 se aplica exclusivamente às hipóteses da Seção XIV da Lei 4.728/65 ou quando for constituído para garantia de débito fiscal ou previdenciário.

Diante de todo exposto, não podemos negar que os art.s. 55 e 56 da Lei 10.931/2004 trouxeram inovações consideráveis ao procedimento da ação de busca e apreensão, mas também não podemos deixar de ressaltar que o Dec. Lei 911/69 não foi ab-rogado pela novel legislação, conforme ressaltado no singelo estudo.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Leonardo Perseu da Silva. Das alterações introduzidas pela Lei nº 10.931/2004 no instituto da alienação fiduciária em garantia. (Decreto-Lei nº 911/1969 e Lei nº 4.728/1965). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 532, 21 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6079. Acesso em: 25 abr. 2024.