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Juízes que prendem x Juízes que soltam. A necessidade da justa medida.

Juízes que prendem x Juízes que soltam. A necessidade da justa medida.

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O presente artigo traz reflexões acerca da necessidade de se observar a isonomia, a razoabilidade, a proporcionalidade, a segurança jurídica e a proteção da confiança na decretação da prisão preventiva, tendo como norte a aplicação da justa medida.

Juízes que prendem x Juízes que soltam. A necessidade da justa medida.

Resumo: O presente artigo traz reflexões acerca da necessidade de se observar a isonomia, a razoabilidade, a proporcionalidade, a segurança jurídica e a proteção da confiança na decretação da prisão preventiva, tendo como norte a aplicação da justa medida sob uma perspectiva da Teoria Tridimensional do Direito, de modo a garantir que a aplicação do Direito não reste divorciada de valores intrínsecos à sociedade e, por consequência, assegure a pacificação social.

 

Palavras-chave: Gravidade abstrata. Gravidade concreta. Isonomia. Justa medida. Ordem pública. Pacificação social. Prende muito. Prende mal. Prisão preventiva. Proporcionalidade. Proteção da confiança. Razoabilidade. Segurança jurídica. Tridimensional. Valores.

 

Sumário: 1. Introdução – 2. Juízes que prendem x Juízes que soltam – 3. A necessidade de aplicação da justa medida sob uma perspectiva da aplicação da Teoria Tridimensional do Direito – 4. Considerações finais – Referências.

1. Introdução 

A prisão preventiva suscita infindáveis controvérsias quanto à necessidade de sua aplicação, especialmente porque, para o mesmo tipo penal e mesmo modus operandi, há juízes que prendem e juízes que soltam. Essa ausência de uniformização gera insegurança jurídica, fere os princípios da isonomia e da proteção da confiança e, por consequência, fomenta o descrédito do Poder Judiciário perante a população.

O Código de Processo Penal, em seu art. 312, estabelece as diretrizes para a decretação da prisão preventiva, sendo que, dentre os quatro pressupostos, é na garantia da ordem pública que residem as maiores controvérsias para a aplicação ou não da medida cautelar de forma isonômica, sem excessos ou privilégios.

O enfrentamento dessa questão passa necessariamente pela valoração que cada magistrado confere ao caso concreto. Para uns, determinado delito e suas circunstâncias não são graves o suficiente para perturbar a ordem pública; para outros, a prisão preventiva é medida de rigor.

Diante desse contexto, impõe-se a aplicação da justa medida, que constitui o meio termo entre a escassez de aplicação da prisão preventiva e o excesso dessa medida. Para tanto, exige-se uma reflexão/releitura sobre o conceito de "gravidade abstrata do delito", sob pena de perpetuar o distanciamento entre o Poder Judiciário e o cidadão. O entendimento sobre o conceito de “gravidade abstrata do delito”, dentre os vários tipos penais existentes, poderia até ensejar, em tese, discussões teóricas acerca de sua abrangência. Contudo, é na aplicação prática desse conceito, em crimes gravíssimos, com a devida vênia, que merece a superação do entendimento jurisprudencial (overruling), para que prevaleça a equidade, a razoabilidade e a aceitabilidade das decisões judiciais.

Nesse diapasão, a Teoria Tridimensional do Direito, elaborada por Miguel Reale, pode ser aplicada para garantir a aproximação do Direito com a realidade social, estabelecendo uma relação entre o fato (o crime), o valor (o sentimento social de justiça) e a norma (aplicação ou não da prisão preventiva), evitando-se que a subjetividade influencie a decisão e prepondere sobre os verdadeiros valores sociais. No caso, a realização da justiça na aplicação ou não da prisão preventiva.

2. Juízes que prendem x Juízes que soltam 

É preciso uma quebra de paradigma para que a percepção de que no Brasil prende muito, mas prende mal fique relegada ao passado. Para melhor compreensão de como é composto o número de prisões provisórias, cumpre destacar levantamento realizado no ano de 2017, pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, em que apontava um total de 221.054 presos provisórios (aproximadamente 1/3 da população carcerária), merecendo destaque os seguintes percentuais: 29% tráfico de drogas, 26% roubo, 13% homicídio, 8% crimes do sistema nacional de armas, 7% furto, 4% receptação, 2% latrocínio, 2% estupro de vulneráveis e 1% estupro, 1% organização criminosa, dentre outros.

O direito fundamental à liberdade encontra-se insculpido no art. 5º, incisos LIV, LVII e LXI, de forma a garantir ao cidadão o direito ao devido processo legal e a observância do princípio da presunção de inocência. A segregação do indivíduo do meio social somente ocorrerá em casos de flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente.

O Direito Penal é fragmentário. Portanto, somente deve ser aplicado quando os outros ramos do Direito não forem eficazes para solucionar os conflitos sociais. Todavia, a prática de infrações penais desencadeia, necessariamente, a intervenção estatal para que se evite a vingança privada, afastando a famigerada lei de Talião - “olho por olho, dente por dente”.

   Não se pode olvidar que o cometimento do delito, por si só, sequer implica restrição da liberdade, pois o Código Penal estabelece três espécies de pena, a saber: privativa de liberdade, restritiva de direitos e multa.

   O legislador, na condição de representante do povo, elege as condutas típicas que serão objeto de sanção penal em caso de transgressão da lei, fixando um mínimo e máximo de pena em abstrato, de acordo com a gravidade do delito. O regime prisional dependerá do quantum da pena concretamente fixado, das circunstâncias judiciais e das condições subjetivas do réu.

   É de se ressaltar que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (art. 5º, XXXIX, da CF), evidenciando os princípios da legalidade e da reserva legal, sendo incabível ao cidadão alegar o desconhecimento da lei quando pratica uma conduta tipificada como infração penal.

Diante desse quadro, o ordenamento jurídico pátrio, por um lado protege o cidadão de arbitrariedades do Estado em face de sua liberdade; por outro, estabelece o regramento necessário, em observância ao devido processo legal, para aplicação das sanções penais, possibilitando que o transgressor da ordem jurídica seja responsabilizado e, com isso, espera-se alcançar as funções da pena, em seu caráter retributivo, preventivo e ressocializador.

 Ocorre que a instrução criminal, em regra, demanda prazos consideráveis até o trânsito em julgado da ação penal, ou mesmo a confirmação da condenação em segundo grau e, a depender da gravidade concreta do delito, o infrator não poderá permanecer no convívio social, respondendo ao processo em liberdade.

A doutrina dominante e a jurisprudência dos Tribunais Superiores são praticamente uníssonas no sentido de que a “gravidade abstrata do delito” – caracterizada por elementos inerentes ao tipo penal - não constitui fundamento idôneo para a decretação da prisão preventiva.

É deste conceito jurídico indeterminado “gravidade abstrata do delito”, sobretudo, que emergem as decisões de juízes que prendem e juízes que soltam. Tal situação é evidente não só para o meio jurídico, mas especialmente para sociedade - do mais humilde dos cidadãos aos mais instruídos -, que simplesmente acompanham com perplexidade posicionamentos tão antagônicos, quanto incompreensíveis, diante de fatos semelhantes em que se concede a liberdade provisória para a prática de crimes gravíssimos, enquanto se mantém presos cidadãos que cometeram crimes que, pelas circunstâncias fáticas, não revelam maior gravidade.

Em crimes reconhecidamente gravíssimos, quer seja porque o legislador assim os reconheceu ao imputar penas mais elevadas, quer seja pela própria percepção social, ainda assim tem-se a possibilidade de concessão da liberdade provisória, ao fundamento de que a “gravidade abstrata do delito” não constitui fundamento suficiente para a decretação da prisão preventiva.

Indaga-se: como explicar a uma mãe que teve seu filho assassinado em razão de o agente ter cometido o crime de latrocínio para subtrair um aparelho celular ou um par de tênis, mas que o autor do delito não está preso preventivamente porque a gravidade abstrata do delito não constitui fundamentação idônea? Como explicar a uma mulher estuprada, mas que o autor do delito não está preso porque a gravidade abstrata do delito não é suficiente para justificar a prisão cautelar? Como explicar a um pai que teve sua filha assassinada por ciúmes, mas que o autor do crime não está segregado do convívio social porque a gravidade abstrata do delito não é motivo bastante para retirar das ruas o causador do delito?

A resposta é clara: não se explica nem para a vítima direta, nem para seus familiares, tampouco para a sociedade. Tal explicação só encontra ressonância em um sistema jurídico fechado, divorciado da realidade social e do senso comum, o que, sem dúvidas, cria um mundo paralelo incompreensível aos olhos do cidadão e incapaz de promover a justiça no caso concreto e acautelar o meio social, gerando, assim, o sentimento de que justiça que tarda é justiça que falha.

É certo que, em crime gravíssimo, por sua própria natureza, quando o agente executa os elementos nucleares do tipo penal ou é o mandante, a exemplo do crime de homicídio, ainda que seja em sua forma simples, tal conduta traz em seu bojo uma gravidade concreta, na medida em que atinge de forma irreversível o bem jurídico de maior valor, no caso, a vida.

Há exemplos emblemáticos nos quais a gravidade abstrata do delito é invocada para manter o agente em liberdade, podendo-se citar a chacina de Unaí em que os mandantes do crime permanecem soltos desde o ano de 2004 e o caso do jornalista do jornal “O Estado de São Paulo” que cometeu o crime de homicídio no ano 2000 e somente foi preso em 2011.

 A Operação Lava Jato faz emergir as figuras dos juízes que prendem e juízes que soltam, visto que, nos crimes perpetrados por agentes públicos e/ou por terceiros contra a administração pública, há um vasto campo para atuação do subjetivismo. De um lado, lastreados no conceito de "gravidade abstrata do delito" ou mesmo no entendimento de ausência de gravidade do delito, há os juízes que soltam; por outro, há os juízes que entendem tratar-se de crimes gravíssimos, tendo em vista que a coisa pública é apropriada por agentes que deveriam trabalhar em prol da população e, ao contrário, apropriam-se, em proveito próprio e de terceiros, dos escassos recursos públicos, prejudicando, sobretudo, os mais necessitados, que não terão acesso adequado aos serviços de saúde, educação, segurança, dentre outros.  

Nesses casos de crimes gravíssimos, há uma proteção insuficiente por parte do Estado com a permanência do delinquente em liberdade, ao passo que há ofensa ao princípio da proteção da confiança depositada pelo cidadão no Estado, no sentido de se retirar do convívio social o agente infrator, que, ao cometer um delito gravíssimo, atinge concretamente a ordem pública, sendo a prisão necessária para acautelar o meio social.

Não há falar-se em prisão automática ou antecipação de pena, pelo fato de o agente ser preso preventivamente. Muito pelo contrário, a prisão decorre da própria natureza do crime suficiente para revelar a gravidade concreta da conduta, que nesses delitos gravíssimos atingem bens jurídicos insuscetíveis de recomposição ao status quo ante, tais como a vida, a dignidade sexual, a dignidade do cidadão que se viu desprovido dos recursos públicos necessários à garantia do mínimo existencial às camadas mais carentes.

Na outra ponta de aplicação da prisão preventiva, há os juízes que adotam um juízo valorativo dotado de extremo rigor na aplicação da medida extrema, para crimes cuja “gravidade abstrata do delito” não é suficiente para fundamentar a segregação cautelar do cidadão, podendo-se citar, como exemplos, o tráfico de drogas e os crimes contra o patrimônio (roubo, furto e receptação), que totalizam 66% (sessenta e seis por cento) das prisões provisórias.  Eis aí a percepção de que no Brasil prende muito, mas prende mal.

Não se nega a gravidade dos crimes de tráfico de drogas e roubo, mas há que se perquirir se a conduta do agente revela uma gravidade concreta. O crime de tráfico de drogas, sem dúvidas, causa sérios danos à ordem pública e à paz social, mas não prescinde da análise de sua gravidade, no caso concreto, sob pena de igualar condutas gravíssimas a outras de menor lesividade (não se pode colocar em "vala" comum o grande traficante, o contumaz e aquele que praticou o crime de forma casual). De igual modo, no crime de roubo, que decorre do emprego de violência ou grave ameaça à pessoa, é preciso analisar o modus operandi. Não é uma mera ameaça empregada para subtrair o bem que constitui fundamento suficiente para a decretação da prisão preventiva.

O juiz deve ser aquele que prende e aquele que solta, desde que a sua decisão não esteja influenciada por ideologias políticas ou convicções particulares, mas sim respaldada na razoabilidade, na proporcionalidade, na isonomia, na segurança jurídica, na proteção da confiança e, por consectário lógico, na justa medida.

3. A necessidade de aplicação da justa medida sob uma perspectiva da aplicação da Teoria Tridimensional do Direito.

A aplicação da Teoria Tridimensional do Direito pode ser uma forma eficaz de se conseguir a justa medida nas decisões acerca das prisões preventivas. Para Miguel Reale, Direito é fato, é valor, é norma. Assim, em uma perspectiva de um sistema jurídico aberto e interdisciplinar, cabe ao magistrado captar valores naturais à sociedade, sob pena de isolamento do direito da realidade social e, por consequência, não se atingirá a resolução dos conflitos e a pacificação social.

Os valores naturais devem estar pautados na ética, na moral, no senso de justiça. A decretação da prisão preventiva, por certo, não deve decorrer do clamor do momento ou da posição socioeconômica do agente. A análise recairá sobre o fato, com a incidência dos valores e das normas, sendo inconcebível a seletividade do sistema penal, reservando aos pobres o cárcere, enquanto criminosos de colarinho branco respondem ao processo em liberdade.

Na perspectiva da Teoria Tridimensional do Direito, sobre um fato (o crime), incidirão diversos valores (repulsa social ao crime, necessidade de se garantir a ordem pública, proporcionalidade da intervenção do Estado no que concerne à liberdade do agente etc.). Como consequência de tais valores, poderão incidir normas diversas (prisão preventiva, concessão da liberdade com base na gravidade abstrata do delito, aplicação de medidas cautelares diversas da prisão).

A escolha de qual norma incidirá no caso concreto é de competência do Poder Judiciário, devendo-se ressaltar que o poder conferido aos juízes não é pessoal, mas sim decorre do cargo público, razão pela qual não pode o juiz fazer prevalecer suas convicções pessoais, sobrepondo a órgãos colegiados e aos princípios da razoabilidade, da proporcionalidade, da segurança jurídica e da proteção da confiança, sob pena de subverter a ordem natural das coisas e a sua decisão restar divorciada dos valores que permeiam a sociedade.

Nessa linha de intelecção, considerando que o Direito é fato, é valor e é norma, em última instância, a escolha da aplicação da norma pode e deve decorrer dos valores sociais, no caso, a concepção social de transgressão da ordem pública decorrente da prática do crime. Para crimes gravíssimos, a prisão preventiva deve ser medida de rigor, salvo as hipóteses de o agente ter praticado o fato em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal, no exercício regular de direito ou diante de condição especialíssima  e evidente apta a afastar a necessidade da imediata prisão cautelar. Noutro norte, deve ser garantido ao cidadão responder ao processo em liberdade quando, pelas circunstâncias concretas, cometeu uma infração penal incapaz de perturbar a ordem pública.

4. Considerações finais

A justa medida para a escolha da norma a incidir sobre o instituto da prisão preventiva será aquela que represente os valores sociais, o entendimento dos órgãos colegiados e a gravidade concreta do delito, circunstâncias que, alçadas a um juízo de ponderação, resultarão em decisões de juízes que prendem e soltam, em estrita observância ao ordenamento jurídico e à necessidade de acautelamento do meio social, o que, por certo, refletirá na credibilidade do Poder Judiciário e na realização da justiça no caso concreto. 

 

REFERÊNCIAS:

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 11 ed. São Paulo: Atlas, 2015.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Levantamento dos Presos Provisórios do País e Plano de Ação dos Tribunais. Notícias do CNJ. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84371-levantamento-dos-presos-provisorios-do-pais-e-plano-de-acao-dos-tribunais>. Acesso em: 12 jul. 2018.

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: Acesso em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm>. Acesso em: 12 jul. 2018.

BRASIL. Senado Federal. Alexandre de Moraes: O Brasil prende muito, mas prende mal. Senadonotícias. Disponível em:  <https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2017/02/alexandre-de-moraes-o-brasil-prende-muito-mas-prende-mal>. Acesso em: 12 jul. 2018.

GONZAGA, Alvaro de Azevedo; ROQUE, Nathaly Campitelli. Vade Mecum Humanístico. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

 

 

 

 


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