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As ações coletivas e o controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário

As ações coletivas e o controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário

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A ampliação no uso das demandas coletivas para a proteção de interesses frente ao Poder Público torna-se mecanismo de participação da sociedade na administração da coisa pública.

1. A DISSEMINAÇÃO DAS TUTELAS COLETIVAS

Não há dúvida de que as demandas coletivas têm, paulatinamente, ganhado espaço no cenário judiciário nacional. Em que pesem alguns percalços – apresentados tanto pela jurisprudência como por inovações legislativas recentes – que buscam diminuir a eficácia, o cabimento ou a utilização das ações coletivas, são freqüentes, na atualidade, as ações que questionam interesses que afetam toda a coletividade

A ampliação no uso das demandas coletivas para a proteção de interesses frente ao Poder Público torna-se, então, mecanismo de participação da sociedade na administração da coisa pública. Nesse passo, as demandas coletivas acabam assumindo o papel de verdadeiro instrumento de democracia participativa, servindo para extravasar as diversas orientações populares sobre os rumos a serem adotados pelo governo nacional. [01] Por outro lado, servindo a este papel, esta classe de ação apresenta-se como elemento de realização de direitos fundamentais (convertendo-se em si em direito fundamental). Como assinala J. J. Gomes Canotilho, "o cidadão, ao desfrutar de instrumentos jurídico-processuais possibilitadores de uma influência directa no exercício das decisões dos poderes públicos que afectam ou podem afectar os seus direitos, garante a si mesmo um espaço de real liberdade e de efectiva autodeterminação no desenvolvimento da sua personalidade". [02]

É inquestionável o poder que estas ações civis públicas têm para determinar alterações em condutas daqueles que, eventualmente, são postos no pólo passivo desta espécie de demanda. Nos Estados Unidos, relata-se que o volume de ações coletivas causou, em várias empresas, a determinação de alterar sua política financeira e de emprego, ocasionando, por vezes, efeitos positivos nas decisões sobre as políticas de produção. [03] Aliás, é mesmo natural que assim seja, já que estas ações discutem um litígio em seu plano total, visando à raiz da questão, o que torna a decisão daí resultante uma verdadeira alteração na condução da empresa.

Quando estas demandas dirigem-se contra o Poder Público, semelhante situação ocorre. Diante do âmbito da eficácia das decisões aqui proferidas, haverá corriqueiramente tendência a alterar de modo substancial uma política governamental ou implantar decisões administrativas até então não adotadas. Obviamente, no campo financeiro, também estas decisões produzirão reflexos sensíveis. Afinal, é certo que a determinação judicial, impondo ao Estado a adoção de certa postura (especialmente quando a determinação for de alguma atitude comissiva), importará novos custos, novo gerenciamento de recursos e alteração nas prioridades governamentais. Em tais casos, as decisões políticas receberão um componente a mais: os limites impostos pela decisão judicial ou as indicações de agir por ela determinados.

Em tudo isso se vê a mão do juiz a participar, de forma mais efetiva, da gestão da coisa pública, influindo diretamente na adoção e realização de políticas públicas. Esta influência, com efeito, já é sentida na prática, sendo constantes ações civis públicas que visam à implementação de certos direitos constitucionais ou que objetivam impedir o Estado de realizar algo de seu interesse. Determinações obrigando o Estado a fornecer determinada medicação, a conceder créditos privilegiados a certas pessoas, a outorgar benefícios a certas camadas da população constituem regra no Judiciário nacional, bem como medidas tendentes a proibir o Poder Público de licitar certo objeto, de usar recursos para determinados fins etc.

A grande questão a ser enfrentada diz com os limites a estas possibilidades. Até que medida pode o juiz interferir em uma política pública, sobrepondo sua decisão (judicial) àquelas outras (políticas) ditadas por representantes do Executivo e do Legislativo. Qual o limite para que uma decisão fundada em critérios objetivos (legais), mais ou menos precisos, possa afastar as conveniências políticas daqueles que (ao menos em princípio) foram eleitos para decidir os rumos do Estado brasileiro?

Precisamente este é o objetivo deste trabalho: buscar alguns critérios para a atuação judicial em ações coletivas, enfrentando os principais obstáculos tradicionalmente postos ao ativismo judicial nesse campo.


2. O PAPEL POLÍTICO DO JUIZ E A APLICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

A fim de enfrentar a questão posta, um pressuposto merece ser ponderado: o juiz, atualmente, não é mais visto como simples aplicador do direito. Seu papel, na atualidade, foi alterado de mera "boca da lei", como queria o liberalismo clássico, para verdadeiro agente político, que interfere diretamente nas políticas públicas. Este papel se faz sentir em todas as oportunidades em que o magistrado é levado a julgar. Não há dúvida de que um juiz, que deve decidir sobre a outorga ou não de certo benefício previdenciário a alguém, interfere, mesmo que de forma mínima, em uma política pública. Sua decisão importará a alocação de mais recursos, a alteração de certos procedimentos (para atender ao caso concreto), além de representar um paradigma para outras pessoas e situação equivalente.

Se assim ocorre no plano individual, com muito maior ênfase este papel é sentido em ações coletivas. Não há dúvida de que as ações coletivas trabalham, costumeiramente, com interesses relevantes defendidos por ambos os pólos da relação processual. De fato, qualquer litígio coletivo envolverá um interesse relevante (normalmente de nível constitucional) reclamado pelo autor, em detrimento de outro interesse também relevante (e também de hierarquia constitucional) invocada como defesa pelo réu. Com efeito, a proteção do meio ambiente dificilmente se fará a não ser com restrição ao direito ao desenvolvimento regional supostamente protegido pelo réu; a proteção da saúde pública, não raro, implicará a lesão ao patrimônio público (ou particular, quando este for réu na demanda; a tutela do consumidor, comumente, esbarrará na alegação de violação à liberdade de empresa.

É, portanto, natural à ação coletiva colocar a discussão a respeito de dois ou mais interesses relevantes, em condição oposta no processo. Diante disso, o juiz é normalmente colocado a interferir em um destes interesses, a fim de beneficiar o outro, o que implica, muitas vezes, um papel político do magistrado na eleição do interesse "mais relevante" e que merecerá, no caso, proteção. A eleição destas "prioridades de relevância", no mais das vezes, dotará o magistrado de elevada carga de escolha pessoal, firmada em critérios subjetivos, algo a que os juízes não estão ainda habituados, pois é algo que não se verifica de regra em ações individuais. [04]

Deveras, no atuar o Direito em ações coletivas, o magistrado freqüentemente é levado a não apenas "aplicar o direito ao fato" (como se isso fosse possível), mas a conceber, em realidade, uma opção política, a propósito do bem jurídico ou do interesse social merece maior proteção pelo Estado e, assim, qual o outro interesse que deverá ser limitado para que aquele possa ser tutelado. [05] A fluidez dos conceitos que se liga à proteção coletiva – e aos instrumentos a ela ligados, como a noção de proporcionalidade, de interesse publico e de bem comum – outorga, em última análise, ao magistrado um poder semelhante àquele desempenhado pelos representantes políticos da sociedade, impondo ao juiz uma nova forma de pensar as questões a ele sujeitas. [06]

O aprendizado desta nova forma de pensar para o magistrado exige que ele tome sempre em consideração duas questões fundamentais: de um lado a atenção constante aos princípios fundamentais do Direito (somados aos seus critérios hermenêuticos e sua forma de incidência); de outro a redobrada sensibilidade com a realidade social. [07] Realmente, a presença constante, nas ações coletivas, do conflito entre interesses coletivos relevantes (ou entre interesse coletivo e interesse individual relevantes) impõe que o magistrado, na solução da questão, se paute sempre por critérios que apliquem ao caso concreto os princípios constitucionais, colocando em foco – antes da solução do litígio – a discussão a respeito da interpretação e aplicação da Constituição da República. O choque determinado entre os interesses em jogo importará ponderar, no caso concreto, o valor específico a ser dado a estes interesses, bem como a extensão da lesão que se imporá ao interesse sacrificado e o correspondente privilégio a ser oferecido ao outro valor. De fato, não será cega a aplicação do direito no caso concreto, já que neste campo, sempre a proteção de um interesse redundará na violação de outro (também importante) e, assim, a tutela daquele somente será legítima até certo limite, pois a partir deste a violação do outro importará sacrifício não admitido constitucionalmente. Nesse passo, assumirá ainda relevância – para dirimir o conflito de interesses coletivos – a ponderação de interesses e a conseqüente aplicação do princípio da proporcionalidade. [08] Com efeito, a proteção judicial deve sempre envolver a análise de meios, fins e motivos, observando-se se, no caso concreto, diante dos motivos apresentados, os meios são aptos (e, mais do que isto, são os mais adequados) a atingir os fins propostos. [09]

O princípio da proporcionalidade, no particular, representa talvez a mais importante ferramenta de atuação do juiz. Sua aplicação será uma constante na atuação judicial em processos coletivos e, no particular, três aspectos merecem ser considerados: a proporcionalidade em sentido estrito, a adequação e a exigibilidade. É preciso sempre considerar a finalidade dos dispositivos legais em conflito (que tutelam bens jurídicos determinados); tais fins podem ser logrados por distintos meios, sendo sempre de se optar pelo meio mais adequado à situação específica. Na avaliação desta adequação, entra também o critério da exigibilidade, no sentido de que tal meio represente o menor sacrifício possível ao outro interesse, que será subjugado. Por fim, deverá ser avaliada a proporcionalidade em sentido estrito, de forma a apresentar o resultado mais vantajoso, ou seja aquele que obtém o melhor resultado em relação a um interesse, com o menor sacrifício aos demais interesses envolvidos no conflito. [10]

Logicamente, toda essa consideração impõe a adequada interpretação do texto constitucional pelo magistrado. Esta interpretação, como parece ser evidente, não se assenta em critérios aleatórios do juiz, mas devem fixar-se em sólidos elementos hermenêuticos. Neste passo, há que se considerar a lição de JORGE MIRANDA [11], que enumera três diretrizes básicas para guiar o intérprete na análise e interpretação do texto constitucional. Inicialmente, salienta o autor que a interpretação constitucional deve ser objetivista e evolutiva, visando a possibilitar a coerência e a subsistência do ordenamento jurídico. Com este ponto inicial, pretende o autor que a interpretação constitucional tome por essência a constatação de que a Constituição é um todo, unitário e harmônico. [12] Especificamente no que interessa à solução do conflito de interesses de que aqui se trata, considera o autor que a superação da "contradição de princípios" impõe que se aja, "nuns casos, mediante a redução proporcionada do respectivo alcance e âmbito e da cedência de parte a parte e, noutros casos, mediante a preferência ou a prioridade, na efectivação, de certos princípios frente aos restantes – nuns casos, pois, através de coordenação noutros através de subordinação (assim, como já se disse, o princípio democrático, porque princípio de legitimidade da Constituição portuguesa, há-de presidir à concretização dos demais princípios e, como se verá, o respeito dos direitos, liberdades e garantias há-de ser o quadro de efectivação dos direitos económicos, sociais e culturais). E pode ter de se solicitar, como critério final (mesmo sem aceitar todas as premissas do puro método valorativo) a ponderação dos valores inerentes aos princípios que deverão prevalecer". [13]

Por derradeiro, acrescenta o estudioso que a hermenêutica constitucional "deve assentar-se no postulado de que todas as normas constitucionais são verdadeiras normas jurídicas e desempenham uma função útil no ordenamento. A nenhuma pode dar-se uma interpretação que lhe retire ou diminua a razão de ser. Mais: a uma norma fundamental tem de ser atribuído o sentido que mais eficácia lhe dê; a cada norma constitucional é preciso conferir, ligada a todas as outras normas, o máximo de capacidade de regulamentação". [14]

Em todo este papel interpretativo do magistrado se nota alta dose de critérios político-valorativos. Embora se tente esconder esta imposição sob o manto de argumentos retóricos, não há dúvida de que há de se exigir do magistrado papel valorativo semelhante àquele esperado dos representantes políticos da sociedade. A ação civil pública é, nesse passo, instrumento de exercício da democracia participativa direta, [15] e o juiz, ao julgá-la, exerce nítida função política, ao lado da jurídica. Neste papel, porém, deve o magistrado buscar formular estas opções políticas não segundo suas próprias opiniões ou convicções, mas sim de acordo com aquilo que o ordenamento jurídico nacional demandaria em termos de escalonamento de prioridades. [16] A partir desses critérios, não há sentido em o magistrado sentir-se desempenhando papel que não lhe compete.

Valendo-se, o mais possível, de critérios objetivos – pautados nas determinações constitucionais a respeito – não estará o juiz usurpando a atribuição de qualquer representante de outra Função do Estado; não estará agindo como legislador, já que sua preocupação não é a de criar a política pública, mas apenas a de exprimir a vontade da lei (do Direito) em relação à condução dela pelo Estado; também não se estará colocando no papel de agente do Executivo, especialmente porque sua função se limitará a indicar a direção a ser trilhada pelo Estado, sem considerar o modus operandi da medida. Por outro lado, não importará que o magistrado não goze – como os membros do Legislativo e do Executivo – da legitimidade pelo voto para efetivar estas escolhas políticas. É que, embora sua legitimação não decorra do voto popular, ela advém do processo em que a decisão é formada. Porque a decisão judicial nasce do contraditório entre os interessados e assenta-se na possibilidade de diálogo anterior entre os que, possivelmente, serão atingidos pela atuação jurisdicional, seu conteúdo deve gozar da mesma legitimação a que faz jus o ato político emanado do Legislativo ou do Executivo. [17]

Em razão disso tudo, desde que pautado por critérios seguros aportados da lei e fincado na premissa de que não deve chamar para si a opção discricionária da administração pública, poderá sempre o magistrado julgar, sem nenhuma infringência ao princípio da separação dos Poderes. [18]

Por outro lado, é claro – e com as considerações que adiante se fará a respeito do tema – não compete ao juiz, sob a suposição de controlar a política governamental, avocar a competência discricionária dos demais Poderes, para decidir da conveniência e oportunidade para a solução ótima aplicável ao caso. Exorbitará o magistrado suas funções, por outras palavras, sempre que, sem fundamento jurídico que demonstre que a opção legislativa ou da administração pública não é a melhor para o caso, anulá-la para ordenar a adoção de outra política. Mas, tirante essa hipótese, sempre cumprirá ao Judiciário perscrutir o ato administrativo, para examinar sua legalidade (em toda sua extensão, inclusive no que respeita à moralidade, à proporcionalidade, à razoabilidade, à eficiência, à realização do bem comum etc.).

A par do domínio das técnicas de interpretação constitucional e de aplicação do direito com base na Constituição da República, a nova forma de pensar que se exige do magistrado exige, sempre, a atenta visão da realidade e a sensível percepção do interesse social que o caso demanda. É freqüente notar que decisões são tomadas, em aberta injustiça, mas sob o argumento de que nada mais poderia ser feito, pois injusta é a lei, e não a decisão judicial. Em realidade, na grande maioria dos casos, esta decisão se mostra ainda mais perniciosa, já que acoberta a injustiça sob a proteção da lei, muitas vezes mal interpretada ou mal aplicada. Eventualmente, é possível mesmo encontrar decisões em que a realidade foi completamente descurada – porque não se teve a sensibilidade de antever a necessidade social de certa decisão, ou, o que é pior, os resultados catastróficos de certa solução judicial para a população. Nestes casos, como é óbvio, a intervenção judicial assume sua mais desastrosa face. A desatenção à realidade, muitas vezes, tornará jurídica situação que não o seria, e justa uma realidade injusta. Pense-se, por exemplo, que a decisão judicial que impor certa prática (a exemplo de alocação de dinheiro público para certo fim) poderá, se não bem ponderada, retirar condições e recursos para outra finalidade (não deduzida no processo) tão ou mais importante. A determinação judicial de prioridade para alguém realizar um transplante – em detrimento dos demais pacientes que aguardam o mesmo procedimento – implicará, eventualmente, se não refletida aprofundadamente, o sacrifício à vida de outra pessoa (que poderia estar em estado mais grave, mas, por uma razão ou outra, não requereu a proteção judicial).

Identicamente, o manejo adequado do direito material não é suficiente para a correta atuação dos direitos coletivos. É preciso também dominar a técnica processual. [19] Vê-se, ainda hoje, várias decisões judiciais que prestam verdadeiro desserviço à tutela coletiva, quer impondo restrições a ela inexistentes (na ordem jurídica), quer vedando as ações coletivas para certa finalidade – a exemplo de decisões que entendem que as ações "civis coletivas" somente se prestam para impor obrigação de ressarcimento [20] - quer ainda transformando as ações coletivas em ações individuais em que se formaria um litisconsórcio ativo (como se fez com o art. 2º, e seu parágrafo único, da Lei n. 9.494/97). Em todas estas limitações se observa nítido conservadorismo e clara vinculação à ótica individual do processo. Ao que parece, alguns magistrados ainda não notaram que as ações coletivas envolvem outra forma de pensar o processo, e que as estruturas concebidas para as ações individuais nem sempre se aplicam ao processo coletivo. Nesse momento, cabe referir a lição de Barbosa Moreira, que pondera que "quando porventura nos pareça que a solução técnica de um problema elimina ou reduz a efetividade do processo, desconfiemos, primeiramente, de nós mesmos. É bem possível que estejamos confundindo com os limites da técnica os da nossa própria capacidade de dominá-la e de explorar-lhe a fundo as virtualidades. A preocupação com a efetividade deveria levar-nos amiúde a lamentar menos as exigências, reais ou supostas, imputadas à técnica do que a escassa habilidade com que nos servimos dos recursos por ela mesma colocados à nossa disposição". [21]

Impõe-se, enfim, que o magistrado se mostre consciente de seu papel, no meio social. É necessário que o juiz não se veja apenas como um burocrata, responsável pela aplicação fria da lei ao caso concreto, mas perceba sua função de agente social, capaz de alterar a realidade. [22] A interpretação judicial do direito deve ser, nesse passo, feita "tanto retrospectivamente como prospectivamente, isto é, como medida do que já ocorreu e ficou provado, e o imperativo de justiça que, a partir da sentença, deve valer no futuro. É a razão pela qual, hoje em dia, só serve à sociedade o magistrado que exerce criteriosamente suas atividades à luz das fontes e dos modelos do Direito, prolatando uma decisão que entrelace, com certeza e segurança, o passado ao futuro, a justiça pedida e a justiça outorgada. Tanto como o próprio Direito, o Judiciário pode e deve ser concebido como constans ac perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi". [23]


3. A tripartição dos poderes e o juiz como legislador positivo

A par dessa nova mentalidade, exigida do magistrado, a adequada tutela coletiva – em relação ao Poder Público – impõe revisar a noção clássica da tripartição dos poderes do Estado, bem como o dogma – concebido pela jurisprudência nacional – de impedir-se ao Judiciário agir como "legislador positivo", ou seja, criando determinações concretas, de modo a suprir a omissão legislativa.

Sabe-se que é freqüente o argumento – contrário ao controle judicial das políticas públicas – de que o Poder Judiciário, ao investigar tais atividades das demais funções do Estado (Legislativo e Executivo), estaria intrometendo-se indevidamente em atividades destes outros "Poderes", violando a separação dos poderes, imposta pela Constituição da República. [24] Na jurisprudência, também, não são raros os casos em que o Judiciário se nega a atuar em determinados casos, precisamente por invocar esta separação de funções – e a conseqüente proibição em atuar na condição de legislador positivo – como limite à sua ação. [25] Há, mesmo, súmula do Supremo Tribunal Federal espelhando esse entendimento (Súmula n. 339: "não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob fundamento de isonomia").

Sem sombra de dúvida, a limitação em questão representa severa condicionante à atuação jurisdicional no trato de políticas públicas. Ao se aplicar desavisadamente esta orientação, jamais poderá o Poder Judiciário impor prestação positiva ao Estado – já que, sempre, haverá intromissão em atividade do Executivo (ou, até mesmo, do Legislativo), servindo o magistrado como legislador positivo.

Na realidade, a questão posta revela ideário já vencido há muito tempo. Considerar a idéia de "separação de poderes" como imposição de rígida divisão de atribuições entre o Judiciário, o Executivo e o Legislativo é algo que não tem mais pertinência em nenhum país do mundo (aí incluído o Brasil). Na verdade, o argumento, atualmente, assume antes caráter retórico do que concreto, já que diversas são as situações reais que desmentem a aplicação dessa teoria rígida no sistema nacional.

Com efeito, a aplicação da teoria da "separação de poderes" implicaria a aceitação da idéia de que a legislação somente é atribuída ao Legislativo, de que a administração somente compete ao Executivo e de que a aplicação do direito ao caso concreto (por terceiro imparcial) é providência exclusivamente reservada ao Judiciário. Ora, as medidas provisórias, a autonomia administrativa do Legislativo e do Judiciário (arts. 51, IV, 52, XIII e 99, da CR) e as sentenças normativas da Justiça do Trabalho, respectivamente, são demonstração do equívoco dessa premissa. Aliás, admitida de forma irrestrita a "separação de poderes", sequer seria admitido o controle jurisdicional do Estado (mesmo que sob a suposição de violação da legalidade). De fato, como diz Riccardo Guastini, "no modelo de separação de poderes, os juízes não podem controlar a legalidade dos atos do executivo, nem anular ou privá-los de eficácia (o controle da legalidade sobre atos da administração é atribuído aos órgãos internos da própria Administração). Ao contrário, no modelo do balanceamento de poderes, os atos do executivo são sujeitos a controle jurisdicional de legalidade, e os atos administrativos ilegais podem ser anulados (ou, ao menos, desaplicados) pelo juiz". [26]

Ora, é evidente que todos estes excessos não têm cabimento no direito brasileiro. É, também, óbvio, portanto, que o sistema adotado no Brasil não é o da "separação de poderes", mas sim o do "balanceamento dos poderes". [27] Ou seja, o direito nacional não concebe a vedação de o Judiciário controlar atividades de outros "poderes" – seja negando força a estas atividades (controle negativo), seja impondo condutas (controle positivo). Ao contrário, no Brasil, o Judiciário tem sim a prerrogativa de interferir na atividade do Executivo e do Legislativo, para controlar a atuação destes na sua conformidade com o Direito – aí incluídos os princípios e diretrizes constitucionais. [28]

Dessa forma, sempre que a atividade dos outros "poderes" se mostre ilegal ou contrária às diretrizes principiológicas da Lei Maior, impõe-se a atuação do Poder Judiciário, coibindo esta ilegalidade e apontando o caminho correto da atividade do Estado, seja vedando certa conduta, seja ainda impondo-a, quando verificada a omissão. Note-se, com efeito, que essa prática é corriqueira no cotidiano forense. Inúmeras são as ações (mesmo apresentadas perante os tribunais superiores) em que se pretende prestação positiva do Estado ou, ao menos o controle de sua atividade. Normalmente, sequer se atenta que tais demandas desconsideram a idéia de "separação dos poderes" (e mesmo a consectária proibição da atuação do magistrado como "legislador positivo"). Apenas em determinadas questões – em que a conveniência política aponta para solução em que convenha não interferir na atuação estatal – é que se invoca as teorias acima descritas, totalmente superadas pela história, como óbice para a atuação jurisdicional.

Por outro lado, essa intervenção nos demais "poderes" – que é, na atualidade, uma constante – vem paulatinamente assumindo contornos em que se torna difícil diferençar a atividade jurisdicional da função legiferante. A noção de que a lei é ato abstrato e genérico, enquanto a decisão judicial é concreta e específica, vem cedendo, a cada momento, à realidade em que sentenças assumem, também, caráter genérico e abstrato. [29] A atuação do Judiciário frente às demandas coletivas é a maior prova disso. O caráter geral da decisão judicial, a condenação genérica preconizada pela lei (art. 95, da Lei n. 8.078/90) e a indeterminação dos sujeitos a serem atingidos pela sentença são prova de que este ato se assemelha em muito à lei. Em conseqüência disso, como pondera Rodolfo Mancuso, "essa gradativa expansão da eficácia das decisões judiciais se amolda, pois, à atenuação do rígido esquema de separação entre os poderes, á medida que mais e mais as decisões judiciais tendem a se libertar do confinamento nos autos em que foram proferidas para projetar reflexos ao exterior, em face de outros jurisdicionados, e principalmente perante os demais Poderes do Estado, numa força coercitiva mais ou menos ampla, que sob esse aspecto vai aproximando os produtos legislativo e judiciário". [30]

Disso tudo ressalta, mais uma vez, a necessidade de conscientização aos magistrados do papel político por eles desempenhado, bem como a imposição de se revisar os pressupostos e dogmas em que opera o Judiciário nacional. Obstáculos como os acima apontados são, antes, mero argumento (de fundamento inexistente) para evitar o julgamento, do que propriamente limitação à função jurisdicional. Limitações aparentes como esta são convenientemente empregadas em certas situações – como impedimento à atuação judicial – e afastadas em outras, o que certamente não se pode admitir. Não se está, aqui, frente a efetiva fronteira na atuação jurisdicional, sendo imperioso repensar este problema específico.


4. Controle de discricionariedade

É corrente falar-se na impossibilidade de o Poder Judiciário controlar o "mérito" do ato administrativo, dizendo-se com isso que não compete ao magistrado apreciar a conveniência e oportunidade daquela espécie de ato.

Realmente, existe – e deve existir, pela precisa maneira distinta de legitimação da função exercida pela função administrativa e pela função jurisdicional do Estado – limite para o controle do ato público pelo Judiciário. Não é conveniente (nem tocaria à função reservada ao Poder Judiciário) que o magistrado se substitua ao administrador, regendo a forma pela qual o Estado deve ser gerido. Não foi para desempenhar este papel que o juiz foi galgado a esta posição, nem se espera deste agente a compreensão da lógica que preside a atividade desenvolvida pelo Poder Executivo. Há, portanto, sem dúvida, uma porção do ato administrativo insindicável pelo magistrado, dentro do qual, realmente, não há legítima interferência judicial.

No passado, aludiu-se – havendo referência expressa nas Constituições de 1934 e de 1937 a esta figura – aos chamados atos políticos, que seriam insuscetíveis de controle pelo Poder Judiciário. Tais seriam os atos que, por sua conotação primordialmente política, estariam afetos exclusivamente aos critérios político, de governo, o que suprimiria do Poder Judiciário a possibilidade de seu controle. A categoria (e especialmente a conseqüência decorrente), porém, foi objeto de crítica geral pela doutrina, que salientava a artificialidade da criação e, especialmente, da decorrente insindicabilidade destes atos pelos magistrados. A propósito, contundentes foram as palavras de Rui Barbosa que, ao contrapor a questão política à questão jurídica, concluiu que "contraposto a este se estende, com divisas claras e sensíveis, o terreno da justiça, assinalado exatamente pela característica oposta de que questões de sua alçada, em vez de obedecerem à apreciação de conveniências, mais ou menos gerais, entendem com a aplicação do direito legal aos casos particulares, de ordem individual ou coletiva. Onde quer que surja um problema jurídico desta natureza, embora não seja estreme de elementos políticos, desde que exclusivamente político não é, tem de receber a solução legal do poder constituído para dar efeito às garantias constitucionais e com elas valer a toda individualidade, natural ou moral, lesada no seu direito". [31]

Com efeito, supor que o ato político – por representar, em seu âmago, decisão de cunho político a respeito de certa questão – não pode submeter-se ao crivo judicial é desconsiderar que mesmo nesta eleição política de opções, pode o administrador agir de forma ilegal, violando o pressuposto mais essencial de seu agir. Neste caso, obviamente, ainda que político, o ato passa a ser ilegítimo, não havendo razão para excluir seu exame pelo órgão jurisdicional. [32]

O mesmo raciocínio valerá, obviamente, para o ato administrativo discricionário. Como se sabe, o ato discricionário é aquele em que há porção do ato entregue ao juízo de conveniência e oportunidade do administrador. Mais precisamente, na clara lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, "atos ‘discricionários’, pelo contrário, seriam os que a Administração pratica com certa margem de liberdade de avaliação ou decisão segundo critérios de conveniência e oportunidade formulados por ela mesma, ainda que adstrita à lei reguladora da expedição deles". [33] Logicamente, não se deve ver discricionariedade em qualquer ato administrativo cuja disciplina legal esteja permeada de tratamento por conceitos vagos. O chamado "mérito administrativo" não se confunde com a interpretação a ser dada a determinado conceito fluido (em si só), nem se estende para abranger qualquer aspecto do ato administrativo. De fato, como demonstra a doutrina, é equivocada a noção que vê a legalidade vinculada apenas ao aspecto formal e de competência do ato administrativo; [34] em verdade, o campo da legalidade vai bem além, abrangendo todos os elementos do ato administrativo, ao menos em sua relação com preceitos específicos de lei ou com princípios constitucionais.

A presença desta margem de "liberdade" legal, [35] obviamente, implica aceitar que a escolha da opção cabe ao administrador, não havendo espaço para a sobreposição desta escolha por outra, do mesmo porte, realizada pelo magistrado. Daí, todavia, a imaginar-se que o ato administrativo (dito discricionário) não pode ser apreciado pelo Poder Judiciário, vai uma grande distância. Na realidade, embora se deva reconhecer limite para a atividade judicial no exame do ato discricionário, isto não implica dizer que haverá liberdade para o agir do administrador, que poderá adotar a solução que melhor lhe convenha.

De fato, o espaço de discricionariedade dado pela lei ao administrador apenas pode ser visto como espaço para, diante do caso concreto, eleger ele a solução mais adequada. Se a discricionariedade tem o papel de amoldar a exigência da lei à realidade do caso concreto, é evidente que sua existência somente se justifica na medida em que o administrador possa, diante das circunstâncias concretas, adotar a solução mais perfeita e correta para a realização da intenção da lei. Como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, "assim, a discricionariedade existe, por definição, única e tão-somente para proporcionar em cada caso a escolha da providência ótima, isto é, daquela que realize superiormente o interesse público almejado pela lei aplicanda. Não se trata, portanto, de uma liberdade para a Administração decidir a seu talante, mas para decidir-se de modo que torne possível o alcance perfeito do desiderato normativo". [36]

Deste modo, falar em discricionariedade não significa entregar uma margem, irrestrita e insindicável, de liberdade plena ao administrador, que pode utilizar dela como desejar. [37] Na verdade, a lei não outorga este poder ao administrador para que este adote a providência que entender adequada segundo seus interesses, seus critérios ou suas preferências. Ao contrário, este "espaço de manobra" é entregue no exclusivo interesse público, para permitir que, diante do caso concreto, o administrador possa adotar a melhor providência possível.

Sendo assim, fica claro que, quando a opção do administrador for, claramente, ruim, diante do caso concreto, por se distanciar, evidentemente, daquelas possíveis opções "melhores" que a hipótese específica recomendaria, cabível será o controle judicial da medida. [38] O mesmo se dirá se a Administração Pública, a pretexto de fazer valer sua discricionariedade, agir em confronto com normas regulamentares previamente fixadas [39] ou, a fortiori, contra os princípios constitucionais que regem o seu agir (a exemplo da moralidade, da impessoalidade e da eficiência), [40] ou ainda em abuso de direito. [41]


5. Reserva do possível

Outro obstáculo comumente apontado para inibir o Poder Judiciário de controlar políticas públicas é a chamada "reserva de cofres públicos" ou "reserva do possível" (Vorbehalt des Möglichen). O óbice é posto, em especial, no concernente a ações positivas do Estado, como limitador à atuação do órgão estatal.

Como se afirma, não há maneira para impor-se ao Poder Público a obrigação de atuar em determinado sentido, porque pode haver restrições de ordem material e, especialmente, orçamentárias que impeçam este agir. Considerando que o orçamento é limitado – e que cabe ao poder discricionário do Estado a escolha da prioridade dos investimentos – não poderia o Poder Judiciário substituir-se aos legítimos administradores, para ditar a forma como o dinheiro público deve ser prioritariamente gasto. Desse modo, os direitos (todos eles) estariam condicionados, em sua realização pelo Poder Público, às capacidades financeiras do Estado, o que tornaria esta realização insindicável pelo Poder Judiciário. [42]

A idéia da reserva do possível surge com Peter Häberle, na década de 70, tendo sido acolhida pela Corte Constitucional alemã. É sempre lembrada, no particular, a decisão do caso numerus clausus, a respeito do direito de acesso às vagas em universidades alemãs ("numerus-clausus Entscheidung", BverfGE n. 33, 303 (333)), em que aquele tribunal considerou que as prestações que o cidadão pode exigir do Estado estão condicionadas aos limites do razoável. [43] Desde então, entende a Corte Constitucional Federal alemã que os direitos sociais de prestação positiva somente são exigíveis do Estado segundo os limites da possibilidade, ou seja, "daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade", correspondente, ao menos, ao "direito mínimo de existência" – evidente concreção do princípio da dignidade da pessoa humana. [44]

A reserva do possível, inquestionavelmente, constitui limite à atuação judicial. De fato, pouco resolve o magistrado impor ao Estado determinada prestação fática, quando este puder escudar-se com a afirmativa de carecer de recursos materiais para cumprir a determinação judicial. Estar-se-ia diante de decisão fadada à frustração, já que não seria realizada, nem se podendo cogitar de técnicas para impor a prestação.

Por outro lado, também não se pode esquecer a situação em que, ao cumprir a decisão do magistrado – de realizar certa prestação fática – estará o Estado deixando a descoberto outros interesses identicamente relevantes (ou, às vezes, mais importantes ainda). Tal é o que ocorre, por exemplo, quando o magistrado impõe ao Estado a determinação de realizar em certa pessoa uma cirurgia urgente (desrespeitando a fila existente para aquele tipo de procedimento médico). Logicamente, a determinação, se cumprida, acarretará prejuízo para outros tantos interesses idênticos, que serão preteridos em prol daquele vindicado judicialmente. [45]

Não obstante tais considerações, embora se reconheça a importância da cláusula de reserva do possível como limitador à atuação jurisdicional na implementação de políticas públicas, deve-se notar que este elemento não pode ser considerado como obstáculo absoluto. Realmente, embora o Poder Judiciário não tenha a autoridade de impor ao Estado determinada prestação quando este não disponha dos meios materiais para a consecução daquela conduta, daí não resulta a insindicabilidade geral dos atos de governo, sob o simples argumento da ausência de disponibilidade financeira para tanto.

Assim deve ser porque, conquanto os limites orçamentários possam constituir elemento de preocupação na imposição de políticas públicas ao Estado, tais políticas, muitas vezes, realizam garantias fundamentais, a cuja concretização se comprometeu o próprio Estado em seu estatuto constitucional. Diante disso, considerando que tais políticas muitas vezes revelam a efetivação de garantias previstas na Constituição da República, como direitos fundamentais, a falta de disponibilidade de caixa – ou, o que é mais usual, o uso dos recursos públicos para outro fim – não pode tornar "letra morta" a determinação constitucional, nem permite anular a vinculatividade dos preceitos consagradores de direitos fundamentais para o Poder Público (seja ele o Executivo, seja o Legislativo, seja mesmo o Judiciário). [46]

Na realidade, impende lembrar que os direitos fundamentais admitem concreção gradual, de forma que podem ser implementados paulatinamente, segundo as possibilidades de cada Estado. Esta implementação gradual, todavia, não pode autorizar que, sob o pretexto da indisponibilidade financeira do Estado, possa este furtar-se de realizar o mínimo cabível, dentro da exigência razoável que suas condições autorizariam. Com efeito, como demonstra Canotilho, "a gradualidade está associada, por vezes, à ‘ditadura dos cofres vazios’ entendendo-se que ela significa a realização dos direitos sociais em conformidade com o equilíbrio económico-financeiro do Estado. Se esta idéia de processo gradualístico-concretizador dificilmente pode ser contestado, já assim não acontece com a sugestção avançada por alguns autores sobre a completa discricionariedade do legislador orçamental quanto à actuação socialmente densificadora do Estado. A tese da insindicabilidade das ‘concretizações legislativas’ ou da ‘criação de direitos derivados a prestação’ pelo legislador assenta no postulado de que as políticas de realização de direitos sociais assentam em critérios exclusivos de oportunidade técnico-financeira". [47]

Na realidade, o limite do possível constitui uma barreira concreta para a realização de prestações pelo Estado. Quando, porém, estas prestações assumem caráter constitucional – de direitos fundamentais (de cunho social) – elas, porque admitem implementação gradual, podem ser satisfeitas em vários níveis.

Mais que isso, por se tratarem de direitos fundamentais, representam opções vinculativas do constituinte para o legislador infra-constitucional. Desse modo, estes interesses somente podem ser restritos – ainda que por conta da reserva do possível – na medida em que esta restrição atende a outro interesse também fundamental. Trata-se, em essência, da aplicação da ponderação de princípios. [48] De toda forma, e também por conta da aplicação desse critério, sempre será necessário preservar o núcleo essencial dos direitos fundamentais em questão, já que isso constitui uma das premissas da proporcionalidade. Assim, mesmo diante da "reserva do possível", jamais será admissível que o Estado abandone simplesmente um interesse fundamental. Sempre será exigível – ainda diante da reserva do possível – a preservação de um mínimo vital (direito fundamental mínimo), [49] correspondente ao mínimo razoavelmente exigível para a satisfação de uma vida digna.

Com efeito, ainda que se considere que mesmo estes direitos mínimos possuem reflexo financeiro para o Estado (especialmente quando são muitos os que exigem a sua satisfação), isto não é suficiente para negar existência (e força vinculante) para tais direitos fundamentais. [50] Se estes postulados foram fixados pelo constituinte, como garantias fundamentais, o critério financeiro do Estado deve assumir importância secundária, sob pena de fazer vã a intenção jus-fundamental. Não fosse assim, como explica Alexy, em tempos de crise econômica seria perfeitamente justificável o aniquilamento de direitos fundamentais, justamente sob o pressuposto de que os interesses financeiros do Estado deveriam ser postos em primeiro lugar, o que, obviamente, não é verdade. [51]

Sempre, pois, será possível o controle judicial das políticas públicas – mesmo diante da reserva do possível – quando se tratar de garantir direitos fundamentais mínimos. Idêntica posição se pode exigir do Poder Judiciário, à toda evidência, quando o argumento da "reserva do possível" não encontrar respaldo concreto, ou seja, quando o Estado dele se valha apenas para deixar de garantir interesse relevante. Verificada a ausência de qualquer limitação financeira, ou a aplicação de recursos públicos em finalidade evidentemente menos importante do que aquela a ser protegida, cumpre afastar o limite ora estudado, sendo imponível a prestação para o Estado.

Por derradeiro, importa lembrar que a tese acima defendida já foi explicitamente aplicada pelo Supremo Tribunal Federal. Ao decidir a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 45-9/DF (DJU 04.05.04, p. 12), [52] ainda que em decisão monocrática, o relator, Ministro Celso de Mello, ponderou que, muito embora não caiba ao Poder Judiciário a implementação regular de políticas públicas, excepcionalmente este papel lhe é conferido "se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático". Existindo este papel do Poder Judiciário, prossegue o Ministro, há que se considerar, na determinação da implementação da política pública, a "reserva do possível", mas apenas na estrita medida em que esta reserva se mostre, efetivamente, existente. Ainda que reconheça a necessária vinculação da implementação dos direitos sociais aos limites financeiros do Estado, ressalta a decisão que isto não implica a liberdade plena do Estado em, a seu talante, concretizar ou não a norma garantidora do direito fundamental. A "reserva do possível" não poderá, portanto, ser invocada sem qualquer critério, somente com o intuito de exonerar o Poder Público de cumprir com sua função constitucional de implementar os direitos fundamentais. Como ressalta o Min. Celso de Mello, "Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese - mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa - criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade".

Diante de todos estes argumentos, conclui a decisão no sentido de que "Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado - e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico -, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado".

Precisamente esta é a idéia que rege a aplicação do princípio em questão. Não obstante possa ele configurar elemento de limitação à atividade jurisdicional, este limite não é absoluto, cabendo ao Poder Judiciário não apenas investigar a razoabilidade da indisponibilidade financeira alegada pelo Poder Público, como ainda apurar – se for o caso – a outra destinação dada ao recurso público, bem assim a garantia do "mínimo essencial" pelo Estado.

Logicamente, está-se aqui diante de conceitos vagos, a serem preenchidos diante do caso concreto. Todavia, tais elementos ao certo poderão servir de norte na atuação judicial do controle de políticas públicas, não tendo cabimento, enfim, invocar a cláusula da "reserva do possível" como elemento que inviabilize, por completo, a investigação judicial das práticas públicas.


6. Conclusão

Em conclusão, cumpre considerar que o controle de políticas públicas pelo Poder Judiciário não deve ser tido como uma exceção, mas antes como uma regra. Diante da concepção do sistema dos "freios e contrapesos" – acolhida pelo direito nacional – não há dúvida de que o controle dos demais "poderes" do Estado somente pode ser realizado, em última instância, pelo Poder Judiciário.

Por outro lado, o Judiciário não se pode – justamente porque ele representa o último campo de proteção contra os abusos eventualmente cometidos pelos outros "poderes" – furtar a exercer este papel. Ainda que existam limites para a sua atuação e para o seu controle, a existência destas barreiras não infirmam, mas antes confirmam, a necessidade de atuação desta função pelos órgãos jurisdicionais. De todo modo, a existência destes limites não pode autorizar sua simples alegação, como obstáculo à intervenção judicial. A efetiva existência do limite em questão deve ser cuidadosamente verificado pelo Poder Judiciário e devidamente ponderado, a fim de evitar "vácuos" no domínio público, em que certas condutas permanecem simplesmente livres de controle, pelo simples fato de uma invocada ilegitimidade na intervenção jurisdicional.

Recorde-se, mais uma vez, que as limitações à atuação jurisdicional devem ser, estritamente, aquelas mínimas necessárias ao desempenho adequado das demais funções do Estado. Afinal, é diretriz constitucional (art. 5º, inc. XXXV, da CR) a sindicabilidade de qualquer situação – seja ela decorrente de atividade pública ou privada – que ocasione ou possa ocasionar lesão a interesse. Esta possibilidade em investigar as atividades públicas – com o mínimo de restrição possível –, enfim, apresenta nítido interesse mesmo para os fins do Estado, já que não se pode conceber que este ente venha a descumprir com as leis (e com a Constituição) que lhe serve de fundamento. Como lembrou Hobbes, "enquanto às vezes eles dizem que o rei é obrigado não só a fazer com que suas leis sejam observadas mas também a observá-las ele próprio, acho que o rei fazer com que elas sejam observadas é o mesmo que observá-las ele próprio". [53]

A observância pelo Estado da lei – e, então, o controle desta observância pelo próprio Estado – é a única garantia da legitimidade dessa instituição. Por seu turno, as demandas coletivas representam talvez o mecanismo mais moderno de democracia participativa e, assim, de controle social daquela observância, o que as eleva à categoria de instrumento fundamental na manutenção do Estado Democrático de Direito.

O papel crucial outorgado ao Judiciário, por estes mecanismos, pois, merece ser adequadamente apreciado, não podendo ele demitir-se de tão relevante função.


Notas

01 V., a respeito, MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. 5ª ed., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 86 e ss.

02 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. "Constituição e défice procedimental" in Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra, 2004, 73.

03 Cf. HENSLER, Deborah R. et alli. Class action dilemmas – pursuing public goals for private gain. Santa Monica: RAND, 2000, p. 119.

04 V. a propósito, ARENHART, Sérgio Cruz. Perfis da tutela inibitória coletiva. São Paulo: RT, 2003, p. 177 e ss.

05 A função criativa, envolvida na atividade jurisdicional já é reconhecida há muito, não havendo aí qualquer novidade. V., a respeito, KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 124/125.

06 Como acentua MIGUEL REALE, "não resta dúvida que a tutela jurisdicional dos interesses difusos e coletivos – para a qual foi criada uma nova ação, a ‘ação civil pública’, disciplinada pela Lei nº 7.347, de 24-07-85, põe in esse uma nova categoria de julgamento, no qual considerações de natureza sociológica, ecológica, ética e política não podem ser abstraídas, importando, ao contrário, um juízo concreto de valor, através do qual se faz o balanceamento entre o que exige a sociedade e aquilo que é salvaguardado constitucionalmente aos indivíduos e suas entidades associativas" (REALE, Miguel. "O judiciário a serviço da sociedade" in Ajuris, nº 62. Porto Alegre: Ajuris, novembro/1994, p. 196).

07 Nesse sentido, v. MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 2ª ed., 2ª tiragem. São Paulo: RT, 2003, p. 751.

08 Sobre este princípio, v., entre outros, CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional. 5ª ed., Coimbra: Almedina, 1991, p. 386 e ss.; BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 213 e ss.; BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 1996, passim; STUMM, Raquel Denize. Princípio da proporcionalidade no direito constitucional brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995, passim. A propósito da aplicação do princípio da proporcionalidade no campo do processo, v. MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: RT, 2004, p. 165/221.

09 Cf. BARROSO, Luiz Roberto. Interpretação e aplicação da constituição, ob. cit., p. 221.

10 V., por todos, GUERRA Fº, Willis Santiago. "Princípio da proporcionalidade e teoria do direito" in Direito constitucional – estudos em homenagem a Paulo Bonavides. Org. Eros Roberto Grau e Willis Santiago Guerra Filho. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 270/271.

11 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, tomo II, 2ª ed., Coimbra Editora, 1988, p. 228/229.

12 "O apelo ao elemento sistemático consiste aqui em procurar as recíprocas implicações de preceitos e princípios em que aqueles fins se traduzem, em situá-los e defini-los na sua inter-relacionação e em tentar, assim, chegar a uma idónea síntese globalizante, credível e dotada de energia normativa" (MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, ob. cit., p. 228).

13 Id. Ibidem, p. 228.

14 Ainda, sobre o conflito de princípios constitucionais, veja-se a obra de KARL ENGISH, Introdução ao pensamento jurídico (6ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 318 e ss.), concluindo que o exame deste problema passa pela análise casuística da situação concreta e dos princípios envolvidos.

15 Cf. BURLE Fº, José Emmanuel. "Ação civil pública. Instrumento de educação democrática", in Ação civil pública. Coord. Edis Milaré. São Paulo: RT, 2001, p. 363/364; GRINOVER, Ada Pellegrini. "A problemática dos interesses difusos", ob. cit., p. 36.

16 Cf. ARENHART, Sérgio Cruz. Perfis da tutela inibitória coletiva, ob. cit., p. 181.

17 Como pondera Owen Fiss, "a especial idoneidade do Judiciário e, conseqüentemente, sua legitimidade, dependem da adesão a essas duas qualidades do processo judicial – diálogo e independência – e não da concordância do povo com decisões particulares ou de sua capacidade para indicar ou remover indivíduos que ocupam cargos públicos" (FISS, Owen. Um novo processo civil. Trad. Daniel Porto Godinho da Silva e Melina de Medeiros Rós. São Paulo: RT, 2004, p. 115).

18 Nesse sentido, e de forma muito mais aprofundada, v. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. "A ação civil pública como instrumento de controle judicial das chamadas políticas públicas", in Ação civil pública. Coord. Edis Milaré. São Paulo: RT, 2001, p. 737 e ss. Contra, v. FRONTINI, Paulo Salvador. "Ação civil pública e separação dos poderes do estado", in Ação civil pública. Coord. Edis Milaré. São Paulo: RT, 2001, p. 697/705.

19 Cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil, ob. cit., p. 87.

20 V., a respeito, ARENHART, Sérgio Cruz. Perfis da tutela inibitória coletiva, ob. cit., p. 161/172.

21 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. "Efetividade do processo e técnica processual" in Temas de direito processual, 6ª série. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 28.

22 A imagem do juiz como um simples servidor, responsável por atividade praticamente mecânica é freqüente na análise dos países da Common Law a respeito dos magistrados do direito continental europeu (a respeito dessa consideração, v. MERRYMAN, John Henry. La tradición jurídica romano-canónica. 2ª ed., 4ª reimpr.. México: Fondo de Cultura Económica, 1998, pp. 76/77).

23 REALE, Miguel. "O judiciário a serviço da sociedade", ob. cit., p. 198.

24 Defendendo este argumento, manifesta-se Paulo Salvador Frontini ("Ação civil pública e separação dos poderes do estado". Ação civil pública – Lei 7.347/1985 – 15 anos. Coord. Édis Milaré. São Paulo: RT, 2001, p. 668 e ss.)

25 V.g., STF, 2ª Turma. RE 358.315/MG. Rel. Min. Ellen Gracie. DJU 19.09.2003; STF, 2ª Turma. AgR-RE 322.348/SC. Rel. Min. Celso de Mello, DJU 06.12.2002; STF, 2ª Turma. AgR-AI 273.561/SP. Rel. Min. Celso de Mello. DJU 04.10.2002.

26 GUASTINI, Riccardo. Lezioni di teoria costituzionale. Torino: Giappichelli, 2001, p. 26.

27 O Supremo Tribunal Federal, aliás, já se pronunciou neste sentido, afirmando a vigência no direito nacional do princípio do balanceamento dos poderes. Nesse sentido: "I. Ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 102, I, a) e representação por inconstitucionalidade estadual (CF, art. 125, § 2º). A eventual reprodução ou imitação, na Constituição do Estado-membro, de princípio ou regras constitucionais federais não impede a argüição imediata perante o Supremo Tribunal da incompatibilidade direta da lei local com a Constituição da República; ao contrário, a propositura aqui da ação direta é que bloqueia o curso simultâneo no Tribunal de Justiça de representação lastreada no desrespeito, pelo mesmo ato normativo, de normas constitucionais locais: precedentes.

II. Separação e independência dos Poderes: pesos e contrapesos: imperatividade, no ponto, do modelo federal. 1. Sem embargo de diversidade de modelos concretos, o princípio da divisão dos poderes, no Estado de Direito, tem sido sempre concebido como instrumento da recíproca limitação deles em favor das liberdades clássicas: daí constituir em traço marcante de todas as suas formulações positivas os "pesos e contrapesos" adotados. 2. A fiscalização legislativa da ação administrativa do Poder Executivo é um dos contrapesos da Constituição Federal à separação e independência dos Poderes: cuida-se, porém, de interferência que só a Constituição da República pode legitimar. 3. Do relevo primacial dos "pesos e contrapesos" no paradigma de divisão dos poderes, segue-se que à norma infraconstitucional - aí incluída, em relação à Federal, a constituição dos Estados-membros -, não é dado criar novas interferências de um Poder na órbita de outro que não derive explícita ou implicitamente de regra ou princípio da Lei Fundamental da República. 4. O poder de fiscalização legislativa da ação administrativa do Poder Executivo é outorgado aos órgãos coletivos de cada câmara do Congresso Nacional, no plano federal, e da Assembléia Legislativa, no dos Estados; nunca, aos seus membros individualmente, salvo, é claro, quando atuem em representação (ou presentação) de sua Casa ou comissão.

III. Interpretação conforme a Constituição: técnica de controle de constitucionalidade que encontra o limite de sua utilização no raio das possibilidades hermenêuticas de extrair do texto uma significação normativa harmônica com a Constituição." (STF, Pleno. Adin 3046/SP. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. DJU 28.05.04, p. 492) - grifamos.

28 V., a respeito, PALU, Oswaldo Luiz. Controle dos atos de governo pela jurisdição. São Paulo: RT, 2004, p. 112 e ss.

29 Cf. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. "A ação civil pública como instrumento de controle judicial das chamadas políticas públicas". Ação civil pública – Lei 7.347/1985 – 15 anos. Coord. Édis Milaré. São Paulo: RT, 2001, p.742/743.

30 Idem, ibidem, p. 743.

31 Obras completas de Rui Barbosa. Vol. 37. Tomo 5, Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983, p. 114.

32 Neste sentido, v., entre outros, BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais de direito administrativo. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1969, p. 417; FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário. 5ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 164/165; MEDAUAR, Odete. Controle da administração pública. São Paulo: RT, 1993, p. 176.

33 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 17ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p. 394.

34 Cf. REALE, Miguel. Revogação e anulamento do ato administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 91 e ss.; MEDAUAR, Odete. Ob. cit., p. 171 e ss.

35 Como afirma Celso Antônio Bandeira de Mello, "discricionariedade é liberdade dentro da lei, nos limites da norma legal, e pode ser definida como: ‘A margem de liberdade conferida pela lei ao administrador a fim de que este cumpra o dever de integrar com sua vontade ou juízo a norma jurídica, diante do caso concreto, segundo critérios subjetivos próprios, a fim de dar satisfação aos objetivos consagrados no sistema legal’" (ob. cit., p. 396).

36 Ob. cit., p. 400.

37 Como precisamente ensina Manoel de Oliveira Franco Sobrinho, "a questão está em saber onde começa o poder para a prática de atos discricionários e onde termina, porque esta é uma questão jurídica e não de simples apreciação administrativa, já que fora dos limites permitidos o ato praticado adquire flagrante ilicitude" (Atos administrativos. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 113). E conclui o administrativista, dizendo que "no melhor entender, figurada a relação entre causa e finalidade, o abuso da potestade discricionária ‘equivale a uma extralimitação’, devendo a Administração, para que o ato seja lícito, respeitar as limitações externas diante da finalidade e as internas que se impõem no regime de competência" (ob. loc. cit.).

38 "Esta esfera de decisão legítima compreende apenas e tão-somente o campo dentro do qual ninguém poderá dizer com indisputável objetividade qual é a providência ótima, pois mais de uma seria igualmente defensável. Fora daí não há discrição" (MELLO, Celso Antônio Bandeira. Ob. cit., p. 400).

39 A propósito, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que, embora legal determinada punição disciplinar, poderia ela ser examinada pelo Judiciário quando violasse normas de edital da própria Administração Pública:

"ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. LICITAÇÃO PÚBLICA PARA EXPLORAÇÃO DO SERVIÇO DE TRANSPORTE PÚBLICO ALTERNATIVO DO DISTRITO FEDERAL. MOTORISTA AUXILIAR. AUSÊNCIA DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO COM A ADMINISTRAÇÃO. PUNIÇÃO DISCIPLINAR. INIDONEIDADE PARA LICITAR E CONTRATAR COM O DISTRITO FEDERAL AFASTADA PARA GARANTIR A PARTICIPAÇÃO EM OUTROS PROCEDIMENTOS LICITATÓRIOS DO MESMO GÊNERO. ATUAÇÃO LEGÍTIMA DO PODER JUDICIÁRIO. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.

(...) omissis

2. Recurso especial interposto pelo Distrito Federal alegando afronta aos artigos 3º e 41 da Lei 8666 sob o fundamento de que o acórdão invadiu o mérito administrativo, anulando punição que obedeceu aos princípios constitucionais da ampla defesa, contraditório e da vinculação ao Edital pela Administração Pública.

3. Merece desprovimento a irresignação recursal em face de que o acórdão realmente não poderia ter anulado a cláusula editalícia, como afirma o recorrente, já que a mesma não estava eivada de vício. Na verdade, a Administração diversamente do que diz, é que não cumpriu a norma do edital, desrespeitando, destarte, o princípio da legalidade ao qual encontra-se adstrita, e nesse patamar, não se apresenta invasora a atuação do Judiciário. Tampouco, prospera a tese de invasão do mérito administrativo pelo acórdão reclamado. O administrador, sob o pálio da discricionariedade, proferiu decisão punitiva disciplinar que, mesmo legal, afigura-se despida de legitimidade. In casu, o acórdão fez valer a norma do edital. Vale salientar, ainda, que mérito significa uso correto da discricionariedade, ou seja, a integração administrativa. Com observância do limite do legal e o limite do legítimo, o ato tem mérito. Caso contrário, não tem mérito e deixa de ser discricionário para ser arbitrário e, assim, sujeito ao controle judicial.

(...) omissis" (STJ, 1ª Turma. REsp n.647.417/DF. Rel. Min. José Delgado. DJU 21.02.2005, p. 114).

40 Embora, neste caso, sequer se possa falar em discricionariedade, já que se está diante de atividade vinculada (aos princípios), como bem alerta Daniele Coutinho Talamini (Revogação do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 74/76).

41 A respeito do abuso de direito como causa de invalidação do ato administrativo pelo Poder Judiciário, ainda quando se trate de ato discricionário, v. MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Ob. cit., p. 426 e ss.; FRANCO SOBRINHO, Manoel de Oliveira. Ob. cit., p. 110. V., tb., nesse sentido, o voto de Seabra Fagundes, em acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, em 1948 (RDA 14/52).

42 V. a respeito, CANOTILHO, J. J. Gomes. "Metodologia ‘fuzzy’ e ‘camaleões normativos’ na problemática actual dos direitos economicos, sociais e culturais" in Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra, 2004, p. 107 e ss.

43 "Para além disso, colhe-se o ensejo de referir decisão da Corte Constitucional Federal da Alemanha, que, desde o paradigmático caso numerus clausus, versando sobre o direito de acesso ao ensino superior, firmou jurisprudência no sentido de que a prestação reclamada deve corresponder ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, mesmo em dispondo o Estado dos recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável" (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 282/283).

44 Cf. KRELL, Andreas. "Controle judicial dos serviços públicos na base dos direitos fundamentais sociais". A constituição concretizada – construindo pontes entre o público e o privado. Org. Ingo Wolfgang Sarlet. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 41

45 A respeito, v. MORO, Sérgio Fernando. "Por uma revisão da teoria da aplicabilidade das normas constitucionais". www.cjf.gov.br/revista/numero10/artigo13.htm, acessado em 5 de abril de 2005.

46 V., a respeito, CANOTILHO, J. J. Gomes. "Metodologia ‘fuzzy’ e ‘camaleões normativos’ na problemática actual dos direitos económicos, sociais e culturais", ob. cit., p. 109.

47 Idem, ibidem, p. 110.

48 Cf. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. 3ª ed. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 494.

49 Idem, ibidem, p. 495.

50 Idem, ibidem, p. 495.

51 Idem, ibidem, p. 496.

52 A ementa da decisão vem assim posta: "ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA "RESERVA DO POSSÍVEL". NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO "MÍNIMO EXISTENCIAL". VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO)". Embora a decisão final tenha sido no sentido de considerar prejudicado o pedido – diante da implementação da política por lei posterior – o teor da decisão merece referência, diante de sua sintonia perfeita com a tese defendida no texto.

53 HOBBES, Thomas. Diálogo entre um filósofo e um jurista. Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2001, p. 44.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARENHART, Sergio Cruz. As ações coletivas e o controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 777, 19 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7177. Acesso em: 25 abr. 2024.