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A (in)existência de filtros qualitativos para a aplicação da teoria do adimplemento substancial no direito brasileiro

A (in)existência de filtros qualitativos para a aplicação da teoria do adimplemento substancial no direito brasileiro

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O objetivo do presente trabalho é analisar a existência ou não de critérios qualitativos para aplicação da teoria do adimplemento substancial do contrato, que tem tem suas raízes no princípio da boa-fé objetiva e função social do contrato.

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem o intuito de analisar a dosagem utilizada pela doutrina e jurisprudência para a aplicação da teoria do adimplemento substancial do contrato dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Além disso, terá a intenção de verificar se além do critério quantitativo, que envolve o percentual de adimplemento, o critério quantitativo, que envolve uma interpretação do caso concreto apresentado ao julgador, deve ser analisado para aplicar ou não esta teoria.

O trabalho está inserido na área do Direito Civil e Contratual, sendo o seu problema principal o de descobrir quais são os critérios utilizados pela jurisprudência e pela doutrina para a aplicação da teoria do adimplemento substancial do contrato no Brasil, frente aos variados posicionamentos e métodos de aplicação dentro do sistema jurídico nacional.

Os objetivos gerais do presente trabalho são os de conhecer a teoria do adimplemento substancial do contrato e compreender como ela está sendo aplicada dentro da doutrina e jurisprudência brasileiras.

Os objetivos específicos são os de verificar o posicionamento da doutrina e jurisprudência sobre quais os aspectos utilizados para ser utilizada a teoria do adimplemento substancial nos casos concretos. Verificar-se-á as diferentes ponderações e dosagens utilizadas pelos tribunais pátrios para utilização desta teoria.

O principal motivo para a escolha do tema ocorreu pela percepção de que ele é de grande importância dentro do direito brasileiro, mesmo que não muito conhecido e comentado. O direito contratual está presente na vida de quase todos os indivíduos e conhecer a teoria que dá amparo àqueles que de boa fé adimpliram grande parte do seu contrato e por algum motivo infortúnio não puderam seguir adiante com o cumprimento é de muito relevo.

A metodologia aplicada na construção da pesquisa é a de modelo dedutivo, pelo fato que se parte de uma premissa mais ampla, no caso a conceituação e características da teoria do adimplemento substancial, chegando até os nos filtros utilizados para a aplicação desta teoria na atualidade.

A técnica a ser aplicada é a de documentação indireta, pesquisando-se em fontes doutrinárias e jurisprudenciais e colhendo as principais controvérsias e entendimentos sobre o tema.

Os resultados que se busca obter é o de entender como a doutrina e a jurisprudência ponderam a aplicação da teoria do adimplemento substancial do contrato nos casos concretos, tendo em vista a enorme subjetividade para se decidir se a situação específica se trata de um adimplemento substancial ou não. Outro resultado que se busca é o de compreender se para ser aplicada esta teoria basta uma pura análise na porcentagem de cumprimento da obrigação, ou se deve ser levado em conta também as intenções e motivos do inadimplente.

1 CONCEITUAÇÃO E ORIGENS DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL

A teoria do adimplemento substancial se configura no impedimento de extinção de um contrato quando este tiver sido quase totalmente cumprido, restando o inadimplemento insignificante. Nesta situação caberá apenas a aplicação de efeitos jurídicos como a cobrança do que faltar para o cumprimento deste contrato, bem como de indenização por perdas e danos (TARTUCE, 2015, s/n).

Em outras palavras, ela consiste na hipótese em que o devedor descumpre parcialmente sua obrigação, já tendo, todavia, executado a maior parte do contrato. Neste caso, não seria justo para as partes ter que ser resolvida a relação contratual, pois os efeitos pretendidos pelo contrato ainda estão presentes. Restará para o credor apenas a possibilidade de reparação dos prejuízos sofridos (DE LIMA, 2007, p. 76-77).

Esta teoria tem sua origem no direito inglês (mais precisamente no caso Bonee versus Eyre), em que ficou estabelecido que uma das partes apenas poderia resolver um contrato caso o descumprimento da outra se mostrasse suficientemente relevante. A partir daí, os tribunais ingleses passaram a dar relevância para a gravidade do dever descumprido e não somente para o descumprimento em si, para não se dar conclusão a todo e qualquer pacto, independentemente do valor do descumprimento (LEITE, 2009, p. 235).

No ordenamento jurídico brasileiro não há expressamente a positivação da teoria do adimplemento substancial. Na realidade, ela passou a ser aplicada tendo em vista uma interpretação sistemática da legislação consumerista e civil, com base nos princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato (DA SILVA, 2014, p. 37).

Em 2006 foi aprovado o enunciado n. 361 da IV Jornada de Direito Civil, aprovado pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, em que ficou estabelecido: “O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475”. Este artigo 475 do Código Civil se refere ao inadimplemento voluntário ou culposo do contrato, esclarecendo que a parte prejudicada pelo descumprimento poderá cobrar a sua resolução por perdas e danos ou o cumprimento forçado do litígio (TARTUCE, 2015, s/n).

Assim, a teoria do adimplemento substancial relativizou o artigo 475 do Código Civil, não permitindo que um contrato seja extinto quando o seu descumprimento não alterar significativamente a sua base. Conservando-se a relação obrigacional é garantida uma maior segurança jurídica aos envolvidos, que quando respeitam o princípio da boa-fé objetiva, almejam que o contrato seja cumprido e não resolvido (DE LIMA, 2007, p. 75-76).

A mitigação que o artigo 475 do Código Civil ocorre em virtude da constitucionalização do Direito Civil brasileiro, que a partir de 1988, este ramo do Direito passou a ser interpretado conforme a Constituição Federal. E a Constituição Brasileira preceitua que os princípios do Direito civil-constitucionalista, como a igualdade, solidariedade social e dignidade da pessoa humana, necessitam ser aplicados aos contratos (OLIVO e YOKOYAMA, 2016, p. 15).

Entende-se a citada boa-fé objetiva como a realização de condutas entre as partes contratantes que demonstram respeito aos direitos um do outro. Assim, a partes precisam demonstrar sempre um mútuo respeito, fornecendo sempre informações completas, corretas e precisas. Já a função social do contrato, que está prevista no artigo 421 do Código Civil, é uma limitação à liberdade de contratar, não podendo este contrato sacrificar, lesar ou comprometer interesses públicos, coletivos ou difusos e nem prejudicar o direito de terceiros (COELHO, 2010, p. 83-93).

 A boa-fé objetiva, que embasa a teoria do adimplemento substancial, possui basicamente três funções. A primeira é utilizada para se buscar a real matéria do negócio jurídico obrigacional, tendo cunho hermenêutico. A segunda função é ativa, em que se criam deveres de conduta laterais entre as partes. E a terceira é a função de controle ou repressiva, que não admite o exercício equivocado das posições jurídicas (BUSSATA, 2008, p. 76).

A função social do contrato é ao mesmo tempo considerada como condição para se exercer a autonomia privada e uma limitação deste exercício. Já a boa-fé objetiva dentro do ordenamento jurídico brasileiro é tida como um princípio informador do direito das obrigações, sendo considerada como uma cláusula geral dos negócios jurídicos. Por isso ela é um dever implícito entre as partes, que devem agir correspondentemente com certos padrões recomendados pela sociedade, como o de lisura, correção e honestidade, sempre tendo o objetivo de manter a confiança da outra parte (DA SILVA, 2014, p. 38-41).

A teoria do adimplemento substancial não é uma maneira de dar incentivo ao não cumprimento dos contratos e desprestigiar a ordem jurídica formada. Na realidade, o seu objetivo é o de assegurar o equilíbrio contratual, preservando a justiça entre as partes. Para que o adimplemento substancial seja aplicado da forma adequada, é necessária uma grande sensibilidade do julgador, que deverá sempre analisar a situação fática trazida e tentando decifrar qual era a real intenção das partes na realização do contrato e qual foi a verdadeira razão do descumprimento deste negócio (RUAS, 2017, s/n)

Para vislumbrar a aplicação da teoria do adimplemento substancial, devem-se compreender as modalidades de inadimplementos contratuais, quais sejam: Inadimplemento absoluto: configura-se quando o não cumprimento da obrigação contratada impossibilita a continuação do contrato, somente podendo ele ser resolvido e que seja aplicada uma indenização. Inadimplemento relativo: ocorre na hipótese de o cumprimento da obrigação ser ainda possível, mesmo sendo tardio. Inadimplemento insignificante: aqui o descumprimento do contrato atinge apenas proporções ínfimas, não chegando a afetar os efeitos esperados por este pacto. A teoria do adimplemento substancial tem cabimento somente nesta última modalidade de inadimplemento (DE LIMA, 2007, p. 76).

Deve-se perceber que para ser aplicada a teoria do adimplemento substancial é de essencial importância que se verifique a proximidade entre o que foi realizado de fato e o que era previsto no contrato. Há de ser averiguado se a prestação inacabada satisfaz aos almejos do credor, pelo menos na teoria, e também deve haver o esforço e a presteza do devedor para cumprir esta obrigação (LEITE, 2009, p. 237).

Com uma noção clara sobre o que a teoria do adimplemento substancial significa, passa-se a uma análise sobre a importância da aplicação desta teoria dentro do ordenamento jurídico brasileiro, considerando as devidas peculiaridades que o direito brasileiro possui.

2 A IMPORTÂNCIA DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL DENTRO DO DIREITO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

Com base na atual teoria do inadimplemento e do adimplemento substancial, passou-se a exigir, para que se considere adimplido um contrato, o cumprimento não só da prestação principal, mas também é exigido igualmente o cumprimento dos deveres de conduta que são impostos pela sistemática do direito das obrigações, sendo necessário o efetivo atendimento da parte econômica da relação e a satisfação do verdadeiro interesse do credor. Sabendo-se que adimplemento e inadimplemento estão intimamente conectados, é fácil notar que todas as mudanças ocorridas com a atual concepção de adimplemento também repercutirão na teoria do inadimplemento. Seguindo esta linha de raciocínio, no atual direito brasileiro, considera-se inadimplente o devedor que não cumprir com o dever principal de prestação, mas também o é quando não cumprir com os demais deveres de conduta, estabelecidos pela sistemática das obrigações. Logo, o inadimplemento corresponde ao não cumprimento da prestação satisfativa de modo geral, e não ao mero descumprimento da prestação principal, como ocorreu no passado (TERRA e GUEDES, 2017, p. 100).

Como já afirmado, a teoria do adimplemento substancial tem base nos atuais paradigmas de boa-fé objetiva e função social do contrato, em que o que se objetiva sempre é a manutenção do vínculo entre as partes, caso a substancial parte do contrato já tiver sido cumprida pela parte considerada inadimplente. Com base nisso, garante-se a segurança jurídica e a real intenção das partes, visto que se evita que um ínfimo descumprimento seja considerado um suficiente motivo para o desfazimento da relação contratual (LEITE, 2009, p. 236).

A teoria do adimplemento substancial tem a razão de ser principalmente um instrumento do próprio magistrado, quando analisar o caso específico. E isto acontece tendo em vista que esta teoria não foi abarcada objetivamente nem pelo Código Civil de 1916 e nem pelo de 2002. Ela surge, basicamente levando em consideração princípios, que dentro do direito contratual prima pela manutenção do vínculo contratual. Com isso, percebe-se que a doutrina do adimplemento substancial tem grande relevância dentro do ordenamento jurídico brasileiro, mesmo que não esteja positivada, pois objetiva manter o contrato ativo sempre que forem ponderadas as intenções e a boa-fé das partes (DE LIMA, 2007, p. 77-78).

Complementando, como reflexo do atual entendimento sobre a teoria do adimplemento substancial, tem-se que ela pode ser utilizada até mesmo dentro do Direito de Família, mais especificamente no cumprimento da obrigação alimentar, como maneira de buscar a solução do litígio existente, dando um desfecho ao processo. Todavia, esta teoria deve ser aplicada com extrema cautela nesta situação, de modo a evitar que o devedor se torne inadimplente propositalmente, tão somente com a intenção de se furtar ao pagamento total da dívida. Ela deve ser aplicada exclusivamente quando o julgador verificar, mediante a análise do caso concreto, que o devedor não estava agindo de má-fé e sim que estava passando por dificuldades que o impediram de adimplir totalmente o seu débito (BARBOSA, 2016, p. 165).

Esta teoria, e suas novas acepções, possibilitou a avaliação de se o sacrifício imposto a uma parte pela solução criada pela outra é proporcional considerando o nível da inadimplência causada. Pensando assim, ela permite que se afaste a prorrogação da responsabilidade do devedor pela situação fortuita, que está previsto no artigo 399 do Código Civil de 2002, quando a repercussão do atraso não possuir essencialmente um valor expressivo, visto que isto poderia ser facilmente configurado como um sacrifício desproporcional (TERRA e GUEDES, 2017, p. 104).

Com o advento do Código de Processo Civil de 2015, a teoria do adimplemento substancial foi ainda mais reforçada e trazida para a realidade nacional. Isto ocorre, tendo em vista que o artigo 6º deste Código prescreve expressamente sobre o princípio da cooperação entre as partes, que trouxe uma enorme mudança de paradigma ao sistema processual nacional, de modo que agora o magistrado tem uma íntima relação com as partes, devendo sempre promover o diálogo e demonstrar o seu ponto de vista jurídico sobre questões colocadas em juízo. Como a teoria do adimplemento substancial tem em sua essência a boa fé e cooperação entre os envolvidos, o Novo Código de Processo Civil com ela dialogou e a deu ainda mais importância dentro do direito brasileiro (OLIVO e YOKOYAMA, 2016, p. 30).

Após a análise sobre a relevância da teoria do adimplemento substancial dentro do ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo, passa-se ao estudo sobre quais são os limites para que esta teoria possa ser aplicada, conforme o entendimento doutrinário e jurisprudencial sobre o tema e com o respeito aos princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva.

                    

3 A (IN)EXISTÊNCIA DE FILTROS QUALITATIVOS PARA A APLICAÇÃO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL NO DIREITO BRASILEIRO

Com base no que já fora analisado, percebe-se que para restar caracterizada uma situação de adimplemento substancial, é necessária a verificação de que aquilo que não se cumpriu no contrato era insignificante e este contrato chegou muito perto de ser integralmente adimplido, sempre levando em consideração a verdadeira diligência e esforço do devedor para respeitar esta obrigação. Assim, não será qualquer simples inadimplemento que poderá ser causa de uma resolução contratual, mas tão somente aqueles realmente relevantes, conforme o caso concreto. (LEITE, 2009, p. 237).

Verifica-se, todavia, que ficou a cargo da jurisprudência e da doutrina estabelecer o que deve ser considerado um cumprimento relevante para a configuração do adimplemento substancial, o que é um grande desafio. Em virtude do fraco suporte teórico, muitos Tribunais brasileiros têm se manifestado de maneira pouco expressiva, apenas aplicando esta teoria com base em uma abordagem quantitativa, vinculada a quantidade de parcelas não pagas ou porcentagem de inadimplemento contratual (TARTUCE, 2015, s/n).

Na realidade, existem basicamente dois fatores dominantes a serem analisados para ser verificada a gravidade do inadimplemento: O objetivo é o primeiro fator, que leva em conta o nível de descumprimento real em um contrato, a parcela que de fato foi inadimplida. O outro fator é o subjetivo, que leva em conta a vontade presumida das partes, quais os seus reais motivos e aquilo que ela realmente pensou para descumprir tal obrigação, se ela contrataria se soubesse que iria haver o inadimplemento. Estes fatores são aqueles que devem ser levados em consideração para saber se no caso é verificado o adimplemento substancial ou não (BUSSATA, 2008, p. 76).

A verificação do nível de descumprimento contratual pela parte inadimplente dependerá sempre do caso concreto. Não há um modelo genérico ou uma fórmula matemática que resolverá todas as questões, visto que o que se torna relevante nestes casos são as aplicações dos princípios (SIMÃO, 2017, s/n).

Como marco do contemporâneo entendimento sobre a teoria do adimplemento substancial, tem-se o Recurso Especial n. 1.581.505, de Santa Catarina, julgado em 18 de agosto de 2016, com a seguinte ementa:

“DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RESCISÃO CONTRATUAL. REINTEGRAÇÃO NA POSSE. INDENIZAÇÃO. CUMPRIMENTO PARCIAL DO CONTRATO. INADIMPLEMENTO. RELEVÂNCIA. TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. INAPLICABILIDADE NA ESPÉCIE. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. O uso do instituto da substancial performance não pode ser estimulado a ponto de inverter a ordem lógico-jurídica que assenta o integral e regular cumprimento do contrato como meio esperado de extinção das obrigações. 2. Ressalvada a hipótese de evidente relevância do descumprimento contratual, o julgamento sobre a aplicação da chamada "Teoria do Adimplemento Substancial" não se prende ao exclusivo exame do critério quantitativo, devendo ser considerados outros elementos que envolvem a contratação, em exame qualitativo que, ademais, não pode descurar dos interesses do credor, sob pena de afetar o equilíbrio contratual e inviabilizar a manutenção do negócio. 3. A aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial exigiria, para a hipótese, o preenchimento dos seguintes requisitos: a) a existência de expectativas legítimas geradas pelo comportamento das partes; b) o pagamento faltante há de ser ínfimo em se considerando o total do negócio; c) deve ser possível a conservação da eficácia do negócio sem prejuízo ao direito do credor de pleitear a quantia devida pelos meios ordinários (critérios adotados no REsp 76.362/MT, QUARTA TURMA, j. Em 11/12/1995, DJ 01/04/1996, p. 9917). 4. No caso concreto, é incontroverso que a devedora inadimpliu com parcela relevante da contratação, o que inviabiliza a aplicação da referida doutrina, independentemente da análise dos demais elementos contratuais. 5. Recurso especial não provido. (REsp 1581505/SC, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 18/08/2016, DJe 28/09/2016).”

Este Recurso Especial foi alvo de grande debate após o seu julgamento, pois deixou explícito que a teoria do adimplemento substancial deverá ser analisada minunciosamente para jamais garantir um falso direito a alguém que não estava agindo com lealdade contratual.

Neste Recurso Especial, de relatoria do Ministro Antônio Carlos Ferreira, foi expressamente adotado o entendimento de que ao ser analisada a teoria do adimplemento substancial no caso concreto, deve-se atentar para a importância do exame qualitativo, além do quantitativo, de modo que não poderá deixar ao desamparo os interesses do credor. É lógico que o critério quantitativo não perde a sua importância, todavia, ele por si só não é suficiente para generalizar a aplicação da referida teoria. Após esta análise, o Relator elenca uma série de requisitos para ser aplicada a teoria do adimplemento substancial, que são basicamente: a presença de reais expectativas criadas pelo próprio comportamento das partes; a inadimplência deve ser muito pequena, se considerando totalidade do valor da obrigação; necessita-se haver a possibilidade de conservação da eficácia da obrigação, não dando prejuízo ao direito do credor de requerer os valores devidos pelas instâncias ordinárias (TERRA e GUEDES, 2017, p. 98-99).

Todo o subjetivismo que existe na teoria do adimplemento substancial deve sempre ser eliminado, tendo em vista que esta teoria é fundamentada em dois princípios, que são a boa-fé objetiva e a função social do contrato. Estes princípios deverão sempre ser analisados antes da aplicação do adimplemento substancial, viso que foi a partir deles que a teoria foi criada e é sempre com base neles que ela deve ser aplicada (MAGLIONE, 2016, s/n).

Sobre os limites fixados pelo STJ no Recurso Especial n. 1.581.505, tem-se que o primeiro deles (que exista expectativas legítimas pelo próprio comportamento das partes), não seria de fato um requisito para a configuração do adimplemento substancial, visto que, sempre haverá uma expectativa por parte do credor de que a obrigação seja cumprida totalmente. O segundo limite demonstrado (que o que resta do adimplemento seja ínfimo sobre o total do valor do contrato) é fragilizado no momento que o próprio Relator dispõe que a análise quantitativa por si só não é suficiente para a aplicação da teoria. A ementa do Recurso Especial em análise não traduziu neste ponto o entendimento do Ministro Relator sobre os pressupostos para aplicação do adimplemento substancial. O terceiro requisito citado (que é necessário ser preservada a eficácia obrigacional, sem obstar o direito do credor de requerer o inadimplemento devido pelos meios ordinários) é basicamente um efeito de quando a mora é configurada, visto que há a possibilidade de satisfação do direito do credor, no momento que requer a parte inadimplida da obrigação (TERRA e GUEDES, 2017, p. 106).

Em que pese as falhas notórias a respeito dos requisitos necessários para a aplicação da teoria do adimplemento substancial no Recurso Especial em apreço, ele ainda foi muito elucidativo dentro do tema e deu uma maior orientação sobre o assunto para os juízes e tribunais, que terão mais facilidade para verificar se o caso configura ou não adimplemento substancial.

Com base neste Recurso Especial de Santa Catarina, agora mais do que nunca, para ser aplicado o adimplemento substancial no caso concreto, a análise deverá ser mais qualitativa e baseada em princípios do que quantitativa, que leva em consideração somente o valor do inadimplemento. O binômio função social do contrato e boa-fé deverá sempre ser verificado pelos tribunais para poderem aplicar esta teoria (MAGLIONE, 2016, s/n).

Já com as influências do Recurso Especial n. 1.581.505, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina enfrentou o tema do adimplemento substancial:

“AÇÃO DE RESCISÃO DE CONTRATO. AVENÇA FIRMADA ENTRE CONSTRUTORA E PARTICULAR. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. PAGAMENTO DE FORMA PARCELADA. RÉU QUE NÃO CUMPRIU COM O PAGAMENTO GLOBAL DA DÍVIDA. MONTANTE PAGO PELO ADQUIRENTE DE QUASE 74% (SETENTA E QUATRO POR CENTO) DO VALOR TOTAL DO DÉBITO. CONFIGURAÇÃO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ CONTRATUAL E FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS. PACTO MANTIDO. OBRIGAÇÃO DO RÉU DE CUMPRIR INTEGRALMENTE COM O CONTRATO FIRMADO ENTRE AS PARTES BEM COMO ARCAR COM O PAGAMENTO DA MULTA CONTRATUAL. JURISPRUDÊNCIA DO GRUPO DE CÂMARAS DE DIREITO CIVIL DESTA CORTE. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.   Segundo posição do Superior Tribunal de Justiça, a "aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial exigiria, para a hipótese, o preenchimento dos seguintes requisitos: a) a existência de expectativas legítimas geradas pelo comportamento das partes; b) o pagamento faltante há de ser ínfimo em se considerando o total do negócio; c) deve ser possível a conservação da eficácia do negócio sem prejuízo ao direito do credor de pleitear a quantia devida pelos meios ordinários (critérios adotados no REsp 76.362/MT, j. Em 11/12/1995, DJ 01/04/1996, p. 9917)" (REsp 1581505/SC, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, julgado em 18/08/2016, DJe 28/09/2016). (TJSC, Apelação Cível n. 0601463-79.2014.8.24.0005, de Balneário Camboriú, rel. Des. Saul Steil, Terceira Câmara de Direito Civil, j. 20-03-2018).”

Percebe-se que a posição adotada pelo Superior Tribunal de Justiça acerca da teoria do adimplemento substancial vem sendo aplicada nos tribunais inferiores e, por esta razão, tem-se dado primazia pela manutenção do contrato, quando configurada a boa fé das partes e também o adimplemento de grande parte da obrigação.

CONCLUSÃO

Tendo em vista tudo o que foi analisado neste trabalho, verifica-se que a teoria do adimplemento substancial não é um tema fácil de ser analisado pelos tribunais nacionais, visto que em muitos casos é difícil constatar se o comportamento das partes, mais especialmente o devedor, foi probo e de boa-fé.

Os limites para a aplicação da teoria do adimplemento substancial devem ser objetivos e subjetivos. Os objetivos são aqueles que há anos já vêm sendo aplicados pelos tribunais nacionais, quais sejam, de verificação da porcentagem de adimplemento de uma obrigação. Os limites subjetivos são aqueles que dizem respeito ao mérito do negócio propriamente dito. Tem relação com a real intenção das partes, e os motivos que levaram um destes contratantes a descumprir parcialmente a sua obrigação estabelecida.

Muitas decisões judiciais ainda são proferidas com base tão somente na análise do critério quantitativo da obrigação, pois este critério é facilmente verificado, necessitando de simples cálculos matemáticos, e ignorando o critério qualitativo.

Entretanto, como percebido, o critério mais importante para a verificação da existência ou não da teoria do adimplemento substancial do contrato no caso concreto é de fato a análise qualitativa. Isto porque, esta teoria é totalmente baseada nos princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato, que estão inseridas no critério que analisa a qualidade da obrigação.

Não adianta de nada o tribunal afirmar que restou configurado o adimplemento substancial simplesmente pelo fato de 90 por cento de uma obrigação ter sido cumprida, se a parte inadimplente atuou de forma improba na relação, tendo evidentes atitudes de desrespeito contratual e intenção de não cumprir o contrato.

O Recurso Especial n. 1.581.505/SC, apesar de ter expressamente se voltado para realizar uma análise das reais intenções da parte no caso apresentado, respeitando a boa-fé objetiva e a função social do contrato, trouxe em sua ementa critérios relativamente ultrapassados para a identificação do adimplemento substancial, e que deu margem para os tribunais nacionais continuarem a ter o posicionamento de verificar somente o critério quantitativo da obrigação, o que não pode ser admitido.

Assim, ante todo o estudo realizado em torno da teoria do adimplemento substancial, pode ser afirmado que a análise qualitativa deve sim ser utilizada para a sua correta aplicação. A discussão sobre os limites para a aplicação desta teoria ainda não acabou, mas aquele critério que parece mais respeitar os princípios da função social do contrato e boa-fé objetiva é o da análise detalhada das peculiaridades do caso concreto, e a verificação de quais foram as reais razões pelas quais a parte inadimplente descumpriu a sua obrigação. Este pode não ser o caminho mais fácil para os tribunais, mas garante muito mais a justiça contratual e evita que a má-fé seja privilegiada.

                  

REFERÊNCIAS

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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20152018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em 24 mar. 2018.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.581.505-SC. Relator: Ministro Antônio Carlos Ferreira. Julgado em: 18/08/2016. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1531880&num_registro=201502887137&data=20160928&formato=PDF>. Acesso em 26 mar. 2018.

BUSSATA, Eduardo Luiz. Resolução dos contratos e teoria do adimplemento substancial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil, 3: contratos. 4. ed. — São Paulo : Saraiva, 2010.

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MAGLIONE, Bruno. O adimplemento substancial dos contratos e seu suposto subjetivismo. 2016. SEDEP. Disponível em: <http://www.sedep.com.br/artigos/o-adimplemento-substancial-dos-contratos-e-seu-suposto-subjetivismo/> Acesso em: 11 jun. 2018.

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