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Estamos na iminência de um Inverno Orçamentário no Tribunal de Justiça de São Paulo?

Entenda a situação sob a ótica do Direito Financeiro.

Estamos na iminência de um Inverno Orçamentário no Tribunal de Justiça de São Paulo? Entenda a situação sob a ótica do Direito Financeiro.

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Tribunal de Contas do Estado de São Paulo edita Deliberação para modular os efeitos da extrapolação do limite de gastos com pessoal previsto nos artigos 19 e 20 da LRF aos entes públicos do Estado. Consequências financeiras ao TJSP.

Em Sessão Ordinária realizada em 11 de Setembro de 2019, apreciando o TC-A-007019/026/19, de Relatoria do Conselheiro Presidente Antonio Roque Citadini, o Pleno do Tribunal de Contas do Estado (TCE) de São Paulo aprovou deliberação editada com base no art. 114, inciso II, alínea “c”, de seu Regimento Interno[1].

Nessa Deliberação, publicada no Diário Oficial do Estado de 12 de Setembro de 2019, Caderno do Legislativo, pág. 26, o TCE decidiu que “os entes públicos que tenham extrapolado os limites de gastos com pessoal por conta única e exclusiva da contabilização do FUNDEB retido, para fins de cálculo da Receita Corrente Líquida, deverão reduzir os excessos decorrentes aos limites previstos na lei, no prazo de 02 (dois) exercícios, a contar de 2020, na proporção de 50% por exercício” (art. 1º), consignando, em seu art. 2º, que essa deliberação “se aplica apenas às situações em que a superação dos limites previstos nos artigos 19 e 20 da LRF decorra, exclusivamente, da nova metodologia de cálculo da RCL adotada por esta Corte, nos termos da 8ª Edição do Manual de Demonstrativos Fiscais da STN e da Nota Técnica SDG nº 144/2018, não se aplicando se a superação ocorrer por quaisquer outros motivos”.

Na referida sessão de julgamento da matéria, o Procurador-Geral do Ministério Público de Contas, Thiago Pinheiro Lima, apresentou sustentação oral, na qual destacou, com muita propriedade, que, desde o exercício de 2009, os Estados e Municípios deveriam observar o  Manual de Demonstrativos Fiscais[2] editado pela Secretaria de Tesouro Nacional (STN)[3], que já determinava, com base no art. 2º, § 1º, da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF)[4], que fossem computados no cálculo da Receita Corrente Líquida (RCL) os valores pagos (recolhidos) e recebidos do Fundeb, previsto no art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, por cada um desses entes públicos.

 

Com essa metodologia de cálculo da RCL, os Estados que, em virtude de uma grande arrecadação de tributos, como é o caso de São Paulo, recolhessem ao Fundeb valores superiores aos recebidos desse mesmo fundo, deveriam subtrair a diferença na RCL. Para exemplificar: se São Paulo recolhesse ao Fundeb a importância de R$ 100.000.000,00 (cem milhões de reais) e recebesse desse fundo apenas R$ 70.000.000,00 (setenta milhões de reais), deveria contabilmente considerar a diferença negativa (ou perda líquida) de R$ 30.000.000,00 para efeito de cálculo de Receita Corrente Líquida, o que, obviamente, diminuiria o valor dessa receita, que, como já tive a oportunidade de mencionar em outro artigo[5], serve, dentre outras finalidades previstas na LRF, como base de cálculo do limite de gastos com pessoal imposto pelos arts. 19 e 20 do referido diploma legal.

Mas se o ato normativo que determinava que fossem computados os valores recebidos e recolhidos pelos Estados e Municípios ao Fundeb no cálculo da RCL era de 2008, com vigência a partir do exercício de 2009, qual seria a razão da modulação aplicada pelo TCE no julgamento de 11 de Setembro de 2019?

A resposta a essa indagação foi dada pelos Conselheiros Renato Martins Costa e Dimas Ramalho na referida sessão do Tribunal Pleno[6], e encontra-se nos próprios “considerandos” da Deliberação publicada.

O que justificou a modulação, na visão daquele órgão de controle externo, foi o fato de ter havido uma mudança de sua orientação, após a Nota Técnica SDG nº 144/2018, em relação à metodologia de cálculo da RCL do Estado e Municípios sujeitos a sua fiscalização.

De fato, até 2018, o TCE-SP não exigia que fosse descontado, para fins de se chegar à RCL, o valor recolhido pelo ente público a mais em comparação ao recebido do Fundeb, ou seja, o Estado de São Paulo e alguns municípios com maior arrecadação, mesmo apresentando suas contas de RCL em desacordo com a Portaria STN nº 577/2008 e os atos normativos que a sucederam, não tinham, até a Nota Técnica SDG nº 144/2018, suas contas impugnadas neste ponto pela fiscalização do TCE.

A decisão de modulação do TCE, desta maneira, dadas as graves consequências advindas do descumprimento do limite de gastos com pessoal pelos entes públicos já mencionadas em meu artigo anterior, coaduna-se com as normas jurídicas contidas nos arts. 23 e 24 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro[7], pois garante aos entes públicos sujeitos ao controle externo do TCE, diante da nova orientação daquele tribunal, a partir da Nota Técnica SDG nº 144/2018, tempo para se adequarem “de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais”.

E, uma vez compreendida a questão da modulação aprovada pelo TCE aos entes públicos do Estado em geral, cumpre discorrer sobre suas consequências ao Tribunal de Justiça de São Paulo em particular.

A primeira delas consiste no fato de que, no exercício de 2019, o TCE não exigirá a adoção das medidas para redução de gastos com pessoal dos entes públicos que tenham extrapolado o limite previsto nos arts. 19, 20 e 22 da LRF em razão única e exclusivamente da contabilização do Fundeb retido, como foi o caso do TJSP, que, segundo o alerta dirigido ao Desembargador Presidente do Tribunal pelo TCE por meio do Comunicado GP nº 30/2019[8], teria, no 1º Quadrimestre de 2019, ultrapassado o limite prudencial de gasto com pessoal (art. 22 da LRF) em decorrência da mudança dessa orientação e, por consequência, da forma de cálculo do valor da RCL do Estado de São Paulo.

A segunda e mais importante consequência é que, caso não haja um aumento de receitas pela arrecadação de tributos no Estado de São Paulo, que altere significativamente a RCL do Estado nos exercícios de 2020 e 2021, o próximo Presidente do Tribunal de Justiça necessitará adotar as medidas previstas na LRF e no art. 163, §§ 3º e 4º, da Constituição Federal, para redução do excesso de gasto com pessoal na proporção de 50% por exercício, sob pena do TJSP receber novo alerta do TCE por atingir o limite prudencial com gastos de pessoal, com a imposição automática das restrições contidas no art. 22 da LRF.[9]

E da Deliberação aprovada pelo TCE é possível concluir, ainda, que esse alerta, caso ocorra, não virá necessariamente ao final do exercício de 2021, mas poderá surgir já no encerramento do exercício de 2020, se o TJSP não reduzir o excesso de gasto com pessoal que ultrapasse o limite prudencial do art. 22 da LRF em 50% pelo menos.

Recorramos, mais uma vez, a um exemplo para maior compreensão: Se o TJSP, em razão única e exclusiva da nova metodologia de cálculo da RCL do Estado, excedeu em R$ 10.000.000,00 o limite prudencial de gasto com pessoal do art. 22 da LRF, deverá, no exercício de 2020, adotar as medidas para reduzir esse excesso para apenas R$ 5.000.000,00. Não o fazendo, já poderá sofrer o alerta do TCE, tão logo esse órgão de controle externo constate o descumprimento, e assim iniciar o exercício de 2021 com as restrições financeiras previstas na supracitada norma. Caso logre tal redução em 2020, deverá proceder da mesma forma em 2021, reduzindo os outros R$ 5.000.000,00 de excesso de gastos.

Como a medição é feita quadrimestralmente (art. 22, caput, LRF), certamente o TCE fará comunicações intermediárias ao Presidente do TJSP ao longo dos exercícios de 2020 e 2021, noticiando se o Tribunal está, em cada quadrimestre, se aproximando ou se afastando do cumprimento dos termos da modulação estabelecida na Deliberação em comento.

Diante desse quadro jurídico-financeiro, consideraria uma última - mas não menos importante - consequência dessa decisão do TCE aos integrantes do Tribunal de Justiça, que seria a necessidade de reflexão e análise das propostas e estratégias dos candidatos aos órgãos de cúpula, em especial à Presidência, nas eleições que se avizinham, para lidar com essas restrições financeiras nos dois anos do próximo mandato, em que será preciso cumprir os termos da modulação deferida pelo TCE, visando afetar o mínimo possível a atividade-fim do Poder Judiciário (a prestação jurisdicional), que depende – e muito – dos gastos com pessoal, ou seja, com seus dedicados servidores e magistrados de ambas as instâncias, e que, em razão de aposentadorias, exonerações, demissões, mortes, convocações para atuação em outros órgãos, demandará soluções criativas e eficientes para suprir as lacunas de pessoal deixadas em cada Comarca e na segunda instância do Tribunal.

A tarefa que se vislumbra - à qual se deseja todo o sucesso ao próximo Presidente do TJSP - não será, ao que tudo indica, a de estender amplo cobertor para atendimento pleno das necessidades orçamentárias do Tribunal - salvo se ocorrer um aumento surpreendente de arrecadação de tributos que eleve sobremaneira a Receita Corrente Líquida do Estado[10] -, mas sim a de eleger prioridades e, valendo-se de cobertor curto costurado com os moldes dessa modulação aprovada pelo Tribunal de Contas, evitar que setores ligados à prestação jurisdicional[11] destinada à população paulista paralisem com a falta de recursos nesses próximos dois anos de provável inverno[12] orçamentário.

Paulo André Bueno de Camargo

O autor é Juiz de Direito Titular de Vara da Fazenda Pública no Estado de São Paulo

 


[1] “Art. 114. As decisões do Tribunal Pleno ou das Câmaras constarão, conforme o caso:

 

I – omissis;

 

II - de deliberação, quando se tratar:

 

a) de incidente de inconstitucionalidade;

b) de decisão em prejulgados em resultado de consulta do Presidente ou das Câmaras;

c) de outras decisões que, por sua importância, devam ser apresentadas por essa forma.

(...)” (destaque nosso)

[2] Disponível no sítio da internet: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/documents/10180/610035/MTDF1_VolumeII.pdf/db403dfb-2e42-495f-bb83-777075318b88, Vol. II, pág. 37, acesso em 27/09/2019.

[3] Portaria STN nº 577/2008

[4] Art. 2º. omissis.

§ 1º. Serão computados no cálculo da receita corrente líquida os valores pagos e recebidos em decorrência da Lei Complementar no 87, de 13 de setembro de 1996, e do fundo previsto pelo art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

[5] TCE alerta Tribunal de Justiça de São Paulo sobre atingimento do limite prudencial com despesas de pessoal, publicado no endereço eletrônico: https://jus.com.br/artigos/75230/tce-alerta-tribunal-de-justica-de-sao-paulo-sobre-atingimento-do-limite-prudencial-com-despesas-de-pessoal, visualizado em 27.09.2019.

[6] A Sessão Ordinária do Tribunal Pleno do TCE, realizada em 11 de Setembro de 2019, está disponível no Youtube, no endereço: https://youtu.be/h6ETj5oFy2A, acesso em 27 de Setembro de 2019.

[7]Art. 23.  A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.     (Regulamento)

Parágrafo único.  (VETADO).                  (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)

Art. 24.  A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.                 (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)     (Regulamento)

Parágrafo único.  Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.                (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)

 

[8] Publicado no Diário Oficial do Estado do dia 26 de Junho de 2019. http://diariooficial.imprensaoficial.com.br/nav_v5/index.asp?c=12&e=20190626&p=1&fbclid=IwAR1rLvqXCuRpPjcgKr_VYUw8iKObZG2rO5CBoDEC3AaKArnjJMXDg9UEp24, pág. 62.

[9] Art. 22. A verificação do cumprimento dos limites estabelecidos nos arts. 19 e 20 será realizada ao final de cada quadrimestre.

        Parágrafo único. Se a despesa total com pessoal exceder a 95% (noventa e cinco por cento) do limite, são vedados ao Poder ou órgão referido no art. 20 que houver incorrido no excesso:

        I - concessão de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a qualquer título, salvo os derivados de sentença judicial ou de determinação legal ou contratual, ressalvada a revisão prevista no inciso X do art. 37 da Constituição;

        II - criação de cargo, emprego ou função;

        III - alteração de estrutura de carreira que implique aumento de despesa;

        IV - provimento de cargo público, admissão ou contratação de pessoal a qualquer título, ressalvada a reposição decorrente de aposentadoria ou falecimento de servidores das áreas de educação, saúde e segurança;

        V - contratação de hora extra, salvo no caso do disposto no inciso II do § 6o do art. 57 da Constituição e as situações previstas na lei de diretrizes orçamentárias.

 

[10] A hipótese de aumento considerável de arrecadação não se mostra muito provável, e não na minha visão, mas sim do Conselheiro Presidente do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, Antonio Roque Citadini, que no 23º Ciclo de Debates TCESP, realizado na cidade de Marília/SP, neste mês de Setembro de 2019, declarou não haver perspectivas de melhora de receitas no curto prazo, afirmando, ao contrário, que estamos caminhando para o “colapso fiscal” no Estado de São Paulo, tal como já se encontram o Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Essas declarações constam do vídeo disponibilizado no Youtube: https://youtu.be/ZtdVF9TpK5g, visualizado em 27 de Setembro de 2019 (assistir especialmente a partir de 54:00).

 

[11] Mesmo que em detrimento das atividades-meio do Tribunal, o que pode gerar certa contrariedade por parte de alguns. Curial, nessas circunstâncias, a lembrança das palavras do grande orador e filósofo romano Cícero: “Sempre fui da opinião que a impopularidade gerada por uma atitude correta é glória e não impopularidade” (Catilinária, I, 29).

[12] O termo inverno é aqui empregado, como se pode facilmente perceber, como metáfora para sugerir um período de escassez de recursos, o que tomei de empréstimo do imaginário criado pela literatura universal, como na fábula escrita por La Fontaine, já no século XVII, intitulada A Cigarra e a Formiga, conhecida de todos nós.


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