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O prestador de serviço notarial como fornecedor, nos termos do Código do Consumidor

O prestador de serviço notarial como fornecedor, nos termos do Código do Consumidor

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1. Introdução

O Serviço Notarial no Brasil é atividade bem presente na vida de pessoas e empresas. Do nascimento à morte, passando pelos diversos atos e fatos jurídicos sujeitos a registro, tem o indivíduo necessidade de lançar mão desta espécie de serviços que o Estado, por delegação, outorga a determinadas pessoas prestar à sociedade.

Como toda relação intersubjetiva, o serviço cartorial também suscita conflitos que, vez por outra, podem acabar nas barras dos tribunais, como orgão último na resolução de disputas. Da correta categorização do serviço segue-se a precisa aplicação da lei ao caso concreto. Não há quem duvide ser o serviço notarial regulado por legislação sobre registros públicos federal e estadual própria, mesmo porque isto decorre de expressa disposição constitucional e infraconstitucional. Há, contudo, que se considerar a categorização do serviço notarial também como modalidade de relação de consumo, para efeitos de aplicação do Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Pretende o presente artigo fornecer fundamento para a tese de que o Notário, o Oficial de Registro o Tabelião, etc., como prestador do serviço notarial, pode e deve ser enquadrado como fornecedor de serviços, nos precisos termos do art. 3º da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, que cuida da proteção e defesa do consumidor.


2. Fornecedor. Conceito. Elementos.

O Código de Proteção e Defesa do Consumidor, (Lei nº 8.078/90) traz o conceito de fornecedor:

"Art. 3º - Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços."

Destacam-se dois elementos do conceito, a saber, o elemento subjetivo, ou seja, a pessoa a quem se atribui o conceito, e o elemento objetivo, isto é, a qualidade exterior que, associada ao sujeito, distingue-o e o faz classificado como fornecedor.

Quanto ao elemento subjetivo, tem-se a mais ampla faixa de pessoas possíveis reconhecidas pelo Direito, e até mesmo entes que, embora despersonalizados, estejam de fato exercendo as atividades elencadas no caput do artigo. Expressamente o legislador referiu-se à possibilidade de pessoas jurídicas de direito público poderem fazer o papel de fornecedor, donde se conclui obviamente que pode haver relação entre Estado e pessoa física ou jurídica enquadrável como de consumo. Tupinambá Miguel Castro do Nascimento assevera este ponto de vista, expressando que "tanto pode ser fornecedor a pessoa jurídica de direito público como a pessoa jurídica de direito privado, nacional ou estrangeira."(1) Na área do direito público também pode ocorrer a existência de entes despersonalizados, que funcionam como fornecedores, fazendo expressa referência a eles o Código de Defesa do Consumidor no art. 82, III.

O elemento objetivo consiste, resumidamente, na atividade de fornecimento de produtos ou prestação de serviços. A lei é cuidadosa em precisar ambos os conceitos, ao declarar produto como qualquer bem, seja este móvel ou imóvel, ou ainda material ou imaterial. Serviço é pois caracterizado como qualquer atividade remunerada, excetuando-se exclusivamente as de caráter laboral. Se há prestação remunerada como atividade desenvolvida pelo que a apresenta (o que implica em profissionalidade, isto é, não-eventualidade da prestação), exceto em caso de relação entre empregador e empregado, há aí uma relação de consumo, pois nas palavras de Flávio de Queiroz B. Cavalcanti, "a profissionalidade é, portanto, o que determina a incidência jurídica da norma, ao tempo que afasta as demais, v.g., as normas civis." (2)

A ênfase na universalidade é nota dominante deste texto legal: ao definir fornecedor, usa a lei o vocábulo "toda", querendo expressar claramente a totalidade daqueles que caibam nas categorias listadas, sem exceção. No que tange aos produtos e serviços, utiliza-se da palavra "qualquer", que, de outro modo, vem a significar precisamente a mesma coisa, a saber, a totalidade sem exceção de caráter algum, exceto o previsto expressamente no próprio artigo citado.


3. Atividade Notarial. Natureza Jurídica. Atividades.

Traz a Constituição Federal vigente o serviço notarial como espécie de atividade inerente à administração pública, embora seja delegada, exercida em caráter privado:

"Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do poder público."

Esclarece Hely Lopes Meirelles que "a delegação é utilizada para o traspasse da execução de serviços a particulares, mediante regulamentação e controle do Poder Público." (3) Particularizando a atividade cartorial como de caráter privado, não restam dúvidas de que esta consiste num serviço sujeito a remuneração de quem o presta, notadamente um ente particular, cercando-o de uma das características essenciais da atividade de fornecimento de serviços.

Consiste a atividade cartorial no registro de nascimentos, casamentos, óbitos, registro de documentos diversos, de bens imóveis e/ou móveis, entre outros, bem como a expedição de certidões diversas referentes aos seu assentamentos, assim como a abertura e o reconhecimento de firma, etc.


4. O Prestador de Serviço Notarial como fornecedor de serviços

Para caracterizar o prestador de serviço notarial como fornecedor de serviços, nos termos do art. 3º do Código de Proteção e defesa do consumidor, é mister aplicar os elementos do conceito legal à atividade.

Primeiramente, a lei protetora dos hipossuficientes estendeu a todas as pessoas de direito público ou privado a possibilidade de serem enquadradas como fornecedores. O próprio enunciado da lei expurga qualquer possibilidade de exclusão dessa caracterização ao prestador de serviço notarial pelo argumento de ser a atividade parte da administração pública e regulada por leis específicas. Quis o legislador abraçar também o serviço público como fornecimento ao mercado de consumo, quando ocorresse nele o elemento objetivo adiante descrito. Inegável é que o serviço notarial tem suas regras estabelecidas pela Constituição Federal, aplicando-se a Lei dos Registros Públicos – Lei nº 6.015/51 - e a Lei 8.935/94, o que não exclui, de modo algum, o alcance concomitante do Código de Proteção e Defesa do Consumidor.

O elemento objetivo ocorrente, conforme já referido, é a profissionalidade da atividade, sua habitual prestação e remuneração, o que, para o caso em tela, fica mais do que evidente, tanto pela expressa disposição constitucional – atribuindo-lhe caráter privado – quanto pela autorização legal de cobrar pelos serviços habitualmente prestados. Certamente este elemento ocorre também noutras atividades da administração pública que não apenas na atividade cartorial, razão pela qual o Código do Consumidor abraçou a possibilidade da pessoa de direito público – ou privado por delegação – ser reputada como fornecedor de serviços.


Conclusão

Consequentemente, pode-se dizer que o prestador de serviço notarial, na forma do art. 3º do Código do Consumidor, constitui-se em fornecedor de serviços, sujeito, portanto, à toda regulamentação apresentada pela referida lei.

Exemplificadamente, pode-se afirmar que, diante do prestador de serviços notariais, o consumidor tem seu favor direitos básicos que regem as relações de consumo em geral, como os explicitados no art. 6º do referido diploma legal. Destacamos especialmente os contidos nos incisos III (a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços), VI (reparação de danos), VII (acesso às vias administrativas e judiciais), VIII (inversão do ônus da prova) e X (adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral). No tocante à responsabilidade civil, a polêmica gira em torno de se aplicar o art. 37 § 6º da Constituição Federal ou o próprio Código de Defesa do Consumidor, nos termos do art. 14.

É muito comum, por exemplo, determinados fornecedores de serviço notarial se negarem a cumprir a tabela instituída pela legislação, ou não fornecerem recibo do pagamento efetuado. Diante da ordem jurídica, isto é mais do que inaceitável. O acesso do cidadão a juizados especiais de relações de consumo parece ser um promissor meio de varrer tais práticas da atividade cartorial. Isto somente se torna possível diante da categorização da prestação do serviço cartorial como fornecimento de serviço. Tratando dos direitos do usuário de serviços públicos em geral, Hely Lopes Meirelles entende que, além da via judicial por via de ação cominatória, nos termos do art. 287 do Código de Processo Civil, "o Código de Defesa do Consumidor prevê, em título próprio, outros instrumentos para a tutela dos interesses individuais, coletivos e difusos em juízo, tratando, inclusive, da legitimação ordinária e extraordinária para a propositura da ação (arts. 81 a 104)." (4)

Não deve olvidar o consumidor de também lançar mão da legislação específica para proteger os seus direitos em face do prestador de serviços notariais, de acordo com o disposto no art. 7º do CPDC.

De fato, vem o Código de Consumo revolucionar a relação do consumidor com o fornecedor, mas também do cidadão com o Estado, na medida em que entre eles ocorra relação classificada como de consumo. Tal é o papel da lei: limitar os fortes em defesa dos mais fracos, mesmo que do outro lado da relação esteja aquele constituído para proteger o cidadão, mas que, por razões várias, freqüentemente acaba por prejudicá-lo.


NOTAS

  1. NASCIMENTO, Tupinambá M. C. do. Responsabilidade Civil no código do consumidor. Rio de Janeiro:AIDE, 1991, p. 25.
  2. CAVALCANTI, Flávio de Queiroz Bezerra. Responsabilidade civil por fato do produto no código de defesa do consumidor. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 44.
  3. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 340.
  4. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 303.

Bibliografia

CAVALCANTI, Flávio de Queiroz Bezerra. Responsabilidade civil por fato do produto no código de defesa do consumidor. Belo Horizonte: Del Rey, 1995.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1999.

NASCIMENTO, Tupinambá M. C. do. Responsabilidade Civil no código do consumidor. Rio de Janeiro:AIDE, 1991.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE NETO, Carlos Gonçalves. O prestador de serviço notarial como fornecedor, nos termos do Código do Consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 42, 1 jun. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/741. Acesso em: 19 abr. 2024.