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Breves apontamentos sobre o livro Beta de De anima de Aristóteles

Breves apontamentos sobre o livro Beta de De anima de Aristóteles

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O texto elenca breves apontamentos sobre o livro Beta de De anima de Aristóteles.

Resumo

O texto elenca breves apontamentos sobre o livro Beta de De anima de Aristóteles. Traz considerações iniciais do conceito de substância, de alma, de faculdade nutritiva, de faculdade sensoperceptiva. Quanto a esta última discorre sobre os sensíveis próprios: visão, audição, olfato, paladar, tangível. Conclui com uma reflexão  sobre a alteração que os sentidos ocasionam.

A obra

Na obra De anima, o autor se debruça no estudo da psykhê, que na falta de tradução melhor, define-se por alma. Aristóteles busca considerar e conhecer a natureza e substância da alma. E também saber se ela é divisível em partes ou não. Se toda alma é da mesma forma. Se há uma definição de alma  ou se há diversas definições, uma para cada ser vivo. Ele procura definir o que é alma e qual seria seu enunciado mais geral. De uma forma didática esses aspectos  são as  três ordens de problema relacionado a alma. Primeiro quanto ao gênero,  com o questionamento a qual gênero pertence a alma. Segundo, quanto a unidade, se é possível dividi-la em partes ou se toda e qualquer alma é da mesma forma. E terceiro , qual a definição de alma, se há uma ou várias.

 

Substância 

Inicialmente Aristóteles faz abordagem da substância que é um dos gêneros dos seres.  Há primeiro a substância no sentido de matéria, que é algo indeterminado. Também há a substância no sentido de figura e forma, em que se diz que é algo determinado. E, ainda substância como composto das duas anteriores.

A substância como matéria é potência. É algo que pode vir a se desenvolver. Estar em potência significa que a matéria  traz em si o princípio de ser movida ou faz modificada por si ou por um outro. Por exemplo, a prata  é matéria em potência. Pode ser transformada em uma joia e irá ser uma “joia de prata ”. Por ser a prata  um metal nobre, modifica um outro metal; mas se for colocada com um mais nobre do que ela, é modificada por ele.

No que se refere a substância enquanto forma, ela é atualidade, tanto como ciência quanto por inquirir. Ou seja, a atualidade como ciência é a capacidade, mas sem exercê-la. Atualidade como inquirir é ter o conhecimento e estar exercendo - o. Para melhor compreensão, pode-se citar que saber ler é uma atualidade enquanto ciência, ao passo que, estar lendo é uma atualidade enquanto inquirir.

 

Uma definição de alma

Na primeira definição que a obra elenca sobre alma, esclarece que ela  “não é corpo, pois o corpo não é um dos predicados do substrato, ele é o substrato e a matéria” ( 413a14). O entendimento dessa definição é melhor alcançado quando se conceitua inicialmente o que é  substrato, substância e matéria.

Em sua obra  “Metafísica”, Aristóteles define substrato como  aquilo do qual tudo se predica, mas que não é predicado de nada. Já a  substância é aquilo que predica o substrato, mas que não é predicada pelas outras coisas. É o suporte pelo qual a matéria se constitui em algo, seguindo uma forma, logo substância é atualidade. Já a  matéria é a  forma determinada, portanto é potência.

Assim, o corpo é substrato material do composto orgânico vivo e a alma é a substância formal. Como afirma Aristóteles “a substância é atualidade. Portanto, é de um corpo de tal tipo que a  alma é atualidade” (412a16) e como essa se diz de dois modos, como ciência e como inquirir. A alma é atualidade como ciência, pois seja no sono como na vigília possui o conhecimento, mas nem sempre está a exercê-lo. E Aristóteles conclui que a “alma é a primeira atualidade de um corpo natural que tem em potência vida”. (412a16)

A alma é substância segundo a determinação de ser o que é. Por exemplo, o machado só é machado na medida que é capaz de cortar. A alma é princípio determinante do ser do composto, sua substância seria o que é ser para o machado, e isto  seria sua alma.

 

Princípio do movimento e repouso

 A alma como princípio determinante do ser do composto faz da substância ser o que é para ser. Em outros termos, é a função de algo. O que faz do machado ser um machado é o princípio do movimento e repouso. Esse princípio se refere a uma das causas para definir aquilo que se é.  O repouso do machado é o corpo do machado e o movimento do machado é ele sendo usado para cortar. Para o machado ser o que é precisa ter a potência cortante. Do mesmo modo, pode-se considerar também que o olho é matéria para a visão. Como a função do olho é enxergar,  se não se pode enxergar com o olho, já não é mais olho, apesar de permanecer o nome de olho.  

 

Alma como princípio da vida

Aristóteles investiga a alma como causa de vida nos seres viventes. A alma é vida e se diz de muitas maneiras. Assim, se explica a  diversidade e totalidade das manifestações da vida que são o intelecto, percepção sensível, movimento local e repouso, e ainda o movimento segundo a nutrição, o decaimento e o crescimento.

As plantas, portanto, para Aristóteles possuem alma, pois vivem. Elas manifestam nutrição, crescimento e decaimento. Possuem uma alma vegetativa. Assim também  os animais,  vivem e possuem alma, pois dotados de nutrição e percepção.

O fato de um ser vivo alimentar-se, crescer e decrescer refere-se a aquilo que se chama vida no qual a nutrição é a capacidade mais básica entre os seres vivos.

Há uma  amplidão do movimento que descreve aquilo a que se chama a vida, no qual subsiste pelo menos uma dessas:  uma vida intelectual, uma vida relacionada  à percepção sensível , uma relacionada ao  movimento, e uma outra relacionada  a nutrição ( crescimento e decrescimento). A alma é princípio das capacidades nutritiva, perceptiva,  raciocinativa e de movimento e por elas é definida.

Aristóteles traz três espécies de alma. “E a alma é isto por meio de que primordialmente vivemos, percebemos e raciocinamos” (414a4).  A alma é o princípio da vida, princípio da percepção e o princípio do pensamento.

Alma nutritiva

Dentre as três espécies de almas, a que permite viver possui necessariamente a faculdade nutritiva. A faculdade nutritiva ou alma nutritiva é princípio vital. As plantas se nutrem, como também os animais. Como “a alma nutritiva subsiste também com as outras, sendo a primeira e a mais comum potência da alma, segundo a qual subsiste em todos o viver” (415a 22). A faculdade nutritiva é a capacidade de absorver o alimento.

É por meio da alma nutritiva que a vida é primeiramente atualizada nos seres vivos de acordo com a disposição potencial de viver. A vida se dá com a nutrição, crescimento e decaimento. Assim, é uma faculdade necessária para a caracterização do ser vivo, e por ser a primeira, pode se dar independente das demais.

Faculdade senso perceptiva

Para que a capacidade perceptiva exista é necessária a presença da nutritiva. Os animais todos possuem percepção, já as plantas verifica-se apenas  a faculdade nutritiva.

A senso percepção se manifesta primeiramente no  tato. E esse é tido por Aristóteles como o sentido mais necessário pois é através dele que é possível os outros quatro sentidos da faculdade senso perceptiva. É com o tato que se dá o aspecto primário da sensação.

Cabe esclarecer que as plantas são seres animados que possuem a faculdade nutritiva, mas por terem um corpo simples  não possuem a faculdade perceptiva. Nos animais há a presença não só da faculdade nutritiva como da faculdade senso perceptiva.

A percepção se diz enquanto potência e enquanto atividade. A percepção enquanto  potência  é a capacidade do sentido, enquanto atividade é o exercício do sentido. Peguemos um dos sentidos, a visão. Essa, por si só, enquanto potência,  é a capacidade de  ver, já o ato de ver é o exercício da visão. Ao fechar os olhos há apenas a capacidade de ver enquanto potência, mas ao abri-los há a percepção do mundo exterior pelos órgãos da vista.  Pode-se dizer que a visão é a acepção do sentido enquanto potencialidade e ver refere-se ao exercício dessa capacidade como atividade.

 

Sensíveis

Aristóteles enumera três espécies de sensíveis que permitem o exercício da capacidade senso perceptiva.  Os sensíveis próprios, os sensíveis comuns e os sensíveis por acidente.

Os sensíveis próprios são identificados em relação aos cinco sentidos: visão, audição, olfato, paladar e tato. E são aqueles que não podem ser percebidos por nenhum outro.  

Os sensíveis comuns são seis: número e a unidade, movimento e o repouso, a magnitude e a figura. Estes não são próprios a nenhum sentido, mas comum a todos.

Já os sensíveis por acidente não são enumeráveis. São percebidos na medida que definem uma característica associada ao que é percebido.  Se disser que  em um público  há uma pessoa com cabelo branco, essa pessoa é identificada pelo fato de que há alguém de cabelo  branco e essa pessoa é a indicada.

Os sensíveis próprios

Aristóteles faz uma relação dos sentidos com a forma, função, faculdade,  órgão e objeto. Os sentidos são constituídos para perceber os sensíveis. Cada órgão dos sentidos realiza sua função pelo órgão através de um intermediário.

 Assim, a visão tem como função ver, com os olhos, pelo transparente, o objeto cor. O ouvido tem a função de ouvir, com os ouvidos, pelo ar/ água, o objeto som.

O olfato tem a função de cheirar, com  o nariz, pelo ar/água,  o objeto odorífero. O gosto tem a função de degustar, com a boca, pelo úmido,  o objeto palatável. O tato tem a função de tocar, com o corpo, pelo corpo, o objeto tangível.

Visão

Para que o objeto da visão possa ser visto é necessário condições para que a cor possa mover o transparente. O que é visível é a cor  que somente é vista na luz. Aristóteles elabora a relação da faculdade com o objeto e essa relação é um visível. Toda cor é aquilo que pode mover o transparente em atualidade, sendo esta a natureza da cor.

Através do transparente é que permite o órgão do olho captar o objeto e  pode ser em potência ou em ato.   Aristóteles chama de transparente o que é visível, e  não por si, mas pela luz que torna visível o que é visível. Pode-se afirmar que  o transparente é invisível, mas promove a captação dos objeto quando está em ato, quando é atualizado pela luz. E a luz  permite ver a cor. Quando o transparente não está em ato, ele está em potência e o que caracteriza o transparente em potência é a treva. Havendo trevas não há cor.

Assim, se algo é azul, só é azul pois os olhos estão abertos em um ambiente com luz que permite ver a cor. A cor vista é a cor que foi inicialmente convencionada, mas que não determina que é vista da mesma forma por todo indivíduo.  Para que um pincel tenha cor azul, é preciso que que o transparente seja colocado na luz. Isso porque o sentido só pode operar quando o objeto em ato atualiza o transparente e ele próprio também é atualizado pela luz.

Audição

O som é o sensível próprio da audição.  Há duas espécies de som, o que ouve e o que não se ouve. Como a visão,  o som também é uma certa atividade ou uma certa potência. Surge em atividade quando dois objetos  capazes de soar (como o bronze e tudo e que for sólido e líquido ) entram em choque. Esse choque deve ter um efeito sobre o ar produzindo o  som. Há certas coisas não produzem som com a  lã e a esponja. O som está em ato quando é capaz de soar, mas não estão a soar.

É o movimento do ar, capturado primeiro no ambiente  e depois no interior do meu ouvido que vai provocar a audição. É preciso que ocorra o golpe entre os sólidos, um contra outro através do ar que é o intermediário. O ar é o meio pelo qual o som é melhor percebido. O som também pode ser ouvido na água, mas não é tão audível quanto no ar, pois no ar o som é mais facilmente dispersado.

Aristóteles afirma que é impossível que em uma só coisa ocorra o som, pois o que golpeia é diverso do que é golpeado. É necessário o choque entre as duas coisas aptas a soar.  Indagar como se daria o som da voz, quais seriam os choques para que ela ocorra. Aristóteles afirma que a voz é o golpe do ar respirado pela ação da alma  nas partes da traqueia.

Olfato

Aristóteles afirma que “O homem cheira parcamente, não percebendo nenhum dos odores a menos que seja prazeroso ou doloroso” (421a7).  O olfato é pouco apurado, e apesar da diversidades de cheiros que existem, só percebe o objeto sensível quando este tiver marcadamente cheio prazeroso ou doloroso. Quando percebe o odor geralmente relaciona a algo do tato.  Isso porque  a gustação é mais apurada, que é uma espécie de tato. Aristóteles conclui que “o olfato parece análogo à gustação e, similarmente, as espécies dos sabores são análogas às dos odores” (421 a 18).

A relação do olfato com o gosto ou tato pode ser  visualizada quando se imagina  um sommelier ou mesmo um apreciador de vinhos. O ato de cheirar o vinho permite relacionar e identificar o cheiro a gostos e objetos. Há vinhos com gosto “amadeirado”, com gosto de “baunilha”, de “frutas cítricas”, ou mesmo de “orquídeas”.  Há a relação do olfato com os outros sentidos, ora se relaciona com o tato ora se relaciona com o palato.

Em outros termos  Aristóteles afirma “ existem também os odores acre, seco, picante e gorduroso. Mas, pelo fato de que os odores não são claramente distintos quanto aos sabores, como dissemos, tomou-se destes a denominação em virtude da semelhança das coisas” ( 421a 26).

 

Paladar

O palatável é uma espécie de tangível e por isso não é perceptível através de um corpo extrínseco e intermediário. É através da língua que se dá a percepção do gosto, do contrário, não é possível perceber a matéria. Logo é ela o meio através do qual o sensível é apreendido.

Aristóteles compara o palatável com a visão e audição. Na  visão há o visível como o invisível, ou algo é possível de ser visto ou não é;  e na audição, há o audível e o inaudível,  ou  algo é possível de ver ouvido ou não é. Também na gustação há o que é palatável e o que não é palatável. O não palatável é o que tem pequeno e escasso sabor.

 A matéria de algo que colocamos na boca tem o sabor através da umidade que está na língua, pois é necessário que o  palatável seja  úmido ou  capaz de umedecer.  Desse modo, o gosto pode ser alterado, como nos doentes em que tem a língua cheia de umidade e todos os gostos parecem amargos.

 

Tangível

Quanto ao tato há uma diversidade de experiências sensíveis, pois há diversos objetos perceptíveis. Em outros termos, o tato percebe diferentes sensíveis.  Diferente da visão que há os contrários, branco e preto; como na audição em que há o agudo e o grave, e na gustação o doce e amargo, no tangível há vários pares de contrários: quente e frio, seco e úmido, duro e mole.

Há aqui uma certa interrogação sobre se  Aristóteles tem a pele/ carne como uma espécie de intermediário ou  como  o órgão do tato.  Destaca-se, então  o problema do órgão e do intermediário relacionado ao tato. O órgão do tato no corpo é o corpo, ou este seria o intermediário ? Cabe o questionamento se haveria um órgão do tato para alguma parte do corpo. Ou se o órgão permite a capacidade tátil. Como  alternativa de que o tato seja algo misto, composto de ar e de água, e de terra, assim é necessário que o corpo seja um intermediário.

Deve ser destacado é que os tangíveis são as diferenças no distinguir os elementos quente, frio, seco, úmido. Perceber essas diferenças é ser afetada por elas.

 

Considerações finais

No último capítulo do livro Beta, há  considerações gerais sobre sensação  conduzidas pelo  o sentido como o  receptível da forma sensível sem a matéria. Capta-se o objeto sem a matéria, vê-se  a cor, o cheiro, o som, e não como se diz cada um deles.  Conduz o capitulo a indagações sobre a afetação que preparam para o livro seguinte.

Indo além do exposto no capítulo, mas  relacionado a Aristóteles importa destacar que o perceber é ser alterado por algo. A medida que usamos os sentidos há um certo tipo de alteração que nos permite conhecer  o mundo. Ao ouvir, ao cheirar, ao ver, ao sentir, ao degustar uma sensação é percebida e captada pelo pensamento e essa sensação nos permite conhecer o objeto cognoscível. Há um conhecimento em potência e em ato. Enquanto percepção é potência. Quando conhecemos em ato, ou seja, a sensação é  percebida, o que é conhecido se agrega a cada indivíduo e assim se concretiza o  processo que passa do  sensível para o cognoscível. 

Um exemplo, é o fato de ingerimos algum alimento. Na medida que está no nosso organismo, já não é o alimento, mas parte daquele que o ingeriu. Deixou de ser o objeto e passou a ser aquele que o consumiu. Há uma alteração do sentinte. Pode- se citar outros exemplos.  O que é tocado pode nos alterar e permitir conhecer a propriedade do que é tocado. O que é visto pode nos alterar,  ainda mais  se o que está sendo visto é algo belo. O que é ouvido pode nos alterar e  permitir saber sobre o mundo, ainda melhor se o que é ouvido se referir a um conhecimento verdadeiro. 

Portanto, quando a sensação é percebida, captada pelo pensamento nos sentidos próprios,  essa sensação nos permite conhecer. O sentir é uma atualização,  a medida que vivemos podemos ser alterados.

Referências

ARISTÓTELES, De anima. Tradução e notas de Maria Cecília Gomes dos Reis. São Paulo: Ed. 34, 2006.



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