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Alíquota mínima do ISSQN

roteiro de medidas jurídicas para combate à guerra fiscal entre Municípios

Alíquota mínima do ISSQN: roteiro de medidas jurídicas para combate à guerra fiscal entre Municípios

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I-CONTEXTO FÁTICO

            Apesar dos esforços para reduzir a guerra fiscal, diversos Municípios de grande porte, sobretudo os Municípios-Capitais, têm convivido com a concorrência predatória de Municípios vizinhos, os quais buscam atrair empresas pelo atalho ilegal da renúncia fiscal abaixo da alíquota mínima estabelecida na Constituição de 1988 (EC 37/02).


II-CONSIDERAÇÕES JURÍDICAS

            É notório que a Emenda Constitucional nº 37/02 [01] teve como principal objetivo evitar, ou melhor, coibir a "guerra fiscal" entre os Municípios da Federação no que tange ao ISSQN. Este preceito decorre principalmente do disposto no inciso II do art. 3º abaixo transcrito, ao acrescer o art. 88 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias:

            EC nº 37/02

            Art. 3º O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a vigorar acrescido dos seguintes arts. 84, 85, 86, 87 e 88:

            Art. 88. Enquanto lei complementar não disciplinar o disposto nos incisos I e III do § 3º do art. 156 da Constituição Federal, o imposto a que se refere o inciso III do caput do mesmo artigo:

            I – terá alíquota mínima de dois por cento, exceto para os serviços a que se referem os itens 32, 33 e 34 da Lista de Serviços anexa ao Decreto-Lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968;

            II – não será objeto de concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais, que resulte, direta ou indiretamente, na redução da alíquota mínima estabelecida no inciso I.

            Portanto, diante da prática de renúncia fiscal abaixo da alíquota mínima, caracteriza-se manifesta afronta ao espírito da EC nº 37/02 e aos princípios federativo e da igualdade, ao ensejar desigualdade tributária às empresas prestadoras de serviços e colocar em xeque a harmonia da Federação.

            Isto posto, caso constatada renúncia fiscal em Município que oferece concorrência direta ao Município interessado, vislumbro a possibilidade de adoção das seguintes medidas, a serem submetidas ao crivo de iniciativa do Sr. Prefeito:

            1)Representação junto ao Ministério Público Estadual e ao Tribunal de Contas Estadual, para a determinação dos ulteriores providências cabíveis, com base no art. 1º, XIV, do Deceto-lei nº 201/67, que, dispondo sobre a responsabilidade dos Prefeitos e Vereadores, assim determina:

            Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:

            (...)

            XIV – Negar execução a lei federal, estadual ou municipal, ou deixar de cumprir ordem judicial, sem dar o motivo da recusa ou impossibilidade, por escrito, à autoridade competente;

            (...)

            § 1º Os crimes definidos neste artigo são de ação pública, punidos os dos itens I e II, com a pena de reclusão, de dois a doze anos, e os demais, com a pena de detenção, de três meses a três anos.

            Afigura-se aplicável o dispositivo à medida que a Constituição é norma de hierarquia superior e tem força normativa superior às leis ordinárias e complementares federais ou estaduais.

            2)Representação junto ao Ministério Público Estadual e ao Tribunal de Contas Estadual, para que sejam realizadas as diligências cabíveis no sentido de verificar concretamente a patente renúncia de receita advinda do descumprimento da Constituição Federal, à luz do art. 14 da Lei Complementar nº 101/2000, que trata da responsabilidade na gestão fiscal, verbis:

            Art. 14 A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receta deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições:

            I – demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;

            II – estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.

            § 1º A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.

            § 2º Se o ato de concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de que trata o caput deste artigo decorrer da condição contida no inciso II, o benefício só entrará em vigor quando implementadas as medidas referidas no mencionado inciso.

            § 3º O disposto neste artigo não se aplica:

            I – às alterações das alíquotas dos impostos previstos nos incisos I, II, IV e V do art.153 da Constituição, na forma do seu § 1º;

            II – ao cancelamento de débito cujo montante seja inferior ao dos respectivos custos de cobrança.

            3)Representação junto ao Ministério Público Estadual e ao Tribunal de Contas Estadual, para que: I) sejam realizadas as diligências no sentido de apurar a prática de ato de improbidade administrativa causadora de lesão ao erário público e II) seja proposta a ação cabível, uma vez que o fato de Município renunciante praticar alíquota inferior ao mínimo legal, além de afrontar a Constituição, enseja perda de arrecadação, arrostando os ditames da Lei nº 8.429/92, art. 10, verbis:

            Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1° da lei, e notadamente:

            VII – conceder benefício administrativo ou fiscal sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie;

            (...)

            X – agir negligentemente na arrecadação de tributo ou renda, bem como no que diz respeito à conservação do patrimônio público;

            4)Propositura, pelo Município prejudicado, de Ação Cominatória prevista no artigo 461 do Código de Processo Civil que teria por objeto o cumprimento pelo Município renunciante de obrigação de não-fazer, para abster-se de praticar alíquota inferior ao mínimo estabelecido pela Constituição Federal (sob pena de multa diária calculada no valor do prejuízo diário suportado pelo Município prejudicado), de forma a deixar de causar prejuízos financeiros e econômicos, bem como indiscutível desarmonia entre os entes da federação envolvidos, diante da clara guerra fiscal estabelecida.

            Nesse caso, o interesse de agir do Município prejudicado deverá ser demonstrado pela apresentação em Juízo de elementos econômicos ou financeiros concretos que apontem a perda de arrecadação atual ou futura, em razão da instalação de empresas que se deslocaram ou pretendem se deslocar para o Município renunciante.

            5)Representação ao Ministério Público Estadual, mais especificamente dirigida ao Procurador-Geral de Justiça que funciona junto do Tribunal de Justiça, tribunal competente para conhecer de representação [02], a fim de que, restando a mesma provida, possa ser decretada intervenção no Município renunciante até que este execute os comandos da Emenda Constitucional 37/02, tudo com base no disposto no art.35, IV, da Constituição Federal, verbis:

            Art. 35. O Estado não intervirá em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em Território Federal, exceto quando:

            (...)

            IV – o Tribunal de Justiça der provimento a representação para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição Estadual, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial.

            Deve ser ressaltada a impossibilidade da diminuição da alíquota pretendida pelo Município renunciante, uma vez que o comando constitucional veda expressamente qualquer medida nesse sentido.

            6) Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).

            Esta medida, atualmente disponível após a regulamentação do art. 103 da Constituição de 1988, parece ser o instrumento mais contundente para coibir a atuação inconstitucional do Município que pratica alíquota inferior a 2% (dois porcento) ou que conceda benefício ou incentivo fiscal ou financeiro que favoreça contribuintes com uma carga tributária de ISSQN inferior aos 2% preceituados pelo art. 88, I e II do ADCT da Constituição de 1988.

            Não sendo possível o controle direto de inconstitucionalidade de lei municipal, cabe a ADPF em caráter subsidiário, nos termos estabelecidos pela Lei Federal 9.882/99 [03] e pela Jurisprudência do STF.

            Para que seja proposta a ADPF, sugere-se representação ao Partido Político ao qual pertença o Prefeito do Município prejudicado, ou ao Procurador-Geral da República, uma vez que só estão legitimados a promovê-la aqueles que o são para a propositura das Ações Direta de Inconstitucionalidade (vide art. 2o da Lei 9.868/99) [04].

            Os efeitos da ADPF são imediatos, desde que requerida e concedida medida liminar para suspender os efeitos da lei ou ato administrativo que importe em violação da norma constitucional referida.

            Cabe lembrar, para fins de fundamentação da ADPF, que a norma contida no art. 88 do ADCT visa a evitar a guerra fiscal e a preservar o federalismo fiscal brasileiro. A guerra fiscal predatória entre municípios corrói a base econômica de tributação de serviços (ISSQN) e a própria arrecadação dos entes locais (capacidade e autonomia financeiras), pois movida por motivos políticos casuísticos. Assim, a norma violada (art. 88 do ADCT) é preceito fundamental, pois instrumentaliza, em sede constitucional, a cláusula pétrea da forma federativa de estado, insculpida no inciso I, do parágrafo 4o do art. 60 da Constituição de 1988.


NOTAS

            01 Publicada no DOU em 13.06.2002

            02 Tal competência para o conhecimento da representação existe tanto na intervenção promovida pelo Estado como na promovida pela União, segundo o ilustre professor José Afonso da Silva (in "Curso de Direito Constitucional Positivo", 22ª ed., Malheiros, São Paulo, p. 488).

            3 Art. 1o A argüição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.

            Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental:

            I - quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição;

            II – (VETADO)

            Art. 2o Podem propor argüição de descumprimento de preceito fundamental:

            I - os legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade;

            04 Art. 2o Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade:

            I - o Presidente da República;

            II - a Mesa do Senado Federal;

            III - a Mesa da Câmara dos Deputados;

            IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou a Mesa da Câmara Legislativa do Distrito Federal;

            V - o Governador de Estado ou o Governador do Distrito Federal;

            VI - o Procurador-Geral da República;

            VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;

            VIII - partido político com representação no Congresso Nacional;

            IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.


Autor


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Ricardo Almeida Ribeiro da. Alíquota mínima do ISSQN: roteiro de medidas jurídicas para combate à guerra fiscal entre Municípios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 801, 12 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7263. Acesso em: 23 abr. 2024.