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A transferência de embriões excedentários heterólogos após a dissolução da sociedade conjugal

A transferência de embriões excedentários heterólogos após a dissolução da sociedade conjugal

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Dentre os questionamentos acerca do congelamento dos embriões, pode-se apontar: essa técnica pode ter repercussão física ou psíquica no embrião? Qual a situação jurídica do embrião congelado? Quem seria o responsável pela guarda e depósito dos embriões?

Sumário: 1.Introdução; 2.Conceitos; 3.Posicionamento do Código Civil ;4.Polêmicas acerca da Matéria ;5.Conclusões;Bibliografia.


INTRODUÇÃO

No princípio, criou Deus os céus e a terra (...) E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. [1]

E parece que o homem se sentiu incluído nesse "façamos", isto porque com a capacidade inventiva do seu intelecto, foi capaz de criar técnicas que, artificialmente, substituem o mecanismo natural da criação.

Nessa esteira evolutiva surgem variadas técnicas de reprodução humana assistida. São métodos que envolvem desde a "simples" inseminação artificial até a fertilização em laboratório, que consiste na manipulação do material fertilizante feminino (óvulo) e masculino (esperma) em um tubo de ensaio (proveta) a fim de dar início à fecundação do óvulo e o conseqüente desenvolvimento do embrião, com sua posterior transferência no útero da mulher. Esta última técnica é comumente conhecida como fertilização in vitro.

Apesar dos benefícios que a técnica de reprodução assistida traz, é inegável que, a seu reboque, surge, no ventre da sociedade, uma miríade de problemas de cunho ético, moral, religioso, social e jurídico.

Em relação às técnicas de reprodução humana assistida, o Estado exerce um papel de fundamental importância, pois cria limites aos avanços biotecnológicos, regula as matérias causadoras de controvérsias e atualiza o ordenamento jurídico às novas necessidades sociais.

Das técnicas de reprodução humana assistida, sem dúvida, a que mais enseja questionamento é a fertilização in vitro. Esta técnica colheu seu primeiro resultado positivo em 26 de julho de 1978 na Inglaterra, mais precisamente em Lancashire, onde um óvulo, extraído de Lesley Brown, foi fecundado em uma proveta com o sêmen de seu marido, John Brown, tendo como resultado o nascimento de Louise. No Brasil, o primeiro fruto dessa técnica foi colhido em 7 de outubro de 1984 com o nascimento de Anna Paula Caldera. Os vinte e cinco anos do primeiro experimento serviram para que os problemas advindos desta técnica aflorassem, exigindo de cada Estado uma posição acerca da matéria.

Nos casos supramencionados a fertilização foi homóloga, isto é, tanto o óvulo quanto o sêmen pertenciam ao casal, aos pais da criança. Entretanto, nem sempre é assim. A fertilização in vitro também pode ser heteróloga, onde o material fertilizante é de terceiro.

Ao passo que se avança no estudo do tema, percebe-se que cada detalhe é responsável pelo surgimento de inúmeros questionamentos, alguns dos quais seguem exemplificados, sem pretensões de, no entanto, enfrentar a matéria.

a)Destino dos embriões excedentários

Nessa seara, os doutrinadores discutem se os embriões devem ser congelados, descartados, doados ou se os médicos deverão fertilizar menos óvulos, de modo a reduzir a quantidade de embriões, em que pese a maior possibilidade de fracasso no tratamento.

Dentre os questionamentos acerca do congelamento dos embriões, pode-se apontar exemplificadamente: essa técnica pode ter repercussão física ou psíquica no embrião? Qual a situação jurídica do embrião congelado? Quem seria o responsável pela guarda e depósito dos embriões?

No que concerne ao descarte, a discussão gira em torno da seguinte questão: o embrião, independentemente de ser in vivo ou in vitro, é vida ou ao menos tem expectativa de vida?

No caso de doação dos embriões excedentes não há grandes questionamentos em relação ao destino dado, porém surgem problemas outros envolvendo principalmente a necessidade ou não do anonimato e a relação de parentesco do embrião com sua nova família.

No que tange ao número de embriões a serem fertilizados, não há uniformidade na comunidade científica. Juridicamente há quem surgira que este número deve ser reduzido o máximo possível.

b)Anonimato dos doadores

A Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) nº 1.358/92 estabelece o anonimato dos doadores e receptores de gametas e embriões, evitando, desta forma, complexas situações emocionais e legais entre doadores e receptores, com repercussões no desenvolvimento psicológico da criança nascida através deste procedimento. Salienta-se a exigência pelo CFM de um cadastro de informações biológicas, genéticas e fenotípicas do doador, resguardando-lhe sua identidade civil.

Entretanto, outros afirmam que as crianças com desconhecimento de sua origem genética poderiam apresentar incompleta percepção de sua identidade, com graves repercussões psicológicas. O Projeto de Lei (PL) n.º 90/99 admite que a criança possa obter todas as informações sobre o processo que a gerou, inclusive a identidade civil do doador, no momento em que completar a maioridade, ou antes desse termo, havendo óbito de ambos os pais.

Outro projeto propõe a inserção de um novo artigo na Lei 8.560/92, possibilitando o acesso do nascido oriundo de técnicas de RHA à identidade do doador, vedando, contudo, a aquisição de direitos sucessórios.

Com relação ao anonimato dos doadores, há, ainda, o questionamento acerca da necessidade da anuência do consorte na hipótese de o doador do material fertilizante ser casado.

c)Variações em relação à origem do material fertilizante e ao útero onde será transferido o embrião

Deste aspecto extraem-se questões intrincadas, surgidas ao sabor das variadas hipóteses relativas à origem (do casal ou de terceiro) do material fertilizante e do útero.

Vale ressaltar que toda problemática fica ainda mais complexa se o casal beneficiado pela técnica de reprodução assistida for homossexual, doador, ou não, de gametas e possuidor, ou não, do útero onde será transferido o embrião. Saliente-se que o legislador já se preocupa com a questão, haja vista o PL n.º 90/99, que veda o direito à reprodução assistida a mulheres solteiras e a casais do mesmo sexo, admitindo-o apenas a casados e conviventes. Entretanto, tal dispositivo, não impede totalmente que ocorra o uso indevido da técnica, não devendo o diploma legal, de lege ferenda, fechar os olhos a esta questão.

Outro complicador que pode ser considerado é o fato de a transferência ser feita após a dissolução da sociedade conjugal (ou união estável).

d)O tempo da transferência

Dentre os aspectos relevantes a serem considerados nas técnicas de reprodução humana assistida está o tempo da transferência em relação à constância ou dissolução do vínculo conjugal ou da união estável.

Se a transferência ocorre na constância do casamento ou união estável, a problemática gira em torno da autorização de ambos os cônjuges ou companheiros. Por outro lado, se ocorre a transferência após a dissolução da sociedade conjugal ou da união estável, há de se perguntar qual a natureza da dissolução: se por morte, se por separação de fato, ou de direito, ou se por divórcio.

A par de toda as intrigantes questões que envolvem este interessante tema, o presente trabalho focará a transferência de embriões excedentários heterólogos na dissolução da sociedade conjugal. Nesse sentido, alguns questionamentos serão analisados de per si, a fim de se amadurecer o entendimento acerca das implicações jurídicas deles decorrentes.


2.CONCEITOS

Antes de adentrar à problemática do presente trabalho é necessário trazer à tona alguns conceitos importantes para o bom entendimento do tema proposto.

2.1.Reprodução Assistida

É sabido que a maioria dos avanços da ciência se destina a facilitar, melhorar e satisfazer de forma cada vez mais completa a vida do homem.

Nesse diapasão, não poderiam ser diferentes as perspectivas apontadas pela Biotecnologia e pela Engenharia Genética, as quais estão possibilitando às pessoas que não conseguem gerar filhos a chance de exercerem o direito de serem pais e mães.

A Resolução do CFM n.º 1.358/92, inciso I, n.º 2, assegura o direito de alguém à concepção e à descendência por meio de fertilização assistida, se não colocar em risco a vida ou a saúde da paciente e do possível descendente.

A chance de ser pai ou mãe é dada pelas modernas técnicas de reprodução assistida, que representam a intervenção homem no processo de procriação natural, com o objetivo de possibilitar que pessoas inférteis ou estéreis satisfaçam o desejo de alcançar a maternidade ou a paternidade. No dizer de Maria Helena Diniz a reprodução assistida é um conjunto de operações para unir, artificialmente, os gametas feminino e masculino, dando origem a um ser humano [2].

Conforme aponta o artigo jurídico da acadêmica Carolina Anison Paludo:

Os avanços biotecnológicos vêm permitindo, através dos tempos, que o homem domine a sua própria vida, sobretudo no que concerne à reprodução (...). A contribuição trazida à reprodução humana, no que diz respeito à impossibilidade de ter filhos, é muito mais notória, sobretudo, porque a transmissão de vida constitui a mais sublime capacidade humana, à medida que traz enormes mudanças sociais, jurídicas e psicológicas na vida de quem procria [3].

No que diz respeito à regulamentação de tais técnicas, a já citada Resolução do CFM, dispõe, no seu artigo 1º, que se deve adotar as Normas Éticas para a Utilização das Técnicas de Reprodução Assistida, anexas à presente Resolução, como dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos. [4] Destacam-se aqui alguns dos princípios gerais definidos na resolução e que devem nortear a utilização dessas técnicas:

I- Princípios Gerais

1- As técnicas de Reprodução Assistida (RA) têm o papel de auxiliar na resolução dos problemas de infertilidade humana, facilitando o processo de procriação quando outras terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes para a solução da situação atual de infertilidade.

2- As técnicas de RA podem ser utilizadas desde que exista probabilidade efetiva de sucesso e não incorra em risco grave de saúde para a paciente ou o possível descendente.

3- O consentimento informado será obrigatório e extensivo aos pacientes inférteis e doadores. Os aspectos médicos envolvendo todas as circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA serão detalhadamente expostos, assim como os resultados já obtidos naquela unidade de tratamento com a técnica proposta. As informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico, ético e econômico. O documento de consentimento informado será em formulário especial e estará completo com a concordância, por escrito, da paciente ou do casal infértil.

4- As técnicas de RA não devem ser aplicadas com a intenção de selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se trate de evitar doenças ligadas ao sexo do filho que venha a nascer. [5]

Pode se verificar, por tais princípios, que as técnicas de RA deverão ser conscientemente utilizadas tanto pelos profissionais que atuam nessa área, como pelos homens e mulheres que desejem fazer uso dessas benesses da ciência.

2.2.Fecundação

O que se chama de ontogenia humana, ou seja, o aparecimento de um novo ser humano, acontece quando se fundem os gametas masculino e feminino, o que origina um zigoto. Este possui um código genético único, diverso tanto do óvulo como do espermatozóide que o gerou.

A fecundação é o processo através do qual um gameta masculino (espermatozóide) perfura as membranas lipoprotéicas do gameta feminino (óvulo) e combina-se com esse formando uma célula diplóide, o zigoto (com dupla carga genética), que em poucas horas inicia seu processo de divisão celular, o que já configura o desenvolvimento do embrião.

A fecundação ocorre quando o óvulo encontra o espermatozóide, e este o fecunda, havendo a formação de um novo ser. Como relata o geneticista francês Jérôme Lejeune de modo poético: Não quero repetir o óbvio, mas na verdade, a vida começa na fecundação. Quando os 23 cromossomos masculinos se encontram com 23 cromossomos da mulher, todos os dados genéticos que definem o novo ser humano já estão presentes. A fecundação é o marco do início da vida.

2.3.Concepção

Costuma-se confundir o momento da fecundação com o da concepção, na medida em que o primeiro conduz ao segundo. É a partir do momento em que o óvulo foi fecundado pelo espermatozóide que se pode considerar a concepção já ocorrida.

Define o Dictionnaire de Médecine, de E. Littré, concepção como:

(...) substantivo feminino derivado do latim conceptio, concipere, de cum, junção de com e capere, que denota uma ação de natureza orgânica ou vital da qual resulta a produção de um novo ser, nas entranhas de uma fêmea animal, como fruto do contato do espermatozóide com o óvulo, contato este denominado de ontogenia humana.

Seria o embrião gerado no momento da concepção (que num estágio posterior poderia ser chamado de nascituro, ente concebido, embora não nascido) titular de direitos, ou seja, dotado de personalidade jurídica?

Embora esse não seja um questionamento que permeie o viés principal do presente trabalho, é importante expor sinteticamente a polêmica acerca da questão, visto que a atribuição ou não de personalidade jurídica ao embrião (e sua conseqüente titularidade de direitos), poderá causar efeitos no que tange à possível dissolução de uma sociedade conjugal, onde o homem e/ou a mulher tenham sido responsáveis pela presença de embriões excedentes.

Sobre o tema, duas teorias se opõem: natalista e concepcionista. A primeira, como destacam os profs. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona, é aquela segundo a qual a aquisição da personalidade opera-se a partir do nascimento com vida, donde é razoável o entendimento de que, não sendo pessoa, o nascituro possui mera expectativa de direito [6]. Já a teoria concepcionista defende que o nascituro adquiriria personalidade jurídica desde a concepção, sendo dessa maneira considerado pessoa. É de se ressaltar que essa titularidade de direitos só diz respeito aos da personalidade, não existindo os de cunho patrimonial, que deverão estar sujeitos ao nascimento com vida.

Esclarece Maria Helena Diniz que:

Na vida intra-uterina, ou mesmo in vitro, tem personalidade jurídica formal, relativamente aos direitos da personalidade, consagrados constitucionalmente, adquirindo personalidade jurídica material apenas se nascer com vida, ocasião em que será titular dos direitos patrimoniais, que se encontravam em estado potencial, e do direito às indenizações por dano moral e patrimonial por ele sofrido. [7]

A autora, em outra obra, ressalta que:

Embora a vida se inicie com a fecundação, e a vida viável com a gravidez, que se dá com a nidação, entendemos que na verdade o início legal da consideração jurídica da personalidade é o momento da penetração do espermatozóide no óvulo, mesmo fora do corpo da mulher. [8]

Destarte, no momento da concepção já estariam resguardados os direitos do nascituro, sendo esse o atual posicionamento da doutrina dominante.

2.4.Fertilização in vitro

A mais difundida técnica de reprodução assistida pode ser definida com a fecundação do óvulo in vitro, ou seja, os gametas masculino e feminino são previamente recolhidos e colocados em contato in vitro para que sejam fecundados. O embrião resultante é transferido para o útero ou para as trompas [9].

Essa técnica, também chamada de ectogênese, concretiza-se através do uso do método ZIFT (Zibot Intra Fallopian Transfer), onde o óvulo da mulher é retirado e fecundado na proveta, a fim de que, após a fecundação, o embrião possa ser introduzido no seu útero ou no de outra.

Como expõe Alexandre Gonçalves Frazão:

O primeiro a começar este tipo de experiência em seres humanos foi o Dr. R.G. Edwards, que por volta de 1965 realizava experimentos tentando a maturação de ovócitos retirados de ovários em qualquer estágio de desenvolvimento. Após o boom da criação de Edwards, não tardou para que esse fizesse escola. Em 1980, na cidade de Melbourne, Austrália, já registravam-se 13 casos de gravidez de um total de 103 pacientes tratados pela técnica de fecundação in vitro. Entre 86 e 88, só na França, aproximadamente 4.000 mulheres engravidaram após ter seus embriões criados através desse processo. [10]

2.4.1.Fertilização in vitro homóloga

A fecundação artificial,ou fertilização in vitro na forma homóloga, ocorre quando os gametas feminino e masculino a serem reunidos são do próprio casal que deseja obter filhos. A coleta do material, obviamente, dependerá da expressa anuência do casal, ligados pelo matrimônio ou união estável, uma vez que tem propriedade das partes destacadas de seu corpo, como sêmen e óvulo. No caso da mulher, esta é submetida, antes da fecundação in vitro, a tratamento hormonal para ter uma superovulação, a fim de que vários óvulos sejam fertilizados na proveta, transferindo-se, porém, por recomendação médica, apenas quatro deles no útero.

2.4.2.Fertilização in vitro heteróloga

Ao contrário do processo homólogo, na fertilização in vitro heteróloga, um dos gametas (geralmente o óvulo), ou até os dois, masculino e feminino, são doados ao casal a fim de que possam ter filhos.

Tanto no caso de doação de óvulos, como na doação de embriões, serão os pais aqueles socioafetivos, que decidiram ter a criança. A filiação aqui assume um aspecto muito mais afetivo do que biológico. Como entende, com propriedade, Maria Helena Diniz o filho deverá ser, portanto, daqueles que decidiram e quiseram o seu nascimento, por serem deles a vontade procriacional. [11]

2.5.Fertilização in Vivo ou Inseminação Artificial

Aqui a fertilização se faz pelo método GIFT (Gametha Intra Fallopian Transfer), onde há inoculação do sêmen na mulher, sem que haja qualquer manipulação externa do óvulo ou embrião. Há a introdução de esperma no interior do canal genital feminino, por processos mecânicos, sem que tenha havido aproximação sexual. O operador recolhe em uma seringa o material fecundante, injetando-o na cavidade uterina da mulher. Essa técnica pretende auxiliar a resolução dos problemas da fertilidade humana, facilitando o processo de procriação quando outras terapêuticas tenham sido ineficazes.

2.6.Embriões Excedentários ou Excedentes

Os processos de reprodução assistida claramente se destinam a concretizar o desejo de homens e mulheres de serem pais. As tentativas de fecundação e a expectativa de maiores acertos inevitavelmente geram um número maior de embriões do que realmente é utilizado.

Nessa perspectiva, há a formação de embriões excedentários, os quais, se não forem objeto de um processo de transferência, serão, a breve prazo, biologicamente excluídos, deixando de ter condições biológicas para serem viáveis, isto é, para o desenvolvimento de um novo ser.

E com relação à preservação desses embriões pelas clínicas, para que possam ser utilizados posteriormente?

A já referida Resolução do CFM autoriza os centros de reprodução assistida a criopreservar os embriões. Como discorrem Andréa Aldrovandi e Danielle França:

O número total de embriões produzidos em laboratório será comunicado aos pacientes, para que se decida quantos pré-embriões serão transferidos a fresco. No momento da criopreservação, os conjugues ou companheiros devem expressar a sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados, em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos e quando desejam doá-los. Não pode o casal optar pelo descarte ou destruição, nem cede-lo a pesquisas ou experimentações, mas apenas doá-los para satisfação do projeto parental de outro casal estéril ou utilizá-los novamente para outros filhos futuros. [12] (grifo nosso).

De acordo com entrevista realizada pela equipe na clínica CENAFERT, com Dr.ª Maria Cecília de Almeida Cardoso, em 12 de setembro de 2003, o número mais adequado de embriões a serem transferidos para o útero fica em torno de dois a três.


3.POSICIONAMENTO DO CÓDIGO CIVIL

3.1.Código Civil de1916

Se a interpretação de normas editadas em contexto histórico e social diverso daquele em que ocorre a situação fática muitas vezes dificulta a atividade do aplicador, os obstáculos se tornam ainda maiores se, ao tempo da edição, sequer se imaginava a possibilidade de determinado evento ocorrer. É o que acontece, por exemplo, com as técnicas de reprodução humana assistida, surgidas em meados do século passado, muito depois, portanto, do advento do Código Civil de 1916.

Por esse motivo, não havia como esse diploma legal disciplinar matérias relativas à inseminação artificial e à transferência de embriões excedentários.

Desse modo, restava ao intérprete, tão somente, fazer a subsunção do caso concreto às normas legais até então existentes, o que, dada a desatualização destas, poderia gerar decisões controvertidas em face à atual realidade técnica, científica e, sobretudo, social.

O Código Civil de 2002, disciplinando apenas superficialmente a matéria, deixa várias lacunas que terão que ser decididas pelo intérprete à luz do caso concreto. É o caso da transferência de embriões excedentários heterólogos após a dissolução da sociedade conjugal, tema do presente artigo, do qual pelo menos dois aspectos devem ser retirados para análise mais aprofundada.

O primeiro é a relação de parentesco entre a criança e o doador do material fertilizante. O outro aspecto envolve a transferência de embriões após a dissolução da sociedade conjugal, que, subsidiariamente, exige a análise da necessariedade e da essencialidade da autorização do cônjuge.

O Código Civil de 1916 dedica os art. 330 a 405 às relações de parentesco, objeto do Título V do mencionado diploma.

Com relação à filiação, a referida codificação, como era de se esperar, haja vista a época de sua elaboração, não previu a transferência de embriões heterólogos.

Desse modo, qual seria a solução jurídica para o caso concreto em que um dos cônjuges, após a dissolução da sociedade conjugal, viesse a realizar a transferência de embriões heterólogos?

Assim dispõe o Código Civil de 1916:

Art. 338. Presumem-se concebidos na constância do casamento:

(...)

II – os nascidos dentro nos trezentos dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal por morte, desquite, ou anulação.

Nascendo em até trezentos dias, após a dissolução da sociedade conjugal, presumir-se-á concebido na constância do casamento. Decorrido este prazo, a criança não seria filha do casal, mas de apenas um dos ex-cônjuges, o que, a rigor, só poderia ser legalmente admitido se considerada a Constituição Federal de 1988 (CF/88), que reconhece a família monoparental.

Esta interpretação parece pouco recomendada, haja vista que dois embriões fertilizados em uma mesma época, porém transferidos em momentos distintos teriam tratamentos desiguais, que variariam em função do nascimento da criança. A nascida dentro do prazo legalmente instituído iria usufruir de todos os benefícios advindos da filiação legítima, a outra, apenas por ter nascido após aquele prazo, não seria filha do casal.

À luz do dispositivo normativo acima mencionado, pouco importa a origem do embrião (homólogo ou heterólogo) para a presunção de concebidos na constância do casamento. Do cotejo com o tratamento dispensado à adoção pelo art. 376 do Código Civil de 1916, onde ocorria a quebra da relação de parentesco entre o adotado e seus pais genéticos (sendo mantidos, apenas, os impedimentos matrimoniais), pode-se concluir que, mutatis mutandis, deveria ocorrer o mesmo entre a criança e o terceiro doador do material genético. Assim, não seria reconhecida qualquer relação de parentesco entre os dois, sendo mantidos os impedimentos matrimoniais.

Digna de grifo era a dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de se garantir esses impedimentos em face do anonimato, ínsito às técnicas de reprodução humana assistida.

Também estava esvaziada de importância a manutenção do material embrionário após a dissolução da sociedade conjugal, sendo necessário para a presunção de concebidos na constância do casamento apenas a época de nascimento da criança.

Situações como esta mereceram uma melhor disciplina no Código Civil de 2002. É o que será abordado no próximo sub-item.

3.2.Código Civil de 2002

O Código Civil de 2002 disciplina o tema da filiação – um dos capítulos do subtítulo Relações de Parentesco – nos artigos 1596 a 1606.

No que tange a esse assunto, é inegável que valiosas inovações foram trazidas em relação a seu antecessor, porém o novel diploma ainda não trata da matéria com a devida profundidade, pois deixou muitas lacunas que, por certo, serão preenchidas pelos tribunais e que, inexoravelmente, ensejarão uma futura disciplina legal.

O art. 1597, inc. II, do Código Civil de 2002, atualizando o art. 338, inc. II, do Código Civil de 1916 dispõe:

Art. 1597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

(...)

II – Nascidos nos trezentos dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento.

Diante da existência, neste mesmo artigo, de incisos específicos acerca da inseminação artificial e de embriões excedentários, fica clara a intenção do legislador em direcionar essa norma aos nascidos mediante o método natural de reprodução humana.

O inciso III do mencionado artigo reza que se presumem concebidos na constância do casamento os filhos havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido.

Vale salientar que a expressão fecundação artificial, trazida no dispositivo citado, abarca duas técnicas distintas: a inseminação artificial e a transferência de embriões. Como já explicado, a primeira é também chamada de fertilização in vivo, a outra, fertilização in vitro.

Sem dúvida, no mencionado inciso ocorreu uma atecnia do legislador, que quis, em verdade, se referir à inseminação artificial. Pelo menos dois argumentos podem ser utilizados para fundamentar esta tese.

O primeiro considera o disposto no inciso IV: (presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos) havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários decorrentes de concepção artificial homóloga. Não fosse a interpretação ora defendida, os dois incisos (III e IV) versariam sobre a mesma matéria, sendo que o inciso III o faz implicitamente, pois cita uma técnica (fecundação artificial) que engloba a outra (transferência de embriões), enquanto o inciso IV traz expressamente o método a que se refere. Ademais, no inciso III, indiretamente, está se considerando a qualquer tempo, tal qual o item que o sucede.

Outro argumento é que o inciso III só se refere a marido, o que só faz sentido se o dispositivo quiser se referir, apenas, à inseminação artificial. Se intencionasse abranger também a transferência de embriões, considerando que esta técnica pode ser usada por qualquer um dos cônjuges mesmo após a morte do outro, jamais poderia se restringir ao marido.

Na leitura do inciso IV, verifica-se que o legislador se referiu apenas aos embriões excedentários decorrentes de concepção artificial homóloga, excluindo do tratamento legal os embriões heterólogos.

Trilhando nesse raciocínio e considerando a seqüência lógica traçada no artigo, isto é, inseminação artificial homóloga (inc. III), embriões excedentários homólogos (inc. IV) e inseminação artificial heteróloga (inc. V), a presunção da concepção na constância do casamento de filhos havidos da transferência de embriões excedentários heterólogos deverá, ter tratamento expresso, de lege ferenda, pelo legislador.

Os tribunais devem enfrentar tal matéria construindo uma interpretação do dispositivo em consonância com os ditames da preservação do princípio da dignidade da pessoa humana.


4.POLÊMICAS ACERCA DA MATÉRIA

4.1.Reprodução Humana Assistida e União Estável

No ordenamento jurídico brasileiro, não há qualquer impedimento legal em relação ao fato de casais que mantenham uma união estável venham a constituir livremente sua descendência. Ao contrário, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, §3º, erige a união estável à entidade familiar:

Art. 226

(...)

§3º: Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Diante disso, pode-se afirmar que a exigência de vínculo matrimonial para os casais que venham a se submeter às técnicas de reprodução assistida constitui um desrespeito às normas constitucionais, uma postura manifestamente discriminatória e descabida, embora adotada por países como Áustria, Japão, Coréia, Egito, Líbano, Singapura e África do Sul, conforme ensinam Sérgio Costa, Gabriel Oselka e Volnei Garrafa [13].

A família decorre tanto do casamento quanto da união estável, e não é a formalidade de relação entre os casais que servirá de parâmetro para aplicação dos métodos reprodutivos em questão. Deve-se considerar, nestes casos, a estabilidade e a afetividade do casal, que será o suporte emocional que permitirá o crescimento saudável da criança [14]. O casamento, em si mesmo, não é garantia de um ambiente familiar adequado ao desenvolvimento da prole do casal.

4.2.A Filiação Sócio-Afetiva

A filiação representa um dos direitos fundamentais do ser humano, já que é um vínculo indispensável ao adequado desenvolvimento de sua personalidade. O desconhecimento acerca de suas origens pode levar a danos muitas vezes irreparáveis no que tange à formação de sua própria identidade.

Sob o aspecto do Direito, a filiação é um fato jurídico que abrange todas as relações e, respectivamente, sua constituição, modificação e extinção, que tenham como sujeitos pais e filhos [15].

Em tempos remotos, costumava-se asseverar que a maternidade era sempre certa (mater semper certa est), ao contrário da paternidade, muitas vezes imprecisa (pater semper incertus est). Com o advento das técnicas de reprodução humana assistida, entretanto, pode-se afirmar que tais princípios, anteriormente tidos como verdades absolutas, foram sendo relativizados.

Diante do avanço da Engenharia Genética e da Biotecnologia, avulta de importância o esclarecimento da noção de filiação afetiva. Tal conceito nem sempre coincide com a filiação biológica ou genética, pois considera os laços de amor e carinho existentes nas relações familiares. Nesse sentido,

Segundo José Roberto Moreira Filho, pela atual orientação doutrinária, o pai e a mãe não se definem apenas pelos laços biológicos que os unem ao menor e sim pelo querer externado de ser pai ou mãe, de então assumir independentemente do vínculo biológico, as responsabilidades e deveres em face da filiação com a demonstração de afeto e de bem-querer ao menor. Para o referido autor, partindo dessa premissa, poderemos definir a filiação do nascituro concebido por técnicas reprodutivas artificiais, tanto pelo aspecto biológico, quanto pelo aspecto sócioafetivo.

O Direito não pode permanecer alheio a esse novo desafio que lhe impõem as circunstâncias sociais. Neste sentido, preleciona o professor Sílvio de Salvo Venosa:

De qualquer modo, no campo do Direito, por maior que seja a possibilidade da verdade técnica, nem sempre o fato natural da procriação corresponde à filiação como fato jurídico. O legislador procura o possível no sentido de fazer coincidir a verdade jurídica com a verdade biológica, levando em conta as implicações de ordem sociológica e afetiva que envolvem essa problemática. [16]

Frente ao exposto, convém examinar as repercussões da filiação afetiva no que tange à transferência dos embriões excedentários decorrentes da fertilização in vitro heteróloga após a dissolução da sociedade conjugal.

4.3.Consentimento Informado e Ação Negatória de Paternidade

Em face do critério sócio-afetivo acima explanado, pode-se perceber que a filiação definida apenas pelo critério biológico revela-se insuficiente diante da nova realidade tecnológica pós-moderna. A utilização de técnicas de reprodução humana assistida fez surgir uma modalidade peculiar de vínculo, visto que a maternidade e a paternidade advêm não da conjunção carnal, mas sim de um querer expressamente destinado a este fim. Destarte, a vontade do casal é fator determinante e indispensável ao surgimento da relação entre os pais e a criança gerada mediante as técnicas supracitadas, tendo em vista os princípios constitucionais da paternidade responsável e do livre planejamento familiar. Neste sentido, pondera a Professora Mônica Aguiar em sua tese de doutorado:

O critério biológico é relevante para que se possa atribuir essa responsabilidade, na relação paterno-filial, àquele que deu ensejo ao nascimento. Se o dado biológico tem esse peso na concepção sexuada, impõe-se, para a geração levada a efeito sem prévia conjunção carnal, a redefinição do valor e dos efeitos que a vontade deve ter, mantido, de qualquer sorte, o critério da responsabilidade, no sentido de que a paternidade e a maternidade devem ser exercidas com o cumprimento dos direitos e deveres a ela inerentes, e com vistas à proteção dos interesses da criança, seja qual for a forma de procriação. [17]

Diante disso, cumpre analisar a forma por meio da qual essa vontade é exteriorizada, tornando-se idônea a produzir efeitos na ordem jurídica, ou seja, o chamado consentimento informado.

Insta salientar que a única norma que se refere ao consentimento é a Resolução do CFM nº 1358/92, uma vez que o Código Civil (art. 1.597, V) estabelece a necessidade de prévia autorização apenas nos casos de inseminação artificial heteróloga, sendo, portanto, omisso no tocante à ectogênese heteróloga. A referida resolução disciplina esta matéria nos seguintes termos:

O consentimento informado será obrigatório e extensivo aos pacientes inférteis e doadores. Os aspectos médicos envolvendo todas as circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA serão detalhadamente expostos, assim como os resultados já obtidos naquela unidade de tratamento com a técnica proposta. As informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico, ético e econômico. O documento de consentimento informado será em formulário especial, e estará completo com a concordância, por escrito, da paciente ou do casal infértil.(grifos nossos)

Dada a obrigatoriedade do consentimento, é imperioso questionar qual a extensão do seu âmbito de vigência temporal frente à dissolução da sociedade conjugal. Seria este consentimento irretratável, mesmo após a morte, separação judicial ou de fato, ou divórcio?

Diante da lacuna existente no ordenamento jurídico brasileiro, e em respeito ao princípio constitucionalmente consagrado do livre planejamento familiar, os efeitos do consentimento prestado voluntariamente por ambos os cônjuges devem ser permanentes, é dizer, o consentimento é irretratável. Senão vejamos.

O Art. 1.597, IV, do Código Civil dispõe:

Art. 1.597 – Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; (grifo nosso)

Da leitura do inciso transcrito, pode-se inferir que o legislador disciplinou tão-somente os casos de fertilização in vitro homóloga, estabelecendo, ao utilizar a expressão a qualquer tempo, que, independentemente do momento da transferência (na constância do casamento ou da união estável, ou após a dissolução destes), a criança gerada em decorrência do procedimento procriacional será presumidamente filha do casal.

Ocorre, porém, que o fundamento do vínculo paterno-filial oriundo da ectogênese homóloga é o mesmo que o da heteróloga, a saber: a vontade procriacional inequívoca. A única diferença existente ente as duas técnicas citadas é, simplesmente, a origem dos gametas. Ora, estabelecer um tratamento distinto entre ambas ao prever a presunção em apreço exclusivamente para a fertilização in vitro homóloga, excluindo da previsão legal a técnica heteróloga, implica na adoção do critério biológico, notadamente insuficiente para nortear as relações advindas das modernas técnicas de reprodução assistida. Como já exposto anteriormente, é o critério sócioafetivo o único idôneo a enfrentar a mudança de paradigma trazida para o Direito de Família com os hodiernos métodos procriacionais artificiais.

Neste diapasão, a solução para a problemática em análise encontra guarida na Lei de Introdução ao Código Civil em seu art. 4º: Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. (grifo nosso)

Desta forma, a disposição contida no inciso IV do art. 1.597 do Código Civil deverá ser aplicada analogamente aos casos de ectogênese heteróloga. O consentimento torna-se, por conseguinte, irretratável, visto que a criança gerada, a qualquer tempo, gozará da presunção prevista no diploma legal.

No entanto, de lege ferenda, esta situação deve ser devidamente revista pelo legislador, de modo que haja a exigência do consentimento informado expresso em relação ao emprego de ambas as técnicas, tanto no momento do início do procedimento, quanto à época da realização efetiva de cada transferência.

Tal regramento possibilita uma solução mais satisfatória para os casos de dissolução da sociedade conjugal, visto que será permitido a um dos ex-cônjuges ou ex-companheiros revogar seu consentimento anterior. Este entendimento encontra-se em consonância com o magistério de Fernando Abellán:

En los casos, como el aquí analisado, en los que la realización de la técnica de reproducción asistida se lleva a cabo a lo largo de momentos muy diferentes de la relación personal existente entre los miembros de la pareja, parece conveniente, después de la separación una revalidación por parte de ambos del consentimiento prestado inicialmente, mediante la que los progenitores ratifiquen su deseo de procreación.

Y ello porque es presumible que lá situación afectiva de la pareja y sus deseos comunes de procreación no sean los mismos al tiempo de la obtención de los ovocitos de la esposa y de su fecundación, momento en el que decidieron la criopreservación de los embriones sobrantes, que tras la separación conyugal, instante éste en que los caminos se bifurcan y los proyectos comunes decaen. [18]

Entretanto, em caso de dissolução da sociedade conjugal, bem como dissolução da união estável, se, sem embargo disso, ambos os ex-cônjuges ou ex-conviventes concordam com o emprego da técnica de reprodução assistida, não há motivos para negar-lhes a possibilidade de transferência dos embriões. Tal afirmação pode ser justificada com base no art. 1.622, parágrafo único, do Código Civil de 2002 e no art. 42, §4º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), os quais possuem redação idêntica:

Art. 1.622.

(...)

Parágrafo único- os divorciados e os judicialmente separados poderão adotar conjuntamente, contanto que acordem sobre a guarda e o regime de visitas, e desde que o estágio de convivência tenha sido iniciado na constância da sociedade conjugal.

Destarte, infere-se que as disposições mencionadas acabam por autorizar, analogamente, a possibilidade de casais que se encontrem nas condições descritas se valerem do mesmo direito, transferindo os embriões oriundos da constância do casamento e realizando, assim, seu desejo de conceber uma prole comum.

Assim, resulta evidente que a mudança da affectio maritalis conduz à necessidade da ratificação do desejo de procriar para que haja a formação do vínculo paterno-filial, sob pena da caracterização de uma família monoparental.

Imaginemos o seguinte exemplo: homem e mulher, casados, ambos inférteis, decidem empregar a técnica da reprodução assistida para procriar. Depois de algumas tentativas sem sucesso, decidiram pela criopreservação dos embriões excedentários heterólogos. Dois anos após esta decisão, ocorre a dissolução do vínculo matrimonial. Passados cinco anos do desenlace, a mulher resolve utilizar o embrião criopreservado para ter um filho. O homem, por já estar envolvido em outro relacionamento, não anui com o intento da ex-esposa, deixando de ratificar o seu consentimento anteriormente oferecido. Assim, se a mulher levar a cabo a transferência do embrião e der a luz à uma criança, somente a maternidade estará definida, havendo a configuração de família monoparental.

Mas, como tornar tal procedimento exigível? Cumpre analisar como ocorre, atualmente, o processo para utilização da transferência dos embriões excedentários nas clínicas que trabalham com RA.

De acordo com entrevista realizada pelo grupo na clínica de reprodução humana assistida CENAFERT, com a Dr. Maria Cecília, constatou-se que se costuma empregar o consentimento informado, no qual o casal deve conceder sua assinatura demonstrando conhecimento de todas as nuanças do processo. Não se trata, pois, de um contrato no sentido clássico do termo, embora, ainda segundo a médica, existam certas clínicas que empreguem tal acordo.

Atualmente, tal consentimento informado exige autorização para o procedimento da fertilização apenas uma vez. Contudo, de acordo com explicações já salientadas neste trabalho, vislumbra-se a importância de ser(em) exigida outra(as) autorização(ões), tantas quantas necessárias, no momento mesmo da transferência dos embriões. Respeita-se, assim, a chamada vontade complexa, isto é, a vontade do casal considerada como ente único, no qual cada manifestação funciona como parte indispensável para formação do todo. Logo, a vontade solitária de cada consorte não tem valor neste sentido.

Ademais, recomenda-se, de lege ferenda, que seja elaborado um formulário padrão a ser adotado pelas clínicas no desenvolvimento deste procedimento. A fiscalização deve ser feita pelo Ministério da Saúde, o qual será responsável por zelar pela idoneidade do processo. As clínicas ficam, portanto, obrigadas a consultar a vontade dos sujeitos, ressaltando-se que se, por acaso, desrespeitem tal comando, estão sujeitas às multas abstratamente cominadas pela lei. Estas atitudes fariam com que, certamente, houvesse uma maior proteção à vontade dos casais, visto que esta é o fundamento do vínculo a ser formado.

Outra conseqüência da adoção do critério sócioafetivo de filiação é a inadequação da ação negatória de paternidade no tocante ao questionamento da existência do vínculo jurídico da filiação oriunda das técnicas de RA.

De fato, a ação referida seria uma contradição à anuência anterior expressa constante do documento de consentimento informado. Além disso, a impugnação da paternidade iria de encontro à Teoria do Ato Próprio – venire contra factum proprium –, segundo a qual é inadmissível que alguém exercite uma faculdade em sentido contrário a um comportamento anteriormente adotado. Nesta linha:

Ao prestar consentimento necessário à realização de ato médico destinado à procriação assistida, a pessoa exerce um direito potestativo apto ao estabelecimento de uma situação jurídica de filiação, que não pode mais, por sua vontade em sentido oposto, desconstituir. [19]

O art. 1.601 do Código Civil prevê a ação negatória de paternidade, declarando, ainda, sua imprescritibilidade. Contudo, o legislador ordinário não fez referência à impropriedade de tal ação para os casos decorrentes das técnicas de reprodução assistida. A omissão constatada, de lege ferenda, deve ser suprida por meio da introdução de um novo parágrafo ao art.1.601, que passará, portanto, a ter a seguinte redação:

Art. 1.601- Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, sendo tal ação imprescritível.

§1º- Contestada a filiação, os herdeiros do impugnante têm direito de prosseguir na ação.

§2º- É proibida essa impugnação, em relação ao nascido em decorrência de técnica de reprodução assistida [20], quando haja o cônjuge livremente consentido no emprego desta técnica médica.

Em face disso, é necessário que o legislador atente para as deficiências constantes do texto do código civil vigente, com o fito de adaptá-lo às novas necessidades sociais.

4.4.Maternidade e Paternidade Post Mortem

Uma vez exarada a vontade de realizar o procedimento de fertilização heteróloga, é necessário que se recorra a um segundo consentimento, quando da efetiva transferência dos embriões excedentários. Justifica-se tal assertiva por força da já citada vontade complexa.

Destarte, se um dos cônjuges ou conviventes vier a falecer depois de concedida a autorização para se iniciar o procedimento de fertilização in vitro, sem que, no entanto, tenha havido a transferência de embriões excedentários oriundos na constância do casamento, não haverá presunção de paternidade ou de maternidade. Isto porque seria necessária a ratificação do consentimento anterior para a formação do vínculo paterno-filial, o que, no caso em apreço, é impossível dado o falecimento de um dos cônjuges ou companheiros, que, obviamente, não poderá manifestar sua vontade.


5.CONCLUSÕES

I - O Código Civil de 1916 não tratou, especificamente, da transferência de embriões excedentários, devido às limitações próprias da época em foi elaborado;

II - O Código Civil de 2002 trouxe valiosas (embora tímidas), inovações acerca da matéria, não a disciplinando, ainda, de maneira completamente adequada;

III - No ordenamento jurídico brasileiro, não existe impedimento para que os casais que convivem em união estável possam ter a liberdade de constituir sua descendência mediante técnicas de reprodução humana assistida;

IV - Com os avanços da Engenharia Genética e da Biotecnologia, avultam de importância os laços de amor e carinho existentes entre as relações familiares, em detrimento dos vínculos puramente biológicos. Daí a necessidade de se trazer à baila o conceito de filiação sócioafetiva;

V - A vontade procriacional inequívoca de ambos os cônjuges ou conviventes é fundamento do vínculo jurídico paterno-filial advindo das técnicas de reprodução humana assistida;

VI - O consentimento informado é a forma adequada para manifestação da vontade procriacional, idônea a produzir efeitos na órbita jurídica;

VII - Constatada a lacuna existente no Código Civil Brasileiro, esta deverá ser colmatada por meio da aplicação análoga do que preceitua o art. 1597, IV, de forma que o consentimento prestado voluntariamente por ambos os cônjuges seja considerado irretratável;

VIII - De lege ferenda, deve ser respeitada a teoria da vontade complexa, isto é, deve-se exigir dupla manifestação volitiva de ambos os cônjuges ou conviventes, em momentos distintos, a saber: tanto no início do procedimento quanto à época da realização efetiva de cada transferência;

IX - É importante a criação de um formulário padrão que consubstancie a exigência do consentimento informado, o qual deve ser utilizado por todas as clínicas de fertilização humana nas técnicas de reprodução assistida, sob pena de multa cominada em lei;

X - A ação negatória de paternidade não deve ser utilizada para impugnar a filiação decorrente do vínculo em apreço, devendo ao art. 1601 do Código Civil ser acrescentado um parágrafo 2º, com esse teor;

XI - Nos casos de maternidade ou paternidade post mortem, devido à impossibilidade de novo consentimento a ser prestado pelo (a) falecido (a), exigido pela teoria da vontade complexa, verifica-se a impossibilidade de se configurarem os vínculos de parentesco.


BIBLIOGRAFIA:

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VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. 3ª ed., v.6. São Paulo: Atlas, 2003.


Notas:

1 Bíblia Sagrada: Gênesis 01: 1 e 26a. 2ª ed. rev. cor, 4ª imp., tradução João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2000, p. 3-4.

2 DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.475.

3 PALUDO, Carolina Anison. Bioética e Direito: Procriação Artificial, Dilemas Éticos, p.2.

4 Resolução n.º 1358/92 do Conselho Federal de Medicina, art. 1º.

5 Resolução n.º 1358/92 do Conselho Federal de Medicina

6 GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, Parte Geral. v.1. São Paulo: Saraiva, 2002. p 91.

7 DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.113-114.

8 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000, p 10.

9 ALDROVANDI, Andrea; FRANÇA, Danielle Galvão de. A reprodução assistida e as relações de parentesco. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 58, ago. 2002.

10 FRAZÃO, Alexandre Gonçalves. A fertilização ‘in vitro’: uma nova problemática jurídica. Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 42, jun. 2000.

11 DINIZ, Maria Helena. A ectogênese e seus problemas jurídicos, apud FERNANDES, Tycho Brahe. A Reprodução Assistida em face da Bioética e do Biodireito: Aspectos do direito de família e do direito das sucessões. Ed. Diploma Legal: Florianópolis, SC, 2000, p 76.

12 ALDROVANDI, Andrea; FRANÇA, Danielle Galvão de. A reprodução assistida e as relações de parentesco. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 58, ago. 2002.

13 COSTA, Sérgio Ibiapina Ferreira; OSELKA, Gabriel e GARRAFA, Volnei. Iniciação à Bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998, p. 117.

14 COSTA, Sérgio Ibiapina Ferreira; OSELKA, Gabriel e GARRAFA, Volnei. Iniciação à Bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998, p.117.

15 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. 3ª ed., v.6. São Paulo: Atlas, 2003. p. 265.

16 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. 3ª ed., v.6. São Paulo: Atlas, 2003. p. 266.

17 SILVA, Mônica Neves Aguiar da. Reflexos Jurídicos dos Avanços Tecnológicos no Direito à Filiação. 2003, 339 f. Tese (Doutorado em Direito Civil) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. p.158

18 ABELLÁN, Fernando. Reproducción humana asistida y responsabilidad médica:consideraciones legales y éticas sobre casos prácticos. Granada: Editorial Comares, 2001, p.53.

19 Idem, p.162.

20 É importante ressaltar que a Drª Mônica Aguiar propõe, com base na legislação lusa, redação equivalente à acima grafada, sendo que a única diferença é a expressão técnica de reprodução assistida, já que a autora refere-se a inseminação artificial.


Autores


Informações sobre o texto

Trabalho apresentado na disciplina Direito de Família, ministrada pela Prof. Nilza Reis, na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Gabriel Dias Marques da; CARNEIRO, Bianca Bárbara Malandra et al. A transferência de embriões excedentários heterólogos após a dissolução da sociedade conjugal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 619, 19 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6464. Acesso em: 18 abr. 2024.