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Juizado Especial Cível e o estado democrático de direito

Juizado Especial Cível e o estado democrático de direito

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Sumário:1. INTRODUÇÃO. 2. PROCESSO E PROCEDIMENTO.3. OS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS NO BRASIL – UMA CONCEPÇÃO INSTRUMENTAL DE PROCESSO. 4. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. NOTAS


1.INTRODUÇÃO

            A discussão sobre a efetividade processual e o acesso à justiça tem sido tema de grandes debates nos tempos atuais. Foi justamente dentro da preocupação com o irrestrito acesso à justiça que surgiu a idéia de criação dos Juizados Especiais. Tratam-se de tribunais especiais destinados às pessoas comuns para garantir direitos de baixo caráter econômico; uma instituição que se insere na tentativa de superar, ou de apenas atenuar, os obstáculos opostos ao pleno e igual acesso de todos à justiça, tais como as custas processuais em causas de pequeno valor monetário, onde as mesmas podem ser mais altas que o valor da causa, bem como a demora para um processo que passa pelo procedimento ordinário.

            Esses tribunais possuem uma tendência de cunho essencialmente instrumentalista, tornando o processo um instrumento célere e eficiente à realização do direito material, atribuindo-lhe escopos sociais, jurídicos e sociológicos e colocando a jurisdição como atividade preponderante em detrimento do processo e das garantias constitucionais do contraditório, ampla defesa e isonomia.

            A pretensão que temos é obter uma análise do Juizado Especial Cível como forma de acesso à justiça no Estado Democrático de Direito, entendendo que o importante não é apenas a busca pela celeridade processual, mas, além disso, um processo em contraditório que proporcione aos seus interessados uma participação efetiva na preparação do provimento final.

            A busca pelo amplo e irrestrito "acesso à justiça", no Estado Democrático de Direito, deve ser analisada pela qualidade e legitimidade das decisões judiciais. Assim,

            não basta transformar as pretensões conflitantes em pretensões jurídicas e decidi-las obrigatoriamente perante o tribunal pelo caminho da ação. Para preencher a função socialmente integradora da ordem jurídica e da pretensão de legitimidade do direito, os juízos emitidos têm que satisfazer simultaneamente às condições de aceitabilidade racional e da decisão consistente. [...] De um lado, o princípio da segurança jurídica exige decisões tomadas conscientemente, no quadro da ordem jurídica estabelecida. [...] De outro lado, a pretensão à legitimidade da ordem jurídica implica decisões, as quais não podem limitar-se a concordar com o tratamento de casos semelhantes no passado e com o sistema jurídico vigente, pois devem ser fundamentadas racionalmente, a fim de que possam ser aceitas como decisões racionais pelos membros do direito (HABERMAS, 1997, apud SOARES, 2004, p. 126).

            O acesso à justiça, no Estado Democrático de Direito, não pode se reduzir apenas ao direito à uma decisão justa. Ele se concretiza na medida em que as decisões são legitimadas pelo procedimento em contraditório, com a participação dos interessados em simétrica paridade. E somente nesta hipótese podemos falar em decisão justa, haja visto que terão sido os próprios destinatários da decisão que a terão construído, através do debate em contraditório obtido no curso do processo.

            É dentro dessa perspectiva que se pretende aqui analisar o Juizado Especial Cível como forma de "acesso à justiça".


2. PROCESSO E PROCEDIMENTO

            O Direito Processual, como ramo autônomo do direito, possui seu próprio campo de investigação, com conceitos apenas a ele inerentes. Tais conceitos devem ser sempre revisados, de modo que suas teorias estejam sendo ajustadas ao novo quadro do direito positivo contemporâneo. Gonçalves explica a importância da renovação de conceitos dentro do direito processual:

            No momento em que uma ciência renuncia a continuar investigando seu objeto e as complexas relações a que pode ser submetido pela análise, terá renunciado, antes, a si própria, como competência explicativa da realidade, quando clarificar a realidade que elege como seu domínio de trabalho é, inegavelmente, a missão social comum de qualquer ciência. A retomada de exame de alguns conceitos já considerados seguramente estabelecidos no Direito Processual pode comportar certas surpresas. A importância crescente que os institutos de Direito Processual adquiriram na época contemporânea não chegou, ainda, ao ápice de seu movimento ascendente. Não obstante, a doutrina do Direito Processual não resolveu alguns problemas que têm retardado sua marcha e ela não pode negligenciar seu próprio progresso justamente quando as formas de solução de conflitos do mundo atual dela muito esperam (GONÇALVES, 1992, p. 14).

            Há duas correntes distintas a respeito dos conceitos de processo e procedimento. Tal distinção não se limita apenas a tais conceitos, mas acaba por incidir em temas fundamentais do Direito Processual. É a partir dos conceitos adotados sobre processo e procedimento que se estabelece todo um sistema de conceitos de que necessita o Direito Processual para suas construções jurídicas (GONÇALVES, 1992). Os conceitos atribuídos a processo e procedimento incidem diretamente nos modos de se conceber o processo e a finalidade que o mesmo possui.

            Assim, temos na Escola Instrumentalista o critério teleológico como base de diferenciação entre processo e procedimento. Por tal critério, o processo é gênero do qual o procedimento é espécie. O procedimento comparece como técnica que regula o andamento do processo em seqüência lógica e o processo, de natureza teleológica, se caracteriza pela finalidade que possui de ser um instrumento a serviço da jurisdição. Esta é a corrente predominante no direito brasileiro e tem por base a Teoria do Processo como Relação Jurídica, de Oscar Von Bülow, de 1868. Os instrumentalistas defendem que

            O processo, então, pode ser encarado pelo aspecto dos atos que lhe dão corpo e das relações entre eles e igualmente pelo aspecto das relações entre os seus sujeitos. O procedimento é, nesse quadro, apenas o meio extrínseco pelo qual se instaura, desenvolve-se e termina o processo; é a manifestação extrínseca deste, a sua realidade fenomenológica perceptível. A noção de processo é essencialmente teleológica, porque ele se caracteriza por sua finalidade de exercício do poder (no caso, jurisdicional). A noção de procedimento é puramente formal, não passando da coordenação de atos que se sucedem. Conclui-se, portanto, que o procedimento (aspecto formal do processo) é o meio pelo qual a lei estampa os atos e fórmulas da ordem legal do processo. O processo é indispensável à função jurisdicional exercida com vistas ao objetivo de eliminar conflitos e fazer justiça mediante a atuação da vontade concreta da lei. É, por definição, o instrumento através do qual a jurisdição opera (instrumento para a positivação do poder). (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2002, p. 277).

            O outro critério de distinção entre processo e procedimento é encarado sob uma perspectiva lógica e tem por base a Teoria do Processo como Procedimento em Contraditório, de Elio Fazzalari. Aqui o processo não é mais encarado como um mero instrumento da jurisdição. Ao contrário, essa teoria elevou o processo a um nível mais importante que a jurisdição, posto que é apenas por ele que esta última se legitima. O procedimento agora é gênero do qual o processo é espécie; e o elemento distintivo entre os dois é a presença do contraditório. Procedimento passa a ser entendido como toda seqüência de atos cronologicamente encadeados, e processo passa a ser todo o procedimento que possui a presença do contraditório.

            Na ausência do contraditório, temos apenas procedimento, e não processo. E a jurisdição deve estar subordinada ao processo, ou seja, agora ela é apenas uma resultante lógica do contraditório, sendo construída pelas partes; enquanto o processo é a garantia do espaço discursivo das partes, sendo guiado pelo juiz. Nas palavras de Gonçalves:

            Pelo critério lógico, as características do procedimento e do processo não devem ser investigadas em razão de elementos finalísticos, mas devem ser buscadas dentro do próprio sistema jurídico que os disciplina. E o sistema normativo revela que, antes que "distinção", há entre ele uma relação de inclusão, porque o processo é uma espécie do gênero procedimento, e, se pode ser dele separado é por uma diferença específica, uma propriedade que possui e que o torna, então distinto, na mesma escala em que pode haver distinção entre gênero e espécie. A diferença específica entre o procedimento em geral, que pode ou não se desenvolver como processo, e o procedimento que é processo, é a presença neste do elemento que o especifica: o contraditório. O processo é um procedimento, mas não qualquer procedimento; é o procedimento de que participam aqueles que são interessados no ato final, de caráter imperativo, por ele preparado, mas não apenas participam; participam de uma forma especial, em contraditório entre eles, porque seus interesses em relação ao ato final são opostos (GONÇALVES, 1992, p. 68).

            Os instrumentalistas não negam a essencialidade da garantia constitucional do contraditório dentro de um processo. Entretanto, eles defendem que o contraditório não anula a idéia de processo como relação jurídica. Vejamos:

            Na realidade, a presença da relação-jurídico processual no processo é a projeção jurídica e instrumentação técnica da exigência político constitucional do contraditório. Terem as partes poderes e faculdades no processo, ao lado de deveres, ônus e sujeição, significa, de um lado, estarem envolvidas numa relação jurídica; de outro, significa que o processo é realizado em contraditório. Não há qualquer incompatibilidade entre essas duas facetas da mesma realidade. (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2002, p. 285).

            Note que a idéia de processo como relação jurídica traz consigo uma relação de subordinação entre os sujeitos do processo. Diante desta teoria, o processo é encarado como um vínculo entre sujeitos, onde uma das partes possui a faculdade de exigir determinada prestação da outra parte (direito subjetivo abstrato). Na verdade, é o Estado quem atua em caráter substitutivo da parte para exigir determinada prestação da outra parte. E é somente através da participação das partes em contraditório que se saberá se a parte que se diz titular de determinado direito realmente o é, através do que ficar provado no curso processual. Para isso, elas (as partes) necessitam de um debate, que só é possível mediante a aplicabilidade do princípio do contraditório. As partes estarão então sujeitas apenas à decisão que elas mesmas formaram através do debate. A idéia de sujeição, inerente à teoria da relação jurídica, desqualifica o processo como espaço discursivo das partes, com a garantia de efetiva participação na decisão.

            A identificação do processo como estrutura normativa, como procedimento realizado em contraditório entre as partes, supera a concepção de processo como relação jurídica. O contraditório é oportunidade de participação paritária, é garantia de simétrica igualdade de participação dos destinatários do provimento na fase procedimental de sua preparação. A possibilidade assegurada de participação em simétrica igualdade não se concilia com vínculo de sujeição. Os conceitos de garantia e de sujeição vêm de esquemas teóricos distintos, de momentos sociais distintos, de concepções distintas. Pela evolução do conceito de contraditório, a categoria da relação jurídica processual já não é logicamente admitida. Perante o contraditório, não se pode falar em relação de sujeição ou de subordinação; as partes se sujeitam ao provimento, ao ato final do processo, de cuja preparação participam, e não ao juiz. A categoria da relação jurídica já não é própria para a concepção de processo centrada na garantia do contraditório, porque não é com ela compatível: ou existem vínculos de sujeição ou existe liberdade garantida de participação (GONÇALVES, 1992, p. 193).

            Quando adotamos a concepção de processo como procedimento realizado em contraditório entre as partes, todos os escopos atribuídos ao processo devem ser novamente refletidos. Portanto, processo e procedimento se distinguem, para Cattoni de Oliveira, com o qual concordamos, da seguinte maneira:

            Visando à preparação do provimento, o procedimento possui sua específica estrutura constituída da seqüência de normas, atos, situações jurídicas e posições subjetivas, em uma determinada conexão, em que o cumprimento de uma norma da seqüência é pressuposto da incidência de outra norma e da validade do ato nela previsto. O processo caracteriza-se como uma espécie de procedimento pela participação na atividade de preparação do provimento dos interessados, juntamente com o autor do próprio provimento, como no caso do processo jurisdicional. [...] Mas essa participação se dá de uma forma específica, dá-se em contraditório. Contraditório, mais que a simples garantia do dizer e contradizer, é garantia de participação em simétrica paridade. Portanto, haverá processo sempre que houver o procedimento realizado em contraditório entre os interessados, e a essência deste está justamente na simétrica paridade de participação, nos atos que preparam o provimento, daqueles que nele são interessados porque, como seus destinatários, sofrerão seus efeitos (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001a, p. 194).

            O princípio do contraditório não se resume ao "dizer e contradizer" acerca do direito que está sendo discutido, não implica apenas em bilateralidade de audiência. Ele se constitui de igualdade de oportunidade no processo e implica na ciência dos atos processuais. Implica ainda em garantia de defesa e de igualdade formal, em meios processuais dirigidos a que as partes façam valer suas próprias razões (NUNES, 2004).

            Nunes (2004, p. 53) explica que o contraditório implica nos seguintes direitos das partes:

            1)Direito a uma cientificação regular durante todo o procedimento;

            2)O direito à prova, possibilitando-lhe sua obtenção toda vez que essa for relevante;

            3)Em decorrência do anterior, o direito de assistir pessoalmente a assunção da prova e de se contrapor a alegações de fatos ou atividades probatórias da parte contrária ou mesmo oficiosas do julgador;

            4)O direito de ser ouvido e julgado por um juiz imune à ciência privada, que decida a causa unicamente com base em provas e elementos adquiridos no debate contraditório.

            Um ponto a ser observado na da Teoria de Fazzalari, do processo como procedimento em contraditório, é que na época ele não se preocupou em consagrar o contraditório como um direito constitucionalmente garantido às partes em um processo jurisdicional. Assim observa Leal:

            O que seria de anotar na teoria fazzalariana do Processo, ponto fulgurante, neste século, do estudo do Direito Processual, é que Fazzalari, ao distinguir Processo e procedimento pelo atributo do contraditório, conferindo, portanto, ao procedimento realizado pela oportunidade de contraditório a qualidade de Processo, não fê-lo originariamente pela reflexão constitucional do direito-garantia. Sabe-se que hoje, em face do discurso jurídico-constitucional das democracias, o contraditório é instituto do Direito Constitucional e não mais uma qualidade que devesse ser incorporada por parâmetros doutrinais ou fenomênicos ao procedimento pela atividade jurisdicional. É o contraditório conquista histórica juridicamente constitucionalizada em direito-garantia que se impõe como instituto legitimador da atividade jurisdicional no Processo (LEAL, 1999, p. 81).

            É, portanto, o contraditório, um princípio institutivo do processo dentro do direito brasileiro. A CRFB/88, art. 5º, LV, assegura aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

            Diante do norte constitucional dado, em se tratando de procedimentos administrativos ou judiciais, qualquer forma de processo a ser adotado em nosso ordenamento jurídico, seja ele com um procedimento mais burocrático e demorado, ou mais informal e célere, deve respeitar o princípio do contraditório, sob pena de ver nula sua decisão por não ter respeitado dispositivo constitucional. Qualquer norma infraconstitucional que venha regular matéria de processo deve respeitar o princípio do contraditório, em toda a sua plenitude.

            A finalidade do processo, nesta perspectiva, e diante do Estado Democrático de Direito, não é mais apenas a realização do direito material mediante o exercício jurisdicional, mas é que a jurisdição se forme dentro de uma estrutura normativa que garanta a participação dos destinatários da sentença, em contraditório.

            E uma vez que a participação das partes em contraditório, com todos e direitos e garantias a ele inerentes, não ocorrer para a formação da decisão, concluímos que houve apenas mero procedimento, e não processo.


3. OS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS NO BRASIL – UMA CONCEPÇÃO INSTRUMENTAL DE PROCESSO

            O Brasil, com base naquelas idéias do Estado Social de Direito e na concepção teleológica de processo, adota os Juizados Especiais Cíveis para resolver os conflitos referentes à causas de pequeno valor. Estes Juizados possuem o desafio de criar foros atraentes para os indivíduos, não apenas do ponto de vista econômico, mas também físico e psicológico, de modo que eles se sintam à vontade para utilizá-los. Eles correspondem a um esforço criativo, abrangente e multifacetado para reestruturar a máquina judiciária envolvida com essas pequenas causas (SOARES, 2003).

            No Brasil, a Lei dos Juizados de Pequenas Causas (Lei 7.244/84) foi aprovada em novembro de 1984, tendo sido a experiência reconhecida em sede constitucional, em norma constitucional de eficácia limitada (art. 98, I, CRFB). Em setembro de 1995 foi promulgada a Lei 9.099, que revogou a antiga Lei 7.244/84.

            Os princípios mais importantes que regem tais juizados são a oralidade, a simplicidade, a informalidade, a celeridade processual, a dispensa de advogado para aquelas causas inferiores a vinte salários mínimos, a reparação do dano, a eficiência da prestação jurisdicional e a supressão de recursos, sendo admitido apenas recurso inominado a uma turma recursal formada por três juízes de primeiro grau de jurisdição do próprio Juizado, ou recurso extraordinário ao STF, em casos de flagrante agressão à norma constitucional.

            Assim, os Juizados Especiais devem promover a acessibilidade geral ao Poder Judiciário, reduzindo os custos da demanda e a duração do litígio. Com eles, aquela parte da população que é carente de recursos passa a ter a possibilidade de litigar sem os ônus processuais tão comuns no procedimento ordinário. Eles também visam a equalização das partes, tornando o juiz mais ativo e informal no decorrer do processo, com consciência ética e de justiça, permitindo a simplificação da produção de provas e limitando a possibilidade de recursos.

            Trazem ainda consigo a idéia de alteração no estilo de tomada de decisão, o que enfatiza a conciliação como sua principal característica. Há a possibilidade de se promover acordo entre partes de uma forma rápida e informal. Quando acontece a conciliação, o Juizado desempenha brilhantemente seu papel de "facilitador" do "acesso à justiça". Entretanto, é pequena a quantidade de ações decididas no Juizado Especial Cível mediante o instituto da conciliação [01]. E o problema ocorre exatamente quando não há acordo. Aquelas ações que não são resolvidas desta forma são submetidas ao procedimento do Juizado Especial, que limita a oportunidade de defesa com a supressão de provas e recursos.

            Se a maioria das demandas do Juizado não se resolve mediante acordo, isso significa que a maioria das decisões deste tribunal especializado é construída de forma autoritária, haja visto que no procedimento ali adotado não há a presença do contraditório, sendo o mesmo caracterizado pela limitação da possibilidade de defesa, com a dispensabilidade de advogado, meios de prova e recursos a ela inerentes

            O acesso à justiça, nessa linha instrumentalista, é encarado como acesso à ordem jurídica justa, ou seja, à plena satisfação do direito material. Essa concepção torna o processo um mero instrumento para a realização do direito material. Aqui, a jurisdição se torna uma atividade preponderante em detrimento do processo e das garantias constitucionais do contraditório, ampla defesa e isonomia (SOARES, 2003).

            Os Juizados foram desenvolvidos dentro da preocupação de muitos em acelerar o andamento processual.

            A preocupação com o rápido andamento do processo, com a superação do estigma da morosidade da Justiça que prejudica o próprio direito de acesso ao Judiciário, porque esse direito é também o direito à resposta do Estado ao jurisdicionado, é compartilhada hoje por toda a doutrina do Direito Processual Civil. As propostas de novas categorias e de novas vias que abreviem o momento da decisão são particularmente voltadas para a economia e a celeridade como predicados essenciais da decisão justa. Sobretudo quando a natureza dos interesses em jogo exige que os ritos sejam simplificados. Contudo, a economia e a celeridade do processo não são incompatíveis com as garantias das partes, e a garantia constitucional do contraditório não permite que seja ele violado em nome do rápido andamento do processo. A decisão não se qualifica como justa apenas pelo critério da rapidez, e se a justiça não se apresentar no processo não poderá se apresentar, também, na sentença (GONÇALVES, 1992, p. 125).

            Vemos então que nos Juizados Especiais Cíveis temos apenas mero procedimento, haja visto que o instituto tem suprimida a garantia do contraditório (limitação da possibilidade de defesa, com a dispensabilidade de advogado, meios de prova e recursos a ela inerentes) e que ele foi criado dentro de uma concepção teleológica de processo e procedimento. Aqui não se busca uma decisão construída pelas partes (salvo quando ocorre a conciliação), mas sim uma decisão célere, com um procedimento simples, de modo a retirar das partes, muitas das vezes, mecanismos essenciais para que provem o direito a que pretendem.

            Quando Cappelletti traz a idéia de se criar um tribunal especial para causas de pequeno valor, ele visa as condições financeira e social dos litigantes. Pretende-se criar um processo mais célere, simples e barato. Entretanto, deve ser analisado que essa busca excessiva pela celeridade processual não pode implicar na supressão daqueles mecanismos de que as partes dispõem para exercer plenamente sua defesa e provarem o que alegam.

            Por mais que a celeridade processual seja almejada, ela não se justifica quando implica em retirar garantias essenciais do processo. Não se deve fazer ponderações de valores para resolver o problema da morosidade da Justiça, como ocorre nos Juizados Especiais, que limita o princípio do contraditório a fim de garantir a celeridade. O processo, no Estado Democrático de Direito, é regido pelo discurso, ou seja, pela participação dos destinatários de uma decisão em sua formação. De que adianta uma decisão rápida, se a mesma não foi construída pelos próprios litigantes? Ora, o processo, no Estado Democrático de Direito, é um pressuposto de legitimidade decisória. Se a efetiva participação dos litigantes em contraditório está sendo limitada, não está havendo processo e a decisão não é dotada de legitimidade, devendo ser considerada nula.

            Não se pode buscar a simplicidade e eficácia processuais com sacrifício das garantias fundamentais do processo, com procura de sistema jurídico menos opressivo e menos gravoso economicamente. Os princípios constitucionais efetivam-se através de uma justiça menos gravosa, mas sem esquecer custo e qualidade. O juiz, como órgão terminal de apreciação da Constituição, deve ser objetivo e claro em garantir os direitos fundamentais, como pressuposto de qualquer outro direito ou interesse individual ou coletivo, nos termos dos procedimentos consagrados. [...] A gênese, os métodos de elaboração e os objetivos do processo constitucional ocorrem dentro das coordenadas constitucionais, através da fundamentação e determinação de seus pressupostos e da definição da Jurisdição Constitucional, que procura ampliar as possibilidades de efetivação dos direitos fundamentais em sua plenitude, sem qualquer restrição de ordem econômica ou social, bem como do direito de defesa (BARACHO, 1999, p. 97-98).

            É, dessa forma, o processo, enquanto procedimento em contraditório, o único capaz de legitimar o provimento jurisdicional; sendo absolutamente incabível a redução das garantias constitucionais que as partes possuem em um processo em nome da simplicidade oi celeridade processual.


4. CONCLUSÃO

            Vimos que o Juizado Especial surge quando o Estado passa a se preocupar com a aptidão dos indivíduos em reconhecer seus direitos e defendê-los de forma adequada, trazendo consigo as idéias consagradas no Estado Social. As condições econômica e social dos litigantes têm aqui importância maior que a segurança jurídica que é proporcionada pelos princípios constitucionais do processo.

            Essa facilidade em ajuizar ações mediante procedimento simples e informal contribuiu consideravelmente para o sucesso dos Juizados, especialmente entre a população mais carente, que até pouco tempo se via excluída do acesso à justiça por não possuir condições de arcar com as despesas de um processo sem prejuízo de seu próprio sustento e de sua família (SOARES, 2003). Entretanto, a idéia de simplificar o processo de maneira a retirar dele os elementos essenciais de garantia de participação das partes em simétrica paridade na busca de uma suposta efetividade processual caracteriza o Estado do Bem-Estar Social e já não é mais compatível com o direito democrático contemporâneo.

            A finalidade do processo, no Estado Democrático de Direito, não é proporcionar igualdade para os iguais e desigualdade para os desiguais, assim como também não é proporcionar tão somente a realização do direito material. Pensar de tal forma significa regredir aos ideais dos modelos de Estado Liberal e Estado Social de Direito. A finalidade do processo hoje é proporcionar a efetiva participação dos interessados na construção do provimento final, de forma que eles se sintam co-autores do mesmo.

            Assim, a decisão será fundamentada naquilo que foi discutido e provado no processo, e não com base na consciência ética ou no senso de justiça do julgador, que são também características dos modelos de Estado Liberal e Social de Direito.

            O grande problema da época contemporânea já não é o da convicção ideológica, das preferências pessoais, das convicções íntimas do juiz. É o de que os destinatários do provimento, do ato imperativo do Estado que, no processo jurisdicional, é manifestado pela sentença, possam participar de sua formação, com as mesmas garantias, em simétrica igualdade, podendo compreender por que, como, por que forma, em que limites o Estado atua para resguardar e tutelar direitos, para negar pretensos direitos e para impor condenações (GONÇALVES, 1992, p. 195, n. 17).

            Não cabe ao julgador suprir as deficiências da lei e fazer justiça ao caso concreto, como defendem os instrumentalistas adeptos ao procedimento especial que o Juizado adota. A jurisdição, no Estado Democrático de Direito, não pode estar subordinada à discricionariedade do juiz, consoante aquilo que ele julga ser justo. A função do juiz no processo nada mais é do que observar a aplicação das regras e dos princípios que regem o processo, fazer valer o princípio do contraditório, a garantia de participação das partes em igualdade de oportunidades, e fundamentar sua decisão com base na lei (Princípio da Legalidade), e principalmente naquilo que foi demonstrado pelas partes em debate proporcionado no decorrer do curso processual. "[...] o PROCESSO não busca "decisões justas", mas assegura as partes participarem isonomicamente na construção do provimento, sem que o impreciso e idiossincrático conceito de "justiça" da decisão decorra da clarividência do julgador, de sua ideologia ou magnanimidade" (LEAL, 1999, p. 67).

            O procedimento do Juizado Especial Cível foi fixado em razão do valor do direito material discutido (causas inferiores a quarenta salários mínimos). No Estado Democrático de Direito, a situação do direito material pleiteado não pode ser medida de determinação de como se dará o procedimento. O Estado deve apreciar toda e qualquer lesão ou ameaça de direito, e esta atuação jurisdicional deve estar subordinada à garantia do processo como procedimento em contraditório, como é estabelecido em sede constitucional, independentemente do valor econômico da causa ou das condições sociais dos litigantes.

            A garantia do contraditório deve ser respeitada seja qual for o tipo de causa que está sendo apreciada. A "justiça da decisão", no Estado Democrático de Direito, só pode ser discutida na medida em que a decisão tem por base aquilo que foi alegado e provado no processo, através do exercício do contraditório. Não é mais concebível discutir ideais de justiça a partir das condições das partes e da sensibilidade do julgador diante da lacuna da lei e de determinadas causas especiais.

            Entre o processo e a situação de direito material já não se concebe uma relação de necessidade lógica, e, em conseqüência, a existência dessa situação não é medida de utilidade do processo. Ao judiciário incumbe apreciar lesão ou ameaça a direito, para deferir ou rejeitar as medidas requeridas, e essa função já não se cumpre pelo prévio controle da existência da lesão ou ameaça. Entre o ato de apreciação, o objeto da apreciação e o resultado da apreciação, há diferenças manifestas. [...] O processo, como procedimento realizado em contraditório entre as partes, cumprirá sua finalidade garantindo a emanação de uma sentença participada. Os seus destinatários já não precisam recear pelas preferências ideológicas dos juízes, porque, participando do iter da formação do ato final, terão sua dignidade e sua liberdade reconhecidas e poderão compreender que um direito é assegurado, uma condenação é imposta, ou um pretenso direito é negado não em nome de quaisquer nomes, mas apenas em nome do Direito, construído pela própria sociedade ou que tenha sua existência por ela consentida (GONÇALVES, 1992, p. 197, n. 21, 21.3).

            A concepção de acesso à justiça adotada nos Juizados Especiais busca um sistema que deve ser primeiramente de igual acesso a todos e logo, deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos (CAPPELLETTI, GARTH, 1988). Essa tendência de cunho essencialmente instrumentalista, defendida por juristas como Liebman, Dinamarco, Ada Pellegrini, Araújo Cintra, dentre outros, pretende tornar o processo um instrumento para a realização do direito material, mais célere e eficiente, atribuindo escopos sociais, jurídicos e sociológicos, colocando a jurisdição como atividade preponderante em detrimento do processo e das garantias processuais do contraditório, ampla defesa e isonomia (SOARES, 2003). Aqui são atribuídos escopos metajurídicos ao processo, como se o fim da jurisdição fosse que nela estivessem presentes questões éticas e sociais. Ora, os escopos metajurídicos, ainda que presentes na decisão, não constituem a finalidade da mesma. O juiz não pode invocar fins sociais da lei para justificar sua decisão.

            Os instrumentalistas entendem expressamente que, ‘tratando-se de fenômeno sociológico, a legitimidade manifesta-se na aceitação geral do poder pela população’, numa visão luhmanniana de que, não insurgindo a população ou os interessados contra a decisão, esta seria democraticamente justa e legítima. Na democracia dos instrumentalistas, não haveria decisões confractuais ao atendimento da condicionalidade constitucional democrática, mas poderiam eventualmente ocorrer para se adequarem ao fenômeno sociológico dos escopos metajurídicos" (LEAL, 2002, p. 128).

            Este entendimento não reflete a realidade do discurso democrático. No Estado Democrático de Direito, a jurisdição se legitima por estar subordinada aos princípios que garantem a efetiva participação das partes em sua construção em simétrica paridade (contraditório, ampla defesa, isonomia). Assim, só podemos dizer que houve um efetivo acesso à justiça, no Estado Democrático de Direito, quando a sentença é emanada com base em tudo aquilo que foi discutido através do debate que o contraditório proporciona ao processo.

            O processo, independente de escopos sociais e políticos que lhes são conferidos, só pode legitimar uma decisão quando a mesma é formada em contraditório. E se assim não for, pode ser dito que nem mesmo chegou a haver processo, pois a existência deste pressupõe a do contraditório.

            A problemática do acesso à justiça agora deve ser encarada com base na qualidade e legitimidade da decisão. Um procedimento que inibe o contraditório e os meios de defesa pode causar sérios prejuízos às partes. Deste modo, podemos dizer que o resultado só é justo, no Estado Democrático de Direito, quando ele é formado através da participação de seus interessados em contraditório.

            Vemos, assim, que o procedimento dos Juizados Especiais retira das partes garantias essenciais à sua defesa em nome da celeridade e efetividade processual. A CRFB, ao estabelecer a criação dos Juizados Especiais (art. 98, I), não autoriza a relativização das garantias do contraditório e da ampla defesa. E qualquer norma infraconstitucional que viole o princípio do contraditório é, em nosso ordenamento, inconstitucional.

            Quando se estabelece um procedimento que limita a possibilidade de defesa para as pequenas causas, na verdade, o que ocorre é a negação da importância das mesmas. Não pode mais ser admitido que apenas pelo pequeno valor econômico da causa, ela seja julgada sem a devida aplicação do processo com todas as garantias fundamentais a ele inerentes. "A prevalecer o entendimento de que nos Juizados Especiais é vedada a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (art. 5º, LV, CR/88) em toda a inteireza constitucional, transformam-se os Tribunais Superiores e o STF em Tribunais de Exceção destinados ao julgamento de causas de grande potencial econômico, a critério e arbítrio de seus juízes, com supressão do requisito do juízo natural que é instrumento imprescindível da processualidade nas democracias" (LEAL, 2004, p. 78).

            Em suma, os Juizados Especiais não têm proporcionado um efetivo "acesso à justiça", quando este é encarado em termos qualitativos e na perspectiva de um Estado Democrático de Direito. As decisões proferidas nos referidos tribunais especiais são dadas de forma aristocrática, não sendo permitida a efetiva participação das partes em contraditório.

            A nossa crítica se estabelece no sentido de que não basta a busca pela efetividade e celeridade processuais, mas além disso, um processo em contraditório que proporcione aos seus interessados uma participação efetiva na formação do provimento final.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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            CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002 apud SOARES, Carlos Henrique. A participação do advogado como efetiva garantia do contraditório entre as partes no processo jurisdicional brasileiro. 2003. 170f. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Faculdade Mineira de Direito. Belo Horizonte, 2003.

            SOARES, Carlos Henrique. A participação do advogado como efetiva garantia do contraditório entre as partes no processo jurisdicional brasileiro. 2003. 170f. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Faculdade Mineira de Direito. Belo Horizonte, 2003.

            ______. O advogado e o processo constitucional. Belo Horizonte: Decálogo, 2004. 187p.


NOTAS

            01 Dados referentes aos anos de 2001, 2002 e 2003, fornecidos pelo Fórum da Comarca de Arcos/MG, em realização de pesquisa financiada pelo PROBIC/PUC Minas (vide NEVES, Eliana P. O. – Juizados Especias Cíveis e Acesso à Justiça no paradigma do Estado Democrático de Direito. 81 f. Programa de Bolsas de Iniciação Científica da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Arcos, 2004).


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Carlos Henrique; VIEIRA, José Marcos Rodrigues et al. Juizado Especial Cível e o estado democrático de direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 807, 18 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7287. Acesso em: 24 abr. 2024.