Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/71514
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Impreciso, falso, errôneo: o “abra-te sésamo” jurídico.

O código de acesso ao Direito que o Direito não poderia ter

Impreciso, falso, errôneo: o “abra-te sésamo” jurídico. O código de acesso ao Direito que o Direito não poderia ter

Publicado em . Elaborado em .

TRATA-SE DE CONCLUIR a série de dez artigos esparsos, (que formam uma espécie de variação sobre o mesmo tema), todos reunidos em Jus Navegandi que escrevi com o objetivo ingênuo de provocar um interesse por reflexões genealógicas mais apuradas...

“Aprenda a encantar e a desencantar. Observe, estou lhe ensinando qualquer coisa de precioso: a mágica oposta ao “abra-te, Sésamo”. Para que um sentimento perca seu perfume e deixe de intoxicar-nos, nada há de melhor que expô-lo ao sol”.

(Clarice Lispector)


ADVERTÊNCIA

TRATA-SE DE CONCLUIR a série de dez artigos esparsos, (que formam uma espécie de variação sobre o mesmo tema), todos reunidos em Jus Navigandi, (sem dar-se ao trabalho de torná-los coeso, pois que não há creditos disponíveis nos comentários), que escrevi com o objetivo ingênuo de provocar um interesse por reflexões genealógicas mais apuradas, mais honestas, e uma mudança crítica, (porque ética sem deixar de ser normativa), no enfoque epistemológico dos estudos do Direito, necessário para a transformação do Direito rigorosamente em Ciência Filosófica da Sociedade , apesar da triste alienação do STF... São dez artigos que se interpenetram dialeticamente e se depuram internamente, mantendo um diálogo radical com as aporias legais, quebrando-as como se fossem cascas de amendoim, pois que o que interessava eram as nutritivas sementes que elas continham, que dizem, tem propriedades afrodisíacas. Com efeito, nos nove anteriores e nos dez agora artigos aqui publicados tratava-se (e trata-se) de reflexões sérias e impertinentes, mas nada tinha de “reacionarismo”, “conservadorismo”, “preconceitualismo”, “moralismo” etc., ao contrário, considerava as medidas e os movimentos ideologicamente manipuladores de intenções estranhas que poderiam influir desastrosamente na imaginação da “realidade social” para o mal (Ricouer). Tratava-se de reflexões que observava a história contemporânea do que é observado olhando para trás no tempo, não para “recriar” o passado, mas, antes, entender o “e agora” do presente, e projetar um “e depois, como fica”, pois que não se tratam de ideias, atos e movimentos complementares do futuro, e sim do-aqui-e-agora no qual nada vale ser sacrificado... O objetivo era escavar mais fundo no cemitério das grandes ideias jurídicas, de onde emanam as jurisprudências fantasmagóricas do STF, e retirar das sepulturas (com a ajuda dos leitores) os problemas heurísticos enterrados pela estupidez, contra os que se apresentavam assustadoramente diante do Direito de Família como espectros sem realidade, sem concretude histórica, sem fundamentação, simples fantasmagorias da “modernidade líquida” (Baumann), e que, por terem sido capturados por “Caça Fantasmas” filosóficos buscam refúgio político-jurídico na república de um “Direito das Famílias”. A ideia é fazê-las, (as grandes ideias jurídicas), renascerem e testemunharem em nome próprio diante do Tribunal... E fazê-las testemunharem sobre que respostas ideológicas mortas-vivas e zumbis oportunistas, (sob o signo da “cultura”, “da oposição política”, de “falsos ideais libertários”, “das novas abordagens”, “dos novos enquadramentos” ou dos “novos paradigmas heurísticos e metodológicos do Direito”), falsificam e corrompem o que deveriam transformar? Quem são estes ideólogos que se apresentam como um novo Midas que transformam em esterco o que deveria antes alimentá-los?... Em outras palavras, o objetivo era chamar à atenção para a consolidação das bases históricas imprescindíveis para a elaboração consistente e coerente das proposições de uma Ciência do Direito enquanto Ciência Filosófica da Sociedade , e não, como atualmente têm acontecido de promover uma Ideologia Técnica dos Interesses e Litígios Subjetivos , consagradas pela ideologia belicosa e ultraliberal dos “Direitos Humanos ”, e seus falsos valores e maldosos princípios de um “mundo globalizado” (Sic!) que advogam um estranho Direito “principiológico” que se proclama espertamente Constitucionalizado pela torção da doutrina do Direito Constitucional, (muito em uso pelo STF, por exemplo, nos processos da Operação Lava Jato etc.). E assim, o Mundo é moldado a jeito e gosto de advogados juriscidas e interesses perversos que “desconstroem” (para não dizer falsificam), especialmente, (e por motivos óbvios), os fundamentos do Direito de Família , de um lado, e do Direito das Relações Internacionais , de outro, consagrando a heteronomia dos povos, no segundo caso, e a solidão e a degradação moral das pessoas, no primeiro caso. E assim o mais universal dobra o mais particular, portanto, imaginei, (absolutamente auto-iludido), que os leitores pudessem realizar uma leitura hermenêutica e crítica dos dez textos, (e se interessariam em debatê-los implacavelmente com uma crítica consistente e sólida, e não leviana e líquida), e que num fio contínuo (ou descontínuo) de reflexão através de suas mutações relacionais internas poderiam aquilatar os equívocos jurídicos contemporâneos e observar a lama em que se descarrila e atola não só o STF, mas o próprio trem da história do Direito e da Justiça no Brasil. Mas... Tudo bem! Com o presente texto encerro tristemente a elaboração e a publicação de textos jurídicos na web, pelo menos provisoriamente. Muito sou grato ao site Jus navegandi, que me concedeu o privilégio de publicar diretamente no site, e, paradoxalmente (?), punindo-me por tal privilégio (que não solicitei) não reproduzindo meus textos na Revista Jurídica , o que diminui substancialmente o número dos potenciais leitores, portanto, o privilégio revelou-se um “lavo as mãos”, e, ao mesmo tempo, “um presente de grego”. Devo eu cair na armadilha da autocensura? Mesmo assim, minha dívida é grande, e, inegavelmente Jus Navegandi é um site imprescindível para o desenvolvimento e amadurecimento da reflexão jurídica no Brasil. Agradeço à atenção, e nunca lhe serei suficientemente grato... Jus navegandi é espetacular! Parabéns! Mas, como discurso de despedida, o que tenho a dizer como arremate?


DE UMA INQUIETAÇÃO, A DESCOBERTA.

Inquieto na sala de espera do médico, pois sem nada para fazer a não ser esperar ser atendido, sinto falta de algo para ler, para ajudar a passar o tempo e, de uma pilha desoladora de revistas velhas, manuseadas e desatualizadas, a maioria absoluta de nível vergonhoso (de TV, banalidades, fofocas, celebridades), “típicas de consultório”, caí em minhas mãos, (por se encontrar absolutamente deslocada naquele meio lixoterário e por isso evidente), a solitária Revista Jurídica Consulex, de 15 de outubro de 2012. Pois é, estamos em maio de 2017, quer dizer, foi assim, retroativamente, que (mais uma vez) iria verificar que os anos se passaram e ainda nada de novo à luz do sol: “Tudo como dantes no reino de Abrantes”. A impressão é que na esfera jurídica as ideias se desenvolvem para faltar, e por isso em círculos de raio estreito, como um cachorro que acossado pela pulga, gira e rosna tentando morder o próprio rabo, o meio jurídico gira e morde suas próprias ideias pulguentas... Assim, a ladainha de ontem continua, e sobre a Família são exatamente as mesmas, os absurdos de sempre se repetem numa monotonia angustiante em textos absolutamente sem vida, mas providos de “um gozo inorgânico e plástico interminável” e um gosto (Kant) de mau gosto das promessas luxuriantes e necessárias dos proxenetas. Afinal, como disse o ex-secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger: “O poder é afrodisíaco!”. E por tal qualidade o número de interesses e interlocutores é que tem aumentado exponencialmente, é claro, dado ao crescente baixo nível que parece não ter fim, e, pari passu, o número de articulistas acompanha a tendência e a fortalece, o que não é nada bom. E o denominado Direito das Famílias mais se parece o anúncio de um bordel das ideias jurídicas sexuais (mais uma agressão ao dispositivo do Art. 5º, caput, da CF/88), e mais uma perversidade made in ultraliberalismo capitalista dependente. Chama-se isso produção de artigos da moda jurídica para engordar currículos com “produção científica” em que a qualidade não é um atributo (Spinoza) e a coerência não é uma necessidade...


A SUPERFICIALIDADE E A SUPERFLUIDADE de ideias que parece existir nas revistas jurídicas em geral (como nas revistas de consultório) parecem reduzir tudo ao amplo estatuto maledicente da reprodução do “capital”, da “sacanagem”, da “canalhice”, da “imbecilidade”, ou da “fofoca” imperturbável, e tudo porque “um valor de baixo nível tem grande poder de penetração” (Toynbee). Que horror! Há exceções honrosas e (que não são poucas) de grande valor heurístico e metodológico, mas eu penso nos “canalhas” de Lacan atuando no espaço ético-político trabalhando o tema dos “Direitos Humanos”, da “Sexualidade” ou da “Família” etc.! E canalhas para Lacan, na observação de Zizek, “são os que propagam o semblante de libertação que encobre a realidade da perversão capitalista, o que, para Lardreau, quer dizer Lyotard e Deleuze e, para nós, muito mais” (ZIZEK, 2013, p. 28), portanto, temos grandes, médios, pequenos e insignificantes canalhas, assim como juristas “imbecis!(Zizek). Não seria esta proliferação o espírito maligno de todas as coisas humanas do Mundo? Ou seria do inumano do i-mundo?... Não poderíamos aplicar, aqui, o que afirma Catherine Malabou, em “The future of Hegel”: “O espírito não é expresso por suas expressões: ele é aquilo que originalmente aterroriza o espírito” (Apud, ZIZEK, 2013, p. 200), o que, obviamente, o faz entrar em oposição, contradição, negação ao buscar escapar da “posição subjetiva e fundamentalmente contingente do sujeito” (Zizek) ao dirigir-se ao “caminho do campo” (Heidegger) da verdade universal e necessária...


POIS BEM, A MATÉRIA DE CAPA, com título “DIREITO DE FAMÍLIA E AFETIVIDADE NO SÉCULO XXI ”, por si só ativa muitas expectativas (mais uma vez sempre as mesmas) de encontrar possíveis “renovações” doutrinarias já realizadas que eu ignorava e que poderia estar constante do corpo da revista (da pág. 24. à pág. 45), despertou meu interesse imediatamente, e, após rápida folheada, observei que ela era circunscrita de nove artigos “atualíssimos” (no sentido de que poderiam ter sidos apresentados como escritos hoje, pois os de hoje dão a impressão de serem elaborados com tesoura e cola), a saber: 1) “A Afetividade como Princípio Jurídico Consagrado no Direito e Família”, de Rolf Madaleno; 2) “O Princípio da Afetividade no Direito de Família: Breves Considerações”, de Flávio Tartuce; 3) “Direitos Fundamentais, Afeto e Direito de Família”, de Roger Raupp Rios; 4) “Direito da Família e Afetividade no Século XXI”, de Marcus Vinicius Kikunaga; 5) “A Invisibilidade das Uniões Homoafetivas”, de Maria Berenice Dias; 6) “Princípio Jurídico da Afetividade na filiação”, de Paulo Lôbo; 7) “Duplo Encargo do Abandono Afetivo”, de Isabel Cochlar; 8) “Abandono Afetivo Parental e a Desastrada Abordagem pela Dogmática Jurídica”, de João Gaspar Rodrigues, e, finalmente, 9) “A Construção da Alienação Parental”, de Rosa Ribas Marinho.


E É CLARO, DEPOIS DA CONSULTA MÉDICA, com um receituário enorme nas mãos, revista em punho, pedi ao médico, que também era meu amigo de longa data, para levá-la emprestado, pois gostaria de lê-la com cuidado, disse-lhe: “dado ao mau cheiro de algumas ideias que emanou da rápida folheada”... Ele sorriu e aquiesceu, e assim o fiz pensando animado: quem sabe encontre alguma abordagem diferente da equivocadamente doutrinada atualmente e que signifique “limpeza de esgoto”? Talvez um bom trabalho de interpretação Constitucional verdadeiramente original e filosoficamente consistente, quem sabe? Alguma reflexão séria e de pudor? Algo que se possa fazer referência como constituinte de “uma inovação não líquida” (como diria Baumman) na doutrina do Direito de Família?... Mas que decepção! A própria relação Direito & Afetividade já lançava suspeita, (tal qual a de Direito & Literatura ), já é em si complexa e problemática porque líquida demais, duvidosa demais, improdutiva demais, revelando-se apenas mais um beco-sem-saída, como muito bem apontam transversalmente com brilhantismo João Gaspar Rodrigues (pp. 42-43) e Rosa Ribas Marinho (pp. 44-45), ao tratarem, respectivamente, do abandono afetivo e da alienação parental. Abstrai-se inexplicavelmente o Fato (Wittgenstein) de que vivemos numa sociedade capitalista, consequentemente, para complicar toda intervenção externa fere mais ainda a Família, já tão heterônoma, ou seja, diz-nos João Gaspar Rodrigues aguda e brilhantemente:

“A intervenção do Estado (juiz e legislador), portanto, longe de harmonizar, elevar e enobrecer os valores familiares, só consegue pelos seus rudes meios coativos monetarizar, gerar ressentimento e envilecer as relações familiares, cavando um fosso intransponível na vida afetiva dos pais e dos filhos. Rompe mais um ponto na frágil costura que mantém integra a família moderna” (RODRIGUES, 2012).

Por sua vez Rosa Ribas Marinho, observa também aguda e brilhantemente que:

“O processo de alienação parental é tão prejudicial que pretende, como fim último, descaracterizar a família, instalando-se unilateralmente um novo conceito familiar, o de família monoparental, já que o proposto é o reconhecimento e aperfeiçoamento exclusivo a um único genitor, o alienador” (MARINHO, 2012).

Touche!...


A QUESTÃO É COMPLEXA, EXIGE n-desdobramentos epistemológicos, e desenvolve-se numa miríade de planos ontologicamente diferentes a partir de uma base única de preconceitos (Arendt) e hábitos (Hegel, Malabou, Zizek)!... E eis-nos diante de um “poço noturno em que se conserva um mundo de imagens infinitamente numerosas, sem que estejam na consciência” (HEGEL, apud, ZIZEK, 2013, p 201, nota de rodapé 67)... Mas, enfim, o que objetivo, aqui, é indicar (de forma ligeira, apenas ilustrativa e por isso lacunar) alguns graves problemas não considerados (e não ainda), ou que foram superficialmente expostos (e o são ainda), senão sistematicamente ignorados (por simpatia ou conveniência), mas com certeza (involuntariamente) criminosamente abandonados e que persistem até hoje. E alguns conceitos (Hegel) importantes apesar de vazios, apesar de muito utilizados porque vazios, por exemplo, o de “Direitos Humanos ” ou o de “Família Patriarcal ” etc., (o que não deixa de ser paradoxal), reduzidos a meras ferramentas ideológico-conceituais, permanecem um signo (um vocábulo, um conceito, um traço, um rastro) na solidão de seu significado, ou no abandono de seu significante, apresentados como meros velhos e gastos termos pelo uso reificado, e que se tornaram alienados de sua significação e que, fora do jogo, se apresentam destituídos de seus sentidos históricos próprios e/ou o de seus sentidos heurísticos contextuais como se fossem palavras atemporais reduzidas a meras abstrações, “menos que nada” (desprovidas de semantemas, morfemas etc.) e que podem ser substituídas (ideologicamente), -- uma vez banidas do campo da semiologia -- por qualquer outra agora na moda, (já que agora, segundo Deleuze, “filosofar é criar conceitos”), o que não significa necessariamente compreender ou reconhecer o peso semântico da realidade que o/ou um “velho” conceito abandonado e nulificado carrega em si e descarrega no “novo” na forma de hábitos e/ou preconceitos, -- apesar das mutações sofridas por todas as radiações culturais a que foram submetidos a interesses inconfessáveis e conhecimentos perversos a ponto de que, para descortinar sua originalidade, até a exegese é insuficiente e a hermenêutica falha, porque fora do jogo da significação qualquer conceito, seja o de “Direitos Humanos”, seja o de “Família Patriarcal” etc. perde sua garantia ontológica, e enfraquece (ou mesmo anula) suas bases fenomenológicas por negar sua genealogia e obscurecer seus renovados fundamentos gnosiológicos... Então, tratar-se-ia, em cada caso de empreender um trabalho desnecessário de desconstrução (Derrida) semiótica? Teria isso alguma vez limite? Teria pelo menos sentido? Difícil imaginar! Fico, portanto, com uma observação de Michael Senellart, um alerta para o perigo de subestimar “a força do vocabulário quando se o reduz ao simples invólucro de um pensamento ideológico”...


INTERESSA-NOS, COM EFEITO, a força histórica da expressão composta Família Patriarcal, na qual tudo tem diante da Vida Boa (Heller) um Valor ou um Mérito. Todo cuidado, portanto, é pouco, pois que os conceitos do Direito de Família encontram-se em greve: não trabalham no Direito das Famílias... Com efeito, vamos considerar um dos primeiros trabalhos de Lacan, não por acaso sobre “A Família”, justamente porque, como observou na “Introdução” Maria Belo, o texto: “É magistral na explicitação dos seus conceitos de base nomeadamente as noções de família e de cultura, a distinção entre complexo e instinto assim como conceitos mais especificamente psicanalíticos”... Mas, dado aos objetivos pragmáticos e/ou empíricos contemporâneos que se buscam numa contenda familiar que concilie, simultaneamente, o “mercado jurídico” (divisão do capital e das propriedades nas rupturas inter familiae que acionam os Direitos de herança) e o “mercado dos desejos” [as carnes, o corpo-máquina para o gozo e uso dos prazeres, e os afetos, o espírito de porco para as perversões e desesperos (Kierkegaard)] como solução contemporânea tanto para a dualidade corpo e alma do racionalismo clássico (Platão) quanto do racionalismo moderno (Descartes)... E eis-nos face a face com o horror: uma ordem inferior inscreve-se numa ordem superior! Tal qual o Socialismo inscreve-se no Capitalismo, o Legal inscreve-se na Ilegalidade, a Magistratura inscreve-se nos Juriscidas... Os Poderes estão podres! Vejo que assim o Direito de Família entra em crise, portanto, “A Familia”, de Lacan é muito bem-vinda para o Direito, é o início de um entendimento...


NA VISÃO DE HEGEL, COM A LACUNA RADICAL aberta em nosso espírito perante a oposição entre Amor vs. Propriedade e Direitos ; na de Fromm, na forma com que as relações de Troca e Venda que condicionam e corrompem as relações de Amor. E finalmente, o Mercado , no sentido de Zizek, apresenta-se como o reino da razão, do desejo e dos interesses, que absorve e dissolve qualquer laço amoroso... Ora, sabemos que a riqueza, na “Sociedade Capitalista”, se caracteriza na observação de Marx, por ser constituída por “uma imensa acumulação de mercadorias”, e que isso encontra eco em todas as relações sociais (corrompendo preconceitos e desestabilizando hábitos), por criar novas “necessidades” e novos meios de exploração econômica, inclusive (ou talvez até principalmente) no seio da Família enquanto produção social, a começar pelo casamento, [a instituição pedagógica de domesticação (Sloterdijk) que a constitui], e que não consegue ultrapassar a fronteira de ser estrategicamente mais que “um ardil da sobrevivência”, na expressão de Adorno, ou “um contrato de permissão para relações sexuais”, na critica pertinente de Reich. Trata-se, portanto, aqui, de pensar tanto o mecanismo do excesso inerente, quanto o mecanismo do núcleo ex-timo das relações familiares. E parece-me evidente que os mecanismos dos excessos inerentes e do núcleo ex-timo sejam determinados, respectivamente, pelos preconceitos e pelos hábitos que se estabelecem agora como o lugar de atuação das catexes libidinais (Freud), logo, são os irradiadores dos perceptos, dos intelectos e dos afetos que se inscrevem na Ordem ou em sua Negação subjetiva...


QUER DIZER AINDA QUE TEREMOS DE ENTENDER o processo dialético da negatividade retroativa, (que atualmente articula ideologicamente falácias que se apresentam, por exemplo, na forma do/e como conceito de “Família Patriarcal”, ou “Poder masculino” etc.), e, neste sentido, Filhos e Filhas -- [em seu sentido mais abstrato ou mais genérico, dado o “poder negativo do Entendimento” (Zizek)] -- podem (numa realidade de fetiches) ser considerados (percebidos como) objetos, ou propriedades ou mercadorias de Famílias? E aqui reside o quiproquó! Sim, em última instância, também isso, em termos hegelianos, em sua “exterioridade direta” (Zizek), mas não fundamentalmente. E como diria Heidegger, “tudo tem um fundamento”... Com efeito, a função social da família, na figura do Pai e da Mãe etc., (numa orientação pedagógica assim utilitária), não seriam algo similar a de comerciantes ou do proxeneta? Sim, talvez esta característica e atividade sejam a regra consuetudinária de sua constituição histórica não-biológica, (o que abre todas as lacunas para desenvolver-se as afeições objetais que intensificarão as relações homossexuais, principalmente nas mulheres), e, neste sentido, pode-se dizer que, com a proibição do incesto etc., a família recebeu um grande arsenal de regras e leis que, no curso implacável da historia (e seus saltos qualitativos, corrupções conjunturais e acontecimentos aleatórios traumáticos), por mutações da sensibilidade humana , [a medida que aumentam ou diminuem no tempo e no espaço os constrangimentos e as vergonhas, (Elias)], tornaram-se a garantia legal das transformações de todas as relações sociais de produção e de distribuição biopolítica, paradoxalmente, em direitos subjetivos, atendendo também ao emergente e recalcitrante mercado de afetos, interesses e compromissos de “comerciantes biopolíticos” ou de “proxenetas internacionais”. E assim, por exemplo, o conceito kantiano de Dignidade perverte-se, e sua solidez ética dissolve-se no ar...


COMO CONSEQUÊNCIA, RESUMINDO, o que temos nos recônditos mais obscuros da “história da intima da humanidade” (Zeldin) ex-timo é este grande Outro que é o Mal, (religiosamente identificado como a figura do Diabo), que, na verdade, é uma transmutação reversiva da ideia de Bom (ou de Deus), equivalente, no mercado, à invenção econômica do que denomino “mercado das necessidades virtuais”... A questão é complexa! E eis-nos diante da dialética do universal vs. particular, ou seja, da necessidade enquanto mãe universal dos desejos e das crenças, e, assim, também particularmente mãe dos afetos e da (gerados por serem metafisicamente necessários e suficientes), se torna naturalmente (o que não deixa de ser paradoxal), por reversão, a essência (patriarcal, masculina, etc. ou o que quer que sejam) das relações sociais familiares mais particulares. E eis que (no quadro da Família Moderna) surge a figura do/ e entra em cena o/ Sujeito de Direitos, e, com ele as ações afirmativas (que é isto?) e a ideologia do empreendedorismo (onde isso nos levará?) e a ideologia das subjetividades etc. Vale observar que, de repente, no proclamado “fim das ideologias políticas” tornamo-nos hiperbolicamente ideológicos da perversidade. O fato é que com o “Sujeito de Direito”, enfim, o Mercado assume radicalmente sua dimensão maléfica, ou seja, parafraseando Zizek, surgiu uma brutal economia de mercado de sobrevivência, como se o país (o nosso país) tivesse regredido a um Estado de natureza hobbesiano: descubra um nicho de mercado (de vendedora de macarrão caseiro feito de milho, de cabeleireira ou de prostituição, não importa, a promiscuidade, a permissividade e a perverssividade estão ai legalmente para abrir as portas de todas as oportunidades) ou morra (cf. ZIZEK, 2013, p.156). Com efeito, vence os comerciantes, não os amantes; vence as relações de troca e venda, não a dignidade etc.


MAS NÃO É ENQUANTO PAI OU MÃE que o comerciante tem o que se chama Filhos e/ou Filhas? E não é como “perfeito sujeito universal” que ele também “ama” seus filhos e/ou filhas? “Amar” é o ato de dar-se (Fromm), e isso não tem sexualmente similaridade com o ato de “conter o desejo de outro”? E não é como “imperfeito sujeito particular” que ele desenvolve suas “faculdades de amar”? Como separar o “perfeito sujeito universal” do “imperfeito sujeito particular”? Como seria possível dividir socialmente o comerciante em Pai e não-Pai ou Mãe e não-Mãe? Mesmo porque, como observou Erick Fromm, em “A arte da amar”, evidencia-se que a reprodução da lacuna entre Pais & Filhos, por exemplo, que atinge o coração do Comerciante (e de todos nós), relaciona-se estreitamente com um dos aspectos “característicos da cultura contemporânea”, a saber, diz Fromm, o fato de que:

“Toda a nossa cultura se baseia no apetite da compra, na ideia de uma troca mutuamente favorável. A felicidade do homem moderno (para a felicidade do Comerciante) consiste na sensação de olhar as vitrinas das lojas e em comprar tudo quanto esteja em condições de comprar, quer a dinheiro, quer a prazo. Ele (ou ela) encara as pessoas de maneira semelhante. Para o homem, uma mulher atraente (e, para a mulher, um homem atraente), eis o lucro a obter. “Atraente” vem a significar, normalmente, um bom fardo de qualidades que sejam populares e muito procuradas no mercado da personalidade” (FROMM, 1958, p.12).

E conclui enfático que a “sensação de cair enamorado” ou qualquer outro sentimento que se desenvolva em nome do amor:

“só se desenvolve normalmente com relação aos artigos humanos que estejam ao alcance das possibilidades de transação de alguém. Saio para uma troca: o objeto deve ser desejável, sob o aspecto de seu valor social, e ao mesmo tempo deve desejar-me, levando em consideração minhas potencialidades e recursos expostos e ocultos. Assim, duas pessoas se apaixonam quando sentem haver encontrado o melhor objeto disponível no mercado, considerando as limitações de seus próprios valores cambiais. Muitas vezes, como na compra de um imóvel, as potencialidades ocultas que possam ser desenvolvidas desempenham considerável papel na transação. Numa cultura em que prevalece a orientação mercantil, e em que o sucesso material é o valor predominante, pouca razão há para surpresa no fato de seguirem as relações do amor humano os mesmos padrões de troca que governam os mercados de utilidades e de trabalho” (FROMM, 1958, p.13).


EM HEGEL, A LACUNA QUE SE REPRODUZ em Fromm nas relações de Compra & Venda que governam o Mercado, se produz no abismo psicológico que separa Amor vs. Propriedade e Direitos, ou seja, há nos “Escritos Teológicos” (de 1790-1800), do jovem Hegel, um primeiro esboço do seu panfleto “Die Verfassung Deutschlandes” (1798-1799) em que Hegel afirma que a forma histórica da “propriedade burguesa” (Bürgerliches Eigentum) é responsável pela desintegração política dominante. Desintegração política que fazia com que, como disseram Marx-Engels, em 1848, no “Manifesto Comunista”: “Tudo que é sólido, dissolve-se no ar”. E mais, Hegel percebia e declarava que as “instituições sociais” deformavam e deformaram mesmo as relações mais privadas e pessoais entre os homens, portanto, nada mais hegeliano do que a observação crítica de Paul Tilich: “as instituições sociais criam certezas que, se levadas a sério, algemam a imaginação e entorpecem os ânimos”. Neste sentido, há nos escritos do jovem Hegel um significativo fragmento chamado “Die Liebe”, no qual Hegel constata que a harmonia e a união perfeita entre indivíduos que se amam ficam ameaçadas pela aquisição e posse tanto de propriedades como de direitos, pois que isso as vinculam a “coisas mortas”, que se mantém, por definição, fora de sua unidade. As observações acima de Fromm, Hegel etc. nos encaminham para um reflexão radical sobre a significação do Comerciante na “sociedade burguesa”, e, a melhor significação, sem dúvida, e a expressa por Slavoj Zizek, em “Menos que nada”, citando Lebrun, em “O avesso da dialética”, saber:

“A forma mais elevada de produção social é, portanto, a de um comerciante: “o comerciante é o único a portar-se relativamente ao bem como um perfeito sujeito universal, e o objeto já não lhe interessa em absoluto por sua presença estética ou valor de uso, mas apenas enquanto ‘contém o desejo de outro’” (ZIZEK, 2013, p. 43).

Logo, ainda apenas enquanto valor de troca...


COMO CONSEQUÊNCIA HISTÓRICA ATUAL de todos os movimentos emergentes e transformadores da intimidade e de toda reflexão política sobre a Família, o aporcalhamento teórico é o que acontece atualmente e que fundamenta a Crise familiar com as mutações (sem as devidas necessidades reais) nos fundamentos dos conceitos do Direito de Família... Gostaria, portanto, en passant, de alertar para o perigo social que se apresenta na presente encruzilhada histórica que nos situamos e que nos engolfa: o que está sendo feito com o Direito de Família, está sendo feito com o Direito Civil, e, em geral, contra o Estado, é ideológico [manipula com (in)competência ideológica as normas, os valores e os princípios constitucionais] e se processa a revelia de qualquer proposta (teórica ou prática) de uma Ciência do Direito, ou de uma Teoria das Relações entre Estado e Sociedade Civil... Com efeito, situamo-nos diante de tudo que estimula e promove as “vidências cegas” dos diagnósticos político-sociais incompetentes. Inevitavelmente! O que objetivamos aqui não é desenvolver esta análise, que por sua complexidade dialética e paralaxica supera os limites heurístico e metodológico do presente trabalho. Sendo assim, trata-se, aqui, portanto, opondo-se a tudo isso que se chama “Direito das Famílias”, de encantar e desencantar com a História expondo (em breves linhas) a genealogia do Direito de Família a luz do sol, retirando-o das brumas do passado, das sombras dos Tribunais, e dos meandros das ideologias, ou seja, mostrar o cativeiro onde a Família, graças ao recente “perfume dos sentimentos” (que preserva incólume os mais bárbaros afetos), esta sendo submetida às garras e às taras dos desejos e ambições jurisprudenciais de seus “bons e afetuosos sequestradores”...


QUASE TODOS, NA REVISTA JURÍDICA CONSULTEX, (em questão, mas não só), impensadamente e paradoxalmente com muito boa vontade, afirmam a mesma coisa, com raras exceções (com tolerância é possível identificar uma ou duas diferenças, mas talvez nos traia o enfoque), como se houvessem chegado a um quase unânime acordo pré e pós sobre o significado do sequestro quanto ao resgate a ser exigido e como ser entregue, as previsões intuitivas do caminho das investigações (saber o que poderia levar ao crime perfeito ou à impunidade), portanto, haviam ensaiado também os depoimentos e a indicação dos álibis irrefutáveis por suas distinções (de juristas doutrinadores) etc. Tudo devidamente planejado. No entanto, nunca é demais uma camuflagem, uma maquiagem, uma máscara ninja, uma plástica estética, e se possível uma pequena mutação conceitual faz-se necessária e urgente por meios políticos populistas, daí a utilidade de Lula e do PT. É a melhor forma de tirar um coelho da cartola, ou uma carta do bolso do colete, de girar favoravelmente “a roda da fortuna”, de provocar o xeque-mate num lance de astúcia... Em poucas palavras: de participar com sucesso do jogo do poder e do seduzir... É assim que funciona! Foucault, portanto, tinha razão quando observou que toda formação de poder (e o que se forma não é uma atualizada formação de poder contra a família?) tem necessidade de um saber do qual, no entanto, não depende, mas que ele próprio, o poder, não teria eficácia sem ele...


NESTE SENTIDO, POR EXEMPLO, A NOTÍCIA chama à atenção: por iniciativa da agência NBS -- (Nomenclatura Brasileira de Serviços, agência de publicidade recentemente adquirida pela britânica Dentsu Aegis) -- com o Grande Dicionário Houaiss foi proposto uma atualização do significado de família . Na ação, dizem, a população seria convidada a enviar a sua definição pessoal da palavra. A campanha denominava-se #todasasfamilias, e tinha (e tem ainda) a adesão e parceria, lógico, (o que, evidentemente, não constitui nenhum problema) da CEDS-RJ (Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual) e o apoio da Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas etc., e, contava com um site para qualquer pessoa enviar a sua definição pessoal de família... A ação era (e ainda é) uma forma de pressão popular contra o texto principal do Estatuto da Família, aprovado pela Comissão Especial da Câmara , que define família como a união entre homem e mulher por meio de casamento ou união estável, ou a comunidade formada por qualquer um dos pais junto com os filhos. Exclui as famílias LGBTIs e etc.? Necessariamente não, apenas não as explicitavam e as englobavam no título “união estável”? E tudo se tornava possível, logo, tudo era e é provável, por exemplo, um homem casar-se com outro homem, ou com uma vaca, a mulher com um touro, um jumento etc., tanto faz, está no seu direito de escolha objetal, de escolha de seu parceiro sexual, de realização de seus direitos subjetivos... Se os filhos destas uniões for algo como um Minotauro, sempre existirá um labirinto que o aprisione e esconda, e assim realiza-se o melhor dos mundos...


OU NÃO SERIAM AS UNIÕES ESTÁVEIS uniões estáveis, e daí o quiproquó? Não seria uma união estável a que se realiza exclusivamente segundo os meus desejos? Então, como estabilizá-las? Eis na verdade a função que se delega indevidamente ao Direito de Família, pois que o submete aos famigerados Diretitos subjetivos. A declaração “eu sou o que sou”, atualmente soa absurda, é absurda, pois se trata de ser, justamente, algo que não se é... Mas, inegavelmente, trata-se de problemas de Direito Civil, não de Direito Penal. Se alguém diz “sou um homem no corpo de uma mulher” ou “sou uma mulher no corpo de um homem”, o problema não é o homossexualismo, o problema é outro, e que não é da ordem sexual... Tais declarações nos fazem sorrir e imaginar Narciso olhando-se em espelhos deformantes, ocupando-se em seus teatrinhos catóptricos... Ora, o que precisamos é de um fornecimento garantido de comida e de água, suficiente para manter mais de 250 milhões de pessoas bem alimentadas e hidratadas, por que então preocupar-se com a orientação sexual de alguém? Mas, paradoxalmente, não é por outra razão que a “proposta” de redefinição de Família tem como absurda justificativa que:

"O mundo é diverso, abrangente e dinâmico. A atual definição de ‘família’ é reducionista e anacrônica. O que desejamos é atualizar esta definição e contribuir para a reflexão sobre quais são os verdadeiros laços que unem as pessoas em forma de família", diz André Lima, sócio e VP de criação da NBS.

Que coisa mais estranha! Porque a “família”, (que na verdade não é patriarcal), seria “reducionista e anacrônica” não é difícil imaginar -- (imaginar é dar luz ao que não existe segundo Kant) -- Mas que “laços verdadeiros” seriam estes sobre os quais teríamos que refletir? Estes “laços verdadeiros” não existiam na “família patriarcal”? Ou melhor, estes laços verdadeiros, verdadeiramente sentidos, não derivam (negativa ou positivamente) de uma fantasmagórica “Família patriarcal”? Eis o busílis da questão! Que não exclui ainda: A família é “reducionista e anacrônica” em quê, onde, quando, como, por quê? O que é a vida íntima familiar além de um grande conflito amoroso?... O Fato é que nada dizem de verdade a respeito destas qualificações ou desqualificações que atribuem a uma crítica da Família. Mas a metodologia é: dão-lhe as qualificações e desqualificações desejadas, ou seja, um conteúdo estranho ou adicional de propriedades negativas ou artificialmente positivas e, a seguir, a problematizam-na (a família) em função do que lhe emprestam: constroem-se, assim, plasticamente, no Direito de Família, o conteúdo ideológico de uma “luta de classes” (sic!) e o falsificam em nome de um Direito das Famílias... É incompreensível?


MESMO PORQUE, EIS UMA BOA e elucidativa metáfora: “perceber”, “ver”, “imaginar” a semente autodestruir-se, brotar e transformar-se numa árvore frondosa, com muitas flores e depois muitos frutos, multiplicar-se, não é só desconhecer a potencia imanente e ontológica na fenomenologia da semente, como também não significa compreender as transformações que se processaram no interior e no “exterior” da semente: a árvore geminar, crescer e florir; a cor e beleza da flor ou o gosto do fruto... Além disso, a semente pode não brotar, ou seja, ser estéril, a muda não vingar, a árvore ser cortada antes de frutificar etc. À aleatoriedade é a grande inventora das colheitas... Como ouvi certa vez: “Esta mangueira esta carregada de mangas apenas porque por sorte não foi cortada”. Contudo, até que advenha o entendimento do processo biológico e histórico estabelecido pela natureza, não há crítica epistemológica capaz de estabelecer prudência e orientação e assim, por analogia, a ideologia de um Direito das Famílias, como as ervas daninhas, nasce no solo da Ciência do Direito... E é justamente assim, da negação do entendimento do que é a Família contemporânea, que começa nas páginas da revista, um verdadeiro festival de besteira:

“A partir da Carta Política de 1988, foi sendo desconstruída a ideologia da família patriarcal, edificada em uma família monogâmica, parental, patriarcal, heterossexual e patrimonial, que reinou absoluta na sociedade brasileira, asfixiando o livre trânsito do afeto ao dar prevalência e exclusividade aos vínculos patrimoniais do casamento...”.

Este é o primeiro ponto do artigo de Madaleno. Data vênia, nada mais estúpido pode ser dito! É aí, em proposições como esta, que encontro motivos mais que suficientes para hesitar (e tenho hesitado) ou não participar (e não tenho participado) de qualquer polêmica teórica ou debate público com estes pretensos “doutores”, combater a ignorância não é tarefa fácil, e, além disso, como Nietsche, “meu destino não é caçar moscas”... Dizer o que diante da aceitação geral sem análise crítica dos conceitos e suas mutações? O que interessa aos juristas é o poder, não a verdade, o privilégio e o conforto dos cargos, não o Direito... Como consequência, tenho publicado pouco, e me recusado a participar de eventos jurídicos e escondendo-me até das salas de aulas, já que formalmente aposentado. Mesmo porque, ousar pensar seriamente e aprofundar-se na problemática, ousar inovar-se nas questões epistemológicas, ontológicas, fenomenológicas, genealógicas, metodológicas, hermenêuticas, ou, possuir qualificações distintas, não reconhecidas pelos artificiais salões intelectuais dos bacharéis, mestres e doutores da academia jurídica e dos senhores do corporativismo fascista, é encontrar os auditórios vazios e acumular contra si o desinteresse teórico e desagradar alunos... Este picadeiro circense não destaca ninguém, é um verdadeiro nascer para ser um cadáver no fundo de uma sepultura abandonada até pela família, depois de, em vida, gozar de uma notoriedade artificial e passageira! O Mundo Jurídico é um horror!


O PONTO DE PARTIDA DOS TRABALHOS é o que interessa, e, invariavelmente, é impreciso, falso, errôneo, e funciona como uma gazua, capaz de abrir todas as portas, ou uma armadilha como o anzol que pega indiscriminadamente quem a isca atraiu e seduziu, ou um manto de Penélope, que se tece de dia e destece a noite, ou um argumento que contemple as novas tecnologias ideológicas do saber-poder (a “filosofia estética” da moda), e, a base da Carta Política (da noite para o dia tornada principiológica apesar de assistemática e incoerente) consegue estabelecer um “abra-te Sézamo” jurídico, em especial a partir de 1988, que faz jus a uma filiação ideológica à matriz discursiva do ultraliberalismo em nome da “liberté, égalité, fraternité ” agora slogans hiperbólico e desvairado, que impõe o predomínio de um anti-intelectualismo filosófico eivado de relativismo que Kikunaga apresenta-nos com a marca de um “Neopositivismo Jurídico ou Escola da Livre Pesquisa ... Chega a ser risível, se houvesse humor! Mas, inegavelmente, é cômico, por ser sem graça... Em outras palavras, o irracionalismo, a superficialidade e a leviandade predominam na tradução (ou interpretação) de grandes palavras conceitos (“tenho medo das grandes palavras que nos fazem sofrer”, diria James Joyce), atualmente eufemisticamente denominadas princípios ... E tudo se reduz a ser uma polêmica ou um debate livre, e por natureza radicalmente anarquista, por necessidade, ou seja, em mutação interminável, o pensamento em Direito ainda é nômade, não chegou sequer a ser agrícola e já reivindica o estatuto de pós-industrial e se revela feudal... É a própria realização do “Samba do Crioulo doído ” em pessoa jurídica. E, sendo assim, o conceito central da moda é o de alteridade. -- Um conceito extremamente moldável, diga-se de passagem; o que em si não mora uma alteridade?...


ALTERIDADE PODE SER ACEITAÇÃO do outro em sua diferença (concreta), ou do outro em sua igualdade (abstrata), sem a devida, necessária e universal compreensão de que a Igualdade político-jurídica é ideológica e consiste em considerar desigualmente coisas desiguais. Em outras palavras, a igualdade jurídica e construída de diferenças paralaxicas... Igualdade é o cinismo e a ambiguidade inafastável de qualquer decisão em sociedades estruturadas em distinções (Bourdieu) -- O que, em ultima instância, pode redundar em que nada seja mais opressivo! “I’m not Clay” (Eu não sou argila), diz e canta a brilhante e linda garotinha de 12 anos, Grace Vanderwaal! Sim, “I’m not Clay ”, nem para ser diferente, nem para ser igual... Por quê? “I don’t know my name” (Eu não sei meu nome), canta ainda a genial e talentosa Grace Vanderwal. Com efeito, quem é o outro? Não há mais como saber, a não ser negativamente por dissimulação ou em simulacro! “Gossip Girl ” (Garota de plástico) protesta à graciosa e crítica Grace Vanderwaal... Mas com certeza ainda não somos argila, corremos o risco de não sabermos o nosso nome, e somos garotos e garotas de plásticos... Ora, a Carta Política de 1988 não desconstruiu nada, muito pelo contrário, é ela mesma que carece de “desconstrução”, por todas as suas más concepções, por ter usado material de terceira, por todos os erros de projeto, e por “improbidades administrativas” na realização...


ORA DESCONSTRUÇÃO É UM CONCEITO que surgiu pela primeira vez, (é de conhecimento público), na introdução à tradução de 1962 da “Origem da Geometria”, de Edmund Husserl --. E no caso “Direito de Família vs. Afetividade no Século XXI , que significa desconstruir? Simplesmente, por ignorância histórica e linguagem Au-Au (Afaste-se), Au-Au o mundo do Direito das Famílias é nosso. Nosso quem? Do movimento LBGTIs? Então, no caso em tela, Au-Au papai e Au-Au mamãe e Au-Au matrimônio, Au-Au fidelidade, Au-Au família heterossexual etc. Na tradução juramentada de Madaleno: “O real valor jurídico da filiação está na verdade afetiva e jamais sustentada na ascendência genética...”, portanto, desconstruir a ascendência genética, em última instância, é a base biológica fundamental, imanente e genealógica do ser humano, enquanto ser animal, e ontológica, pois que enquanto ser cultural afasta qualquer complexo de bastardia por ser ultraliberal?... Então, o que é a família?... Uma ascendência afetiva? Que seria isso? Uma “verdade afetiva”? Qual seria? O que é o afeto ou a afetividade para receber o estatuto de “verdade”? Um afeto, então, isto é um Pai? Isto é uma Mãe? Mas como isto se dá ou seria possível?... Pelo que sei e pelo que me ocorre, graças a Steven Pinker, é que a mente humana não foi projetada para criar beleza, para descobrir a verdade, para amar e trabalhar, para inventar um Pai, para inventar uma Mãe, para inventar o incesto, para harmonizar-se com outros seres humanos e com a natureza, para evitar a pedofilia, para impedir o estupro etc., mas, sim, diz Pinker: “O objetivo supremo que a mente foi projetada para atingir é a maximização do número de cópias dos genes que a criaram”... (PINKER, 1998, p.54). Não seria o desejo desta maximização que cria o afeto? Este desejo é cognitivo? Então, o que seria a “verdade afetiva”? Algo que encontramos na pedra e não no gato? Ou no gato e não na pedra? Tal qual o cientista cognitivos, Zenon Pylyshyn, observou com muito bom humor, como nos diz Pinker, que “as pedras são mais inteligentes do que os gatos, pois elas têm a sensatez de ir embora quando a chutamos” (in PINKER, 1988, p.72)... Outras questões: pelo que sei nenhum debate Histórico sobre a Família precedeu a Constituinte, e pelo que sei a família que a Constituição de 1988 consagra, mutatis mutandis, é a família burguesa consagrada pela Revolução Francesa, de 1798. A família burguesa era e é patriarcal? E por outro lado, existe a família proletária? Ela não é (ou não seria) também patriarcal? Por que não? O patriarca é real, imaginário ou simbólico? O que é o Patriarca? Trata-se de desconstruir que Família? O que significa (e não o que pode ou poderia significar) ser Pai? E ser Mãe? Podemos falar de Pai escravo, de Pai feudal, de Pai burguês ou de Pai proletário? E de Mãe escrava, Mãe feudal, Mãe burguesa ou Mãe proletária? Então, que questões éticas e políticas motivam a desconstrução? Por outro lado, o que é a monogamia? Que fundamentos históricos a sustentam? E a heterossexualidade? Que significa o conceito de “patriarcal”? E o de “patrimonial”? O que seria uma “ideologia parental”?...


TODOS ESTES CONCEITOS FORAM desenvolvidos no interior da Família de forma autônoma? Ou foi um desenvolvimento heterônimo necessário e universal na luta pela sobrevivência de si mesma e da preservação de seus membros? Até na linguagem, portanto, a verdade da comunicação se estabelece, conforme uma observação de Foucault, “não por uma questão de sentido, mas por uma correlação de forças”. Em outras palavras, a história é sempre belicosa e a linguagem o reflexo de sua violência criadora da realidade, tal quais os “marxistas” dizem que “a violência é a parteira da história”, por incapacidade de imaginar a existência das clínicas ginecológicas da História que atende desde o período pré-natal e que lhe propicia no fim da gravidez até partos sem dor, portanto, que questões antiéticas e pós-políticas nutrem-se da violência existente no “livre trânsito do afeto” ou dos afetos? O que a “ideologia da família patriarcal” asfixiava ou asfixia? De que nos fala Madaleno?... Observe-se que não se trata de resumir a solução da problemática da ignorância jurídica a uma simples busca de compreensão de conceitos, pois que, avulta em minhas considerações a exortação antiessencialista de Karl Popper em sua “Autobiografia intelectual”, sobre “a via mais segura para a perdição intelectual: abandonar problemas reais em favor de problemas verbais” (POPPER, 1977, p. 25). Ora, o que seria a “desconstrução jurídica” advogada por Rolf Madaleno, se o próprio filósofo da desconstrução, Jacques Derrida, segundo Rafael Haddock-Lobo, é bem enfático ao observar que:

“A tarefa ético-política da desconstrução, então, seria a de desmontar certos discursos filosóficos, a fim de mostrar ou brancos, os espaços, ou lapsos, ou seja, uma infinitude de outros discursos que se escondem por detrás da pretensa unidade de um texto, acreditando que há uma necessidade de se olhar tanto o não-dito como aquilo que está expressamente dito em um texto, pois aquilo que está excluído, recalcado, reprimido, violentado em um texto constitui uma peça tão valiosa à análise filosófica como aquilo que se expressa positivamente”.

A questão, portanto, é saber se a desconstrução enxergada por Madaleno et alii, não está nos levando a um impensado e monstruoso engarrafamentos de afetos que impedirá, justamente, o seu livre trânsito? O significado de “livre trânsito” não estaria semanticamente negado e se tornou pano de fundo eufemístico para mais-repressão (Marcuse)?...


TRATA-SE DE CONSIDERAR QUE O engarrafamento dos afetos e seus acidentes verificam-se em todas as explosões sociais involuntárias de violência, desde uma simples greve de uma categoria de trabalhadores, a uma manifestação política a princípio pacífica, em qualquer “economia do desejo” (Sade), do “dispêndio” (Bataille), da “sociedade do espetáculo” (Dubord), e, mais ainda da “sociedade de consumo” (Baudrilard), e da “sociedade informática” (Schaff) etc. quando, situados em sua imanência, procurar-se em oposição dar resposta as suas contradições... É claro, estamos falando da sociedade capitalista contemporânea, de suas redes e seus rizomas etc., e de toda a sua tecnologia ideológica de marketing e de merchandising que em seu território global mobiliza para paralisar... E também que, em seu conjunto, este é o complexo busílis da questão do afeto no “Direito das Famílias” (Sic!). Ora, no mais, um Homem pode deixar de ser patriarcal? E uma Mulher de ser matriarcal? Contemporaneamente, o que é ser Patriarcal? O que é ser Matriarcal? Estas questões, por ser a problemática de “resíduos” (Pareto) históricos resilientes não merecem a atenção dos Juristas? Por que tanto esforço para “tapar o sol com uma peneira” diante da “força da tradição” (Mayer)? Não se trata, portanto, de dar um passo para frente, mas sim apenas dois para trás? Estranho, muito estranho!...


A LÓGICA DO QUANTO PIOR MELHOR. O segundo ponto do primeiro parágrafo do texto de Rolf Madaleno é ainda muito pior. Diz ele:

“A família do passado não tinha preocupação alguma com o afeto e a felicidade das pessoas que formavam seu núcleo de convivência, pois seus interesses de ordem econômica estavam centrados unicamente no modelo de um pai e uma mãe e filhos financeiramente dependentes”...

Em nome de que História, de que Direito tamanha bobagem pode ser dita? Pudor minha gente, pudor!... Na Revista Jurídica Consulex, a partir do artigo de Madaleno (pp.24-27), até o de Ribas Marinho (PP. 44-45), passando por todos os outros (com duas boas exceções criticas: Raupp Rios e Gaspar Rodrigues), as proposições constantes para um “Direito das Famílias”, nos obrigaria a um trabalho gigantesco de esclarecimentos, que não nos cabe aqui serem desenvolvido senão através de um debate sério e não ideológico on line por seu grande alcance e imprevisibilidade teórica. Desde que tenhamos rigor, coerência, tempo e paciência... Em primeiro lugar, o que foi (porque o que modernamente é não é) a Família Patriarcal ? Por que esta questão se torna necessária? Porque tudo espanta! Indigna! Desanima! É muita coisa o que estes “inovadores” da doutrina do Direito das Famílias fazem questão “desconhecer” e “ignorar” e por quê? Não seria este “desconhecimento” e esta “ignorância” que se transformam em estratégias de suas pretensas desconstruções ideológicas? O que desejam (se se trata de desejo) esconder? Impõe-se, então, um breve excurso bem revelador...


EXCURSO SOBRE A FAMÍLIA PATRIARCAL. A denominada Família Patriarcal nasceu em tempos selvagens, brutais, cruéis... Em duas palavras, tempos incivilizados, (se deixou de sê-los). Sim, profundamente incivilizados. Obviamente atendendo aos acontecimentos biológicos universais e às exigências de sobrevivência, (Blaudel), e nasce tardiamente a de naturalis necessitas (São Tomás), e o que era um assentamento caótico de pessoas ligadas aos laços de sangue e amizade formaram os grupos de convivência que se tornaram clãs... O fato político que dominava à época era que para os “fortes”, ou seja, os de mais músculos, de mais força bruta, os mais bem preparados, os bons guerreiros (conhecidos pós sua coragem e crueldade) etc., -- os de evidente superioridade física, e os “poderosos”, quer dizer, os mais cruéis, os mais inescrupulosos, os mais assassinos, os mais belicosos etc., -- todos igualmente implacáveis, impunham a sua vontade e a lei. Evidente que, para estes, viver neste mundo era viver no “paraíso”, pois que a violência, a brutalidade e a crueldade faziam parte dos “prazeres da vida” (se algum dia deixou de fazer). E tal realidade, que perdurou, segundo o historiador Georges Duby, até os primórdios do crescimento europeus, nos séculos VII-VIII dC, é o que se evidencia hoje na “violência urbana”, e é a tendência (quem sabe por manifestação de um “inconsciente coletivo” junguiano) do “eterno retorno” da história que se constitui em “cultura” por força e graças de seus precedentes. Grupos de jovens guerreiros, (fazia parte da aprendizagem), passavam a vida na rapinagem, destruindo igrejas, atacando sítios isolados, incendiando casas, celeiros, colheitas, roubando o gado, atacando peregrinos, estuprando mulheres, matando ou escravizando varões, oprimindo viúvas e órfãos, apropriando-se dos bens etc. Sentiam prazer em matar, destruir e mutilar inocentes etc.. “Seus autores não eram bandidos”, observa Duby, e esclarece: “O prazer de matar e torturar eram grande e socialmente permitidos” (DUBY, 1978). O que significa que, até certo ponto, a própria estrutura social impelia seus membros nessa direção, fazendo com que parecesse necessário e vantajoso comportar-se desta maneira. Era uma cultura de guerra e agressão, era como que um treinamento, uma cerimônia de chegada a “maioridade”... Se estes jovens fossem combatidos, feridos ou abatidos, vinha um grupo bem maior de guerreiros profissionais, extremamente sanguinários em busca de notícia e vingança. Eram as atitudes mentais de um mundo de guerra e agressão, e foi em reação a elas que nasceu a Família Patriarcal ...


A IMPORTÂNCIA DAS ATITUDES MENTAIS. E sabemos, observa com acuidade George Duby, que “as atitudes mentais são tão decisivas como os fatores de produção ou como de exercício do poder nos mais diversos níveis sociais” (DUBY, 1978). Então, em resposta, quais eram (ou poderiam ser) as atitudes mentais de todos os grupos de convivência (depois chamados de familiar) diante da brutalidade, das agressões e das injustiças do Mundo, e não só das estrangeiras? Com efeito, diante das atitudes mentais exigidas para a autodefesa, a sobrevivência, a proteção dos bens e da vida de todos os membros do grupo familiar tem a origem, a constituição e a organização, naqueles tempos incivilizados, da atualmente odiada Família Patriarcal... Qual foi o papel histórico da Família Patriarcal? Ora, uma boa orientação para um bom entendimento dos elos políticos que a dominava, de seu papel, de sua função, está na significação da própria palavra Família. Etimologicamente, há quem afirme que Família vem do latim Fames (“fome”), e quem afirme que deriva do termo Famulus (“servente”). Segundo o “Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa”, de José Pedro Machado, a palavra Família entrou na nossa língua no século XVI, por via culta, através do latim Famulus , que significa “servo” ou “escravo”, e, que, portanto, família patriarcal significava “o conjunto dos escravos da casa, todas as pessoas ligadas a qualquer grande personalidade (denominada Pater , Pai), logo, a casa, a família”. O Pai, enquanto espírito motor era necessário, e necessariamente um servo de seu Senhor, o dono do feudo. Pater era o grande guerreiro, o comandante militar, um ser com os poderes místicos dos ancestrais. Ele era o herdeiro do poder, o abençoado pelos deuses, o pastor dos cultos domésticos, o guerreiro e o trabalhador leal ao seu protetor. E tornar-se-ia a lei. Sim, o pastor dita a Lei que recebe de “espíritos ancestrais”. Tinha por tarefa e missão não apenas proteger seu rebanho das intempéries e defendê-lo contra os animais e homens ferozes, cuidar continuamente de sua saúde, de sua sobrevivência, mas antes de tudo prover sua alimentação, cuidar do culto familiar e defender o lar e os aliados... O Patriarcado, portanto, seria uma denominação que indicaria que a invenção da Família deu-se em um contexto que exigia, necessariamente, “o poder”, “a posse”, “a organização”, e a “obediência” por concessão de um Senhor e Protetor, tanto na sociedade Grega quanto na Romana, malgrado as diferenças etc. A questão da posse e a questão da obediência estão, portanto, intrinsecamente vinculadas à origem de constituição de uma “entidade familiar”, mas não a do Poder e da Organização, que vinha do Senhor feudal. Assim, de um lado, a posse e a obediência, e de outro lado, o poder e a organização, eis o duplo que constituiu a consolidação dos interesses e da dinâmica história. Com efeito, a posse e a obediência constituirão em essência para a concessão de ideia e realização da propriedade privada, (e da vida civil), e o poder e organização a ideia e realização do Estado (e da vida pública). Assim, o Senhor tornando-se Soberano, desenvolve-se a ideia da res pública, e dela a ideia de res privada, pois que o afeto é, por natureza, passional, e tem sua origem no deslocamento (catexe) das energias psíquicas ligadas aos significantes do significante da posse e da obediência, (e apenas por isso apresenta-se como passional e independente da Coisa, ou seja, afasta-se do significante), portanto, quem fala em asfixia do “livre trânsito do afeto ao dar prevalência e exclusividade aos vínculos patrimoniais” (Madaleno), não sabe o que está falando, pois é justamente o que lhe dá oxigênio e fôlego, e na verdade está defendendo apenas uma formação de poder, que só pode e só deve atuar sobre a família líquida, e que impõe a tarefa de desconstrução da família historicamente consistente da propriedade privada como meio e instrumento de produção. O que o senhor Madaleno não sabe, ou está ignorando, (um verdadeiro luxo de Príncipe), é que, segundo os historiadores, a afetividade desenvolve-se apenas a partir do século XVIII. Afinal, que história está em curso no denominado Direito das Famílias ?... Mas não importa, Foucault tem razão quando observou que toda formação de poder tem necessidade de um saber do qual, no entanto, não depende, mas que ele próprio, o poder, não teria eficácia sem ele...


A DIALÉTICA IGNORADA DA POSSE E DA OBEDIÊNCIA. O que importa é que a gênese da noção de posse e de obediência traduz-se ainda na invenção do poder a que se dobra (Deleuze), portanto, da noção dialética de posse e de obediência a questão do mando emerge, e, nele, a mulher deve obediência ao marido como seu amo e senhor fosse, e os filhos pertencem a seus pais, a quem deviam a vida... Mas que mulher? Que filhos? O casamento, a monogamia, a parentalidade etc., inclusive, os vínculos patrimoniais, diria quem era a mulher, a criança, o escravo etc., que estavam incluídos nas articulações dialéticas da ideia do senhor e do escravo, na ideia de posse e de obediência em seu inteiro teor enquanto significante de significantes? Bobagens! Eram apenas questões objetivas, com respostas naturais na ideia das naturalis necessitas ou necessária vitae... A esta ascendência de um homem, -- a genitor, líder, guerreiro, trabalhador, chefe do culto ancestral, servo de Deus e pastor dos homens, -- a quem cabe a responsabilidade de reger e zelar pela vida de casa, realizar o culto e conduzir a guerra, deu-se o nome de Patriarca. Não foi ao patriarca, mas ao senhor feudal, que coube reinar e governar, ou seja, organizar, corrigir, dirigir, calcular, guiar, simular, dissimular, ou seja, grande parte do trabalho civilizador... Mas foi graças ao trabalho, a ação determinada e localizada do Patriarca, e às vezes ingrata (por exigir dureza e implacabilidade), em todos os grupos comunitários, a barbárie foi gradativamente domada pela lei do Pai, a religião da família... Mas a Família Patriarcal não sobreviveu, durou pouco por não atender (à medida que os números dos combatentes cresciam assintoticamente) as necessidades organizacionais de uma guerra em larga escala que garantisse maiores possibilidades de sobrevivência de seus membros e a preservação de sua propriedade, uniu-se a uma “cidade”, a uma “província unificada”, a um “império” etc. E assim, apesar da grandeza inestimável de sua presença e de seu papel histórico na gênese do Processo Civilizatório , deixou de existir, tão ingloriamente quanto os dinossauros... O desenvolvimento histórico do Mundo a levou a unir-se a uma “multidão” e ser absorvida, e perder-se. Algo maior se manifestava: “a cidade ”, “o Reino ”. Mesmo porque, na pena de Michel Senellart, em “As Artes de Governar”,

“o conjunto das necessária vitae a que a multidão aspira só pode ser obtido pela mais ampla diversificação das competências e a maior união de forças. Somente o espaço fechado da cidade ou do reino permite realizar esse equilíbrio entre divisão funcional e solidariedade orgânica” (SENELLART, 2006, p.181).

Com efeito, quem melhor expressou o processo evolutivo que a dispensou da história, de forma concisa e direta, sem dúvida, foi São Tomas, ao explicar o dimensionamento das mudanças radicais que se operaram a partir do século XII, diz: “o laço social da multidão [será] tanto mais perfeito quanto melhor ela prover por si mesma, as necessidades da vida” (Apud, SENELLART, 2006, p.180). Por conseguinte, diz são Tomás:

“uma única família, numa única casa, proverá bem certas necessidades vitais, como, por exemplo, as que se relacionam aos atos naturais da nutrição, da geração e das outras funções desse gênero; num único burgo, prover-se-á o que diz respeito a uma corporação de ofício; mas numa cidade, que é a comunidade perfeita, prover-se-ão todas as coisas necessárias à vida; e mais ainda numa província, unificada por causa da necessidade do combate em comum e do socorro natural contra os inimigos”. (apud, SENELLART, 2006, p.180).

Onde os doutrinadores de um “Direito das Famílias” imaginam existir a força do patriarcado que chega ao século XXI?


OS FATORES DE PRODUÇÃO E O EXERCÍCIO DO PODER. No mais, é preciso (e não é difícil) entender que “os fatores de produção e o exercício do poder são determinantes da estrutura emocional como um todo” (DUBY, 1978). Evidentemente que (com o estabelecimento dos Lombardos no Norte da Itália e a descida dos Bascos até a Aquitânia, nos séculos VII-VIII), a era das grandes migrações dos povos chegou ao fim, e com ela, a cultura que trazia embutida em seus movimentos. Mas, como herança da incivilização a cultura nascida das grandes migrações populacionais era uma cultura ainda de guerra e agressão, não era uma cultura da Família Patriarcal . Era um Mundo caótico e grande, não o Mundo pequeno e organizado do patriarcado... Era um Mundo em que os mais fortes impunham sua força e vontade contra o mais fraco e o dominava, não o mundo protetor do patriarca... Viver era um perigo constante, principalmente para a família. E assim, ainda no século XVII, como testemunha Thomás Hobbes, “o homem era o lobo do homem” -- “homo homini lúpus ”--. Despojar e oferecer eram as duas ações complementares que fora da família (mas a condicionando), dominavam em larga escala a troca de bens, a feitura das leis, o ordenamento jurídico (tem sido atualmente diferente?)... Mas graça a família patriarcal, havia uma intensa circulação de ofertas, e ofertas de retribuição, de dádivas cerimoniais e santificadas, que percorriam toda a estrutura da rede social, e mantinha a barbárie sob controle (mesmo que às vezes precariamente). Mas não a extinguiu, não a eliminou. A barbárie apenas ficou como observa Norbert Elias, em “O Processo Civilizatório”:

“confinada e domada por inumeráveis regras e proibições que se transformam em autolimitações. Foi tão transformada “refinada”, “civilizada”, como todas as outras formas de prazer, e sua violência imediata e descontrolada aparecem apenas em sonhos ou em explosões isoladas que explicamos como patológicas” (ELIAS, 1994).

E mais adiante, observa e explica Elias com agudeza:

“A liberação das emoções em batalha durante a Idade Média não era, talvez, tão desinibida como no período anterior das Grandes Migrações. Mas era bastante fraca e desinibida, em comparação com a medida dos tempos modernos. Neste último, a crueldade e a alegria com a destruição e o tormento de outrem, tal como prova a superioridade física, foram colocados sob controle social cada vez mais forte, amparado na organização estatal. Todas essas formas de prazer, limitadas por ameaças de desagravo, gradualmente vieram a se expressar apenas indiretamente, em uma forma “refinada”” (ELIAS, 1994).

Portanto, dizer, como disse Rolf Madaleno, que a “família do passado não tinha preocupação alguma com o afeto e a felicidade das pessoas que formavam seu núcleo de convivência, pois seus interesses de ordem econômica estavam centrados unicamente no modelo de um pai e uma mãe e filhos financeiramente dependentes”, é pura e simples ignorância histórica, desconhecimento absoluto da genealogia da afetividade, uma confusão epistemológica tão grande que é difícil acreditar que um advogado, especialista em Direito de Família possa advogar tais besteiras... E o que é mais preocupante, ele não está sozinho, e pelo que vejo formam um novo exército de bárbaros que visualizam o poder... É preocupante! Não gostam do que eu digo? Paciência! É a verdade! Que culpa eu tenho se a verdade, às vezes, como observou alguém, “pode ser triste”...


Autor

  • Walter Aguiar Valadão

    Professor universitário. Bacharel em História (UFES). Pós-Graduado "lato sensu" em Direito Público (UFES). Mestre em Direito Internacional pela UDE (Montevidéu, Uruguai). Editor dos Cadernos de Direito Processual do PPGD/UFES.

    Textos publicados pela autora


Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pela autora. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi.