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Estado de Direito

Estado de Direito

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O texto está dividido em duas partes: na primeira, construímos o próprio conceito de Estado de Direito e, na segunda, foi estabelecido um breve confronto com o Estado Constitucional.

Resumo: No artigo, o objetivo é traçar um perfil teórico-jurídico do clássico Estado de Direito. Para melhor proveito da delimitação e da compreensão conceitual, o texto está dividido em duas partes: na primeira, construímos o próprio conceito de Estado de Direito e, na segunda, foi estabelecido um breve confronto com o Estado Constitucional. O objetivo foi ressaltar características dos dois conceitos, tendo-as como elaborações jurídicas complementares, ou seja, nem sinônimas, nem antagônicas.

Palavras-chave: Estado de Direito; Estado de não-Direito; Política; Constituição; Justiça Formal; Direito Positivo.


1. As Fontes Liberais do Estado de Direito

A expressão Estado de Direito foi cunhada pelo jurista alemão Robert von Mohl, no século XIX, ao procurar sintetizar a relação estreita que deve haver entre Estado e Direito ou entre política e lei. Segundo Canotilho, por oposição a Estado de não-Direito, podemos entender o Estado de Direito como o Estado propenso ao Direito: "Estado de direito é um Estado ou uma forma de organização político-estatal cuja atividade é determinada e limitada pelo direito. ‘Estado de não direito’ será, pelo contrário, aquele em que o poder político se proclama desvinculado de limites jurídicos e não reconhece aos indivíduos uma esfera de liberdade ante o poder protegida pelo direito" (Canotilho, 1999, p. 11).

Em uma frase simples, podemos definir Estado de Direito a partir da estrutura estatal em que o poder público é definido/limitado/controlado por uma Constituição. Portanto, há uma maior jurisdicização do poder político. Também inicialmente, podemos afirmar que seus principais elementos são:

  • a) império da lei: quer dizer que a lei deve ser imposta a todos, a começar do Estado – o Estado tem personalidade jurídica e por isso é objeto do Direito que ele próprio produz;

  • b) separação dos poderes: significa que o Poder Executivo não pode anular o Poder Legislativo, além do que deve ser acompanhado e julgado pelo Poder Judiciário – trata-se de assegurar a interdependência dos poderes por meio da aplicação do sistema de freios e contrapesos;

  • c) prevalência dos direitos individuais fundamentais: refere-se notadamente aos direitos individuais, até os anos 20 do século XX, porque somente nesse período é que entraram em cena os direitos sociais e coletivos.

No entendimento de Miguel Reale:

Por Estado de Direito entende-se aquele que, constituído livremente com base na lei, regula por esta todas as suas decisões. Os constituintes de 1988, que deliberaram ora como iluministas, ora como iluminados, não se contentaram com a juridicidade formal, preferindo falar em Estado Democrático de Direito1, que se caracteriza por levar em conta também os valores concretos da igualdade (Reale, 2000, p. 37).

Nesta passagem, Reale acentua diretamente a necessidade de abordarmos temas espinhosos como o da personalidade jurídica do Estado - do que decorre, por exemplo, a regra da bilateralidade da norma jurídica.

Já para Bobbio, para melhor conceituar Estado de Direito, é preciso distinguir entre: 1. Limites dos poderes do Estado; 2. Limites das funções do Estado. Esta divisão nos ajudaria a compreender algumas diferenças entre liberalismo e Estado de Direito:

O liberalismo é uma doutrina do Estado limitado tanto com respeito aos seus poderes quanto às suas funções. A noção corrente que serve para representar o primeiro é Estado de direito; a noção corrente para representar o segundo é Estado mínimo [...] Enquanto o Estado de direito se contrapõe ao Estado absoluto entendido como legitibus solutus, o Estado mínimo se contrapõe ao Estado máximo: deve-se, então, dizer que o Estado liberal se afirma na luta contra o Estado absoluto em defesa do Estado de direito e contra o Estado máximo em defesa do Estado mínimo, ainda que nem sempre os dois movimentos de emancipação coincidam histórica e praticamente (Bobbio, 1990, p. 17-8).

O Estado mínimo2 aqui definido pode ser entendido como a antítese do máximo de concentração de poder no Estado – além da diminuição da intervenção na área econômica como temos hoje em dia. Mas, analisemos melhor a questão do controle ou do excesso de poder:

Por Estado de direito entende-se geralmente um Estado em que os poderes públicos são regulados por normas gerais (as leis fundamentais ou constitucionais) e devem ser exercidos no âmbito das leis que os regulam, salvo o direito do cidadão de recorrer a um juiz independente para fazer com que seja reconhecido e refutado o abuso ou excesso de poder. Assim entendido, o Estado de direito reflete a velha doutrina [...] da superioridade do governo das leis sobre o governo dos homens, segundo a fórmula lex facit regem (Bobbio, 1990, p. 18).

Bobbio ainda irá ressaltar que o Estado de Direito é entendido como a fase em que houve a necessária positivação do chamado direito natural, mas com uma substancial defesa dos direitos individuais. Vejamos:

Por outro lado, quando se fala de Estado de direito no âmbito da doutrina liberal do Estado, deve-se acrescentar à definição tradicional uma determinação ulterior: a constitucionalização dos direitos naturais3, ou seja, a transformação desses direitos em direitos juridicamente protegidos, isto é, em verdadeiros direitos positivos. Na doutrina liberal, Estado de direito significa não só subordinação dos poderes públicos de qualquer grau às leis gerais do país, limite que é puramente formal, mas também subordinação das leis ao limite material do reconhecimento de alguns direitos fundamentais considerados constitucionalmente, e portanto em linha de princípio "invioláveis" (Bobbio,1990, pp. 18-19).

Em Bobbio, também vemos algumas diferenças entre o Estado em sentido forte (Estado Constitucional), Estado em sentido fraco (Estado não-despótico: governo das leis) e Estado em sentido fraquíssimo (a partir de Kelsen, com a máxima resolução do Estado no Direito, no sentido de que todo Estado é Estado de Direito). O mais importante, no entanto, é que Bobbio destacará os mecanismos de controle e de juridicidade do poder do Estado:

Do Estado de direito em sentido forte, que é aquele próprio da doutrina liberal, são parte integrante todos os mecanismos constitucionais que impedem ou obstaculizam o exercício arbitrário e ilegítimo do poder e impedem ou desencorajam o abuso ou o exercício ilegal do poder. Desses mecanismos os mais importantes são: 1) o controle do Poder Executivo por parte do Poder Legislativo; ou, mais exatamente, do governo, a quem cabe em última instância o Poder Executivo, por parte do parlamento, a quem cabe em última instância o Poder Legislativo e a orientação política; 2) o eventual controle do parlamento no exercício do Poder Legislativo ordinário por parte de uma corte jurisdicional a quem se pede a averiguação da constitucionalidade das leis; 3) uma relativa autonomia do governo local em todas as suas formas e em seus graus com respeito ao governo central; 4) uma magistratura independente do poder político4 (Bobbio, 1990, p. 19).

As garantias institucionais dos direitos constitucionais constituem os melhores mecanismos de frenagem do poder e de garantia da liberdade – neste caso, as garantias referentes à liberdade negativa. Como analisa Bobbio:

Os mecanismos constitucionais que caracterizam o Estado de direito têm o objetivo de defender o indivíduo dos abusos do poder. Em outras palavras, são garantias de liberdade, da assim chamada liberdade negativa, entendida como esfera de ação em que o indivíduo não está obrigado por quem detém o poder coativo a fazer aquilo que não deseja ou não está impedido de fazer aquilo que deseja [...] nas relações entre duas pessoas, à medida que se estende o poder (poder de comandar ou de impedir) de uma diminui a liberdade em sentido negativo da outra e, vice-versa, à medida que a segunda amplia a sua esfera de liberdade diminui o poder da primeira (Bobbio, 1990, p. 20).

Destacamos, por fim, que esta apresentação do Estado de Direito, como o faz Bobbio, é uma interpretação de fundo liberal (aliás, o próprio título do livro já identifica: Liberalismo e Democracia), com suas vantagens, mas também com suas limitações ideológicas e até jurídicas. A seguir, veremos como é necessário conceituar a partir do curso histórico.


2. Estado de Direito – uma construção teórica

Segundo definição de Aderson de Menezes (1998), o Estado de Direito encontra-se enquanto teoria política e jurídica como um conceito vivo, devendo ser visto através da história - visto pela história, como construção jurídica relacionada à Teoria da Autolimitação do Poder Público (também tido, por isso, como Estado Jurídico 5). A Teoria da Autolimitação pode ser resumida na articulação interna ao Estado entre norma, coação e obrigação bilateral 6.

É de se ressaltar que, na atual Constituição brasileira, o Estado de Direito está protegido pelas cláusulas pétreas (conforme o art. 60, parágrafo 4º da CF/88). De forma exata, está disposto que a forma de organização federativa do Estado não pode ser abolida: o dispositivo constitucional aglutina e agasalha, além da Federação, a observância integral da democracia, do Estado de Direito e a divisão dos poderes.

Mas, será retomando interpretação de Von Ihering que Aderson de Menezes irá sugerir que na Teoria da Autolimitação também se encontra a matriz doutrinária condicionante das cláusulas pétreas. Vejamos em sua análise que o Direito deve proteger a sociedade do arbítrio:

Na fase atual da vida das sociedades, os dois elementos do Direito – a coação e a norma7 – são insuficientes para criar o que chamaremos o Estado Jurídico. Falta-lhe ainda um elemento – a norma bilateralmente obrigatória – em virtude do qual o próprio Estado se inclina diante das regras que editou e às quais de fato concede, enquanto existirem, o império que por ato seu lhes atribuiu. É o que chamaremos a ordem jurídica [...] O Estado ordena, o súdito obedece [...] A linguagem compreendeu bem este fato, quando designou a injustiça do Estado pelo nome de arbítrio (Willkür). O arbítrio é a injustiça do superior; distingue-se da do inferior, porque o primeiro tem a força a seu favor, ao passo que o segundo a tem contra si [...] Noção puramente negativa, o arbítrio supõe como antítese o direito, de que é a negação: não há arbítrio, se o povo ainda não reconheceu a força bilateralmente obrigatória das normas jurídicas [...] Acompanha, pois, a todo princípio de direito a segurança de que o Estado se obriga a si mesmo a cumpri-lo, a qual é uma garantia para os submetidos ao Direito [...] Não só se trata de conter a onipotência do Estado mediante a fixação de normas para a exteriorização de sua vontade, senão que trata de refrear-lhe mui especialmente, mediante o reconhecimento de direitos individuais garantidos. Esta garantia consiste em outorgar aos direitos protegidos o caráter de imutáveis (Menezes, 1998, p. 70-71).

Como se vê, a idéia de direitos imutáveis (ou direitos naturais que foram positivados como direitos ou como garantias fundamentais) refere-se à defesa da sociedade diante de um Estado que tende à centralização. Guardar o Direito que impede o arbítrio é o objetivo de toda cláusula de pedra. Portanto, neste caso, a proteção da cláusula pétrea é uma garantia democrática.

Da mesma forma define Canotilho, pois o Estado de Direito é um conceito altamente elaborado e dessa forma também não pode ser confundido com derivações, distorções ou deformações decorrentes do seu próprio emprego ou uso. Portanto, sendo-lhe essencial, seguindo Canotilho (1999). A divisão do poder lhe é inerente porque inibe naturalmente o arbítrio:

A separação de poderes, a garantia de direitos e liberdades, o pluralismo político e social, o direito de recurso contra abusos dos funcionários8, a subordinação da administração à lei constitucional, a fiscalização da constitucionalidade das leis [...] a publicidade crítica, a discussão e dissensos parlamentares e políticos, a autonomia da sociedade civil (Canotilho, 1999, p. 16).

O que Canotilho parece acentuar aqui seriam os atributos do Estado Democrático de Direito. Em suma, como proposto por Miguel Reale (2000, p. 37), atualmente, o Estado de Direito deve ser regulado pela Democracia: daí a fórmula do Estado Democrático de Direito. Porém, ainda restritos ao momento da criação, para vermos o âmago do Estado de Direito devemos atentar ao brocardo jurídico formulado no contexto do Estado Moderno: suportas a lei que criastes. É o que já dizia Radbruch na década de 1930:

Se a lei pressupõe o Estado como legislador, temos que observá-lo, antes de tudo, como fonte de praticamente todo o direito. O Estado, porém, não é apenas fonte do direito, é simultaneamente produto do direito: deriva sua Constituição, e com isso sua existência jurídica, do direito público. Sendo essa Constituição do Estado ela própria uma lei do Estado, encontramo-nos diante da contradição aparentemente insolúvel de que o Estado tem como pressuposto o direito público e, por outro lado, o direito público tem o Estado como pressuposto (Radbruch, 1999, p. 37).

É evidente que o texto é histórico, datado, e que pode ser lido como parte da História do Direito, porém, as lições da própria história devem ser tidas como observação de juízo por quem passou pela experiência. Desse ponto de vista, o autor já tratava do Estado Cultural no pré-guerra da década de 40:

De uma garantia expressa como essa resultam os direitos fundamentais das Constituições, como por exemplo a igualdade perante a lei, a liberdade pessoal, a inviolabilidade do domicílio e da correspondência, a liberdade de associação e de reunião, a liberdade de imprensa, de profissão, de coligação, de ir e vir. O traçado dos limites entre a atividade do Estado e a liberdade do cidadão está subordinado à história, como pode ser evidenciado através dos direitos econômicos, a liberdade de propriedade e de contrato; a antiga doutrina liberal desenvolvida especialmente por W. v. Humboldt (1792), de que o Estado enquanto ‘Estado de direito’ (em sentido restrito da palavra) deveria limitar-se a assegurar seus membros contra a injustiça, foi substituída pelo pensamento socialista de que o Estado, como ‘Estado Cultural’, deveria preocupar-se também com sua promoção positiva; mas para o pensamento constitucional é essencial que exista uma espécie de liberdade dos cidadãos separada do Estado, ao lado de sua participação no Estado, o que, em sentido menos restrito, também serve à idéia de Estado de direito (Radbruch, 1999, p. 43).

É interessante frisar, a exemplo do que faz Comparato (2001), que no Estado de Direito é elementar o primado do control judicial, ainda que muitos países ditos democráticos e constitucionais não respeitem suas imposições. Sobre esse aspecto da juridicidade estatal, ainda alegará Canotilho sobre a necessidade de sua verificação concreta, política, e não apenas jurídica. Pois, é este conjunto institucional que deve conter o governo e o poder, e é isto que o transformaria em governo de leis democráticas.

Governo das leis (e não de homens!) gerais e racionais, organização do poder segundo o princípio da divisão de poderes, primado do legislador, garantia de tribunais independentes, reconhecimento de direitos, liberdades e garantias, pluralismo político, funcionamento do sistema organizatório estadual subordinado aos princípios da responsabilidade e do controle, exercício do poder estadual através de instrumentos jurídicos constitucionalmente determinados (Canotilho, 1999, p. 20).

O próprio Canotilho reforçará ou repetirá o já alegado, como se estivesse sugerindo que é necessária a repetição para que novos elementos pudessem ser acrescidos ao conceito. Assim, caminham em paralelo o Estado de Direito, a política, o social e o ambiental. Partindo de uma visão moderna que articula todos esses dados, diz Canotilho que:

O Estado de Direito transporta princípios e valores materiais razoáveis para uma ordem humana de justiça e de paz. São eles: a liberdade do indivíduo, a segurança individual e coletiva, a responsabilidade e responsabilização dos titulares do poder, a igualdade de todos os cidadãos e a proibição de discriminação de indivíduos e grupos [...] e competências que permitam falar de um poder democrático, de uma soberania popular, de uma representação política, de uma separação de poderes, de fins e tarefas do Estado [...] Trata-se: (1) de um Estado de direito; (2) de um Estado constitucional; (3) de um Estado democrático; (4) de um Estado social; (5) de um Estado ambiental (1999, p. 21-22).

De forma semelhante, para Comparato (2001b) - ao menos é como se depreendeu -, trata-se do primado da garantia institucional, com início e vigência solenes decretados a partir do Bill Of Rigthts. Então, historicamente, é dada à Carta de Direitos britânica a primazia sobre o nascimento do Estado de Direito :

A instituição-chave para a limitação do poder monárquico e a garantia das liberdades na sociedade civil foi o Parlamento. A partir do Bill off Rights britânico, a idéia de um governo representativo, ainda que não de todo o povo, mas pelo menos de suas camadas superiores, começa a firmar-se como uma garantia institucional indispensável das liberdades civis (Comparato, 2001b, p. 47)9.

Para Canotilho (1999), no entanto, serão quatro as fases ou contribuições históricas que abrigaram os germes do Estado de Direito, em momentos distintos mas contaminados pelo mesmo espírito libertador e igualitário: a regra do direito (rule of law 10), na Inglaterra; o Estado de Legalidade (État légal), na França; o Estado Constitucional, nos EUA; o princípio do Estado de Direito (rechtsstaast), na Alemanha. E três serão os documentos de base desse período e modelo de Estado: o citado Bill Of Rights, a Constituição Americana e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na França de 1789.

Em Canotilho (1999), ainda teremos a posição teórica assumida estritamente em relação à concepção jurídica do Estado de Direito, como se tem na regra do direito ou no princípio da legalidade:

Em primeiro lugar, significa a obrigatoriedade da adoção de um processo justo legalmente regulado quando se torna necessário julgar e punir os cidadãos, privando-os da sua liberdade ou propriedade. Em segundo lugar, a regra do direito impõe a prevalência das leis e costumes do país perante a discricionariedade do poder real. A sujeição de todos os atos do poder executivo à soberania dos representantes do povo (parlamento) recorta-se como a terceira idéia da regra do direito 11. Finalmente, a regra do direito significa direito e igualdade de acesso aos tribunais por parte de qualquer indivíduo a fim de aí defender os seus direitos segundo os princípios do direito comum e perante qualquer entidade (pública ou privada) (1999, p. 24-25).

Devemos relembrar que o momento germinal do Estado de Direito é, de fato, um momento histórico em que uma concepção muito mais ampla e universal do Direito está sendo gerida, gestada. Mas, além das Declarações solenes de direitos prolatadas pelo próprio Estado, havia movimentos e documentos de cunho popular e crítico: um exemplo disso é que há uma Declaração Universal para os direitos femininos.

A DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER E DA CIDADÃ 12 , de Olympe de Gouges, ainda que de pouca circulação nos meios acadêmicos, é sintomática quanto ao espírito universal que ocupa a França desse período. Vejamos trechos do preâmbulo e alguns de seus principais artigos:

Em consequência, o sexo superior tanto na beleza quanto na coragem, em meio aos sofrimentos maternais, reconhece e declara, na presença e sob os auspícios do Ser superior, os Direitos seguintes da Mulher e da Cidadã:

ARTIGO PRIMEIRO: A mulher nasce e vive igual ao homem em direitos. As distinções sociais não podem ser fundadas a não ser no bem comum.

II: A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis da mulher e do homem: estes direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança, e sobretudo a resistência à opressão.

IV: A liberdade e a justiça consistem em devolver tudo o que pertence a outrem; assim, os exercícios dos direitos naturais da mulher não encontram outros limites senão na tirania perpétua que o homem lhe opõe; estes limites devem ser reformados pelas leis da natureza e da razão.

VI: A lei dever ser a expressão da vontade geral; todas as Cidadãs e Cidadãos devem contribuir pessoalmente ou através de seus representantes; à sua formação: todas as cidadãs e todos os cidadãos, sendo iguais aos seus olhos, devem ser igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo suas capacidades e sem outras distinções, a não ser aquelas decorrentes de suas virtudes e de seus talentos.

VII: Não cabe exceção a nenhuma mulher; ela será acusada, presa e detida nos casos determinados pela Lei. As mulheres obedecem tanto quanto os homens a esta lei rigorosa.

X: Ninguém deve ser hostilizado por suas opiniões, mesmo as fundamentais; a mulher tem o direito de subir ao cadafalso; ela deve igualmente ter o direito de subir à Tribuna; contanto que suas manifestações não perturbem a ordem pública estabelecida pela Lei.

XI: A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos direitos os mais preciosos da mulher, pois esta liberdade assegura a legitimidade dos pais em relação aos filhos. Toda cidadã pode, portanto, dizer livremente, eu sou a mãe de uma criança que vos pertence, sem que um prejulgado bárbaro a force a dissimular a verdade; cabe a ela responder pelo abuso a esta liberdade nos casos determinados pela Lei.

XII: A garantia dos Direitos da mulher e da cidadã necessita uma maior abrangência; esta garantia deve ser instituída para o benefício de todos e não para o interesse particular daquelas a que tal garantia é confiada.

XIV: As Cidadãs e os Cidadãos têm o direito de contestar, por eles próprios e seus representantes, a necessidade da contribuição pública. As cidadãs podem aderir a isto através da admissão em uma divisão igual, não somente em relação à adiministração pública, e de determinar a quota, a repartição, a cobrança e a duração do imposto.

XV: A massa das mulheres integrada, pela contribuição, à massa dos homens, tem o direito de exigir a todo agente público prestação de contas de sua administração 13.

Mas é um momento tão auspicioso que também reflete o que poderíamos chamar de democratização do Estado Moderno, visto que há diferenças de fundo, por exemplo, em relação à Carta de Direitos do Rei João Sem Terra, de 1215 14. É um processo histórico resultante de revoluções sociais e institucionais, e por isso se afirmou como processo de democratização do governo, bem como ocorreu uma constitucionalização da política e do poder. Teoricamente, o Estado de Direito em si seria mais democrático porque já viria controlado pelo Direito, a Justiça lhe seria um tema interno e, portanto, inerente ao próprio Estado. Daí a idéia de um Estado Jurídico – um Estado mais justo.


3. Estado de Direito, Jurídico ou Judiciário

No Estado de Direito prevalece o princípio da isonomia (equiparar para buscar e auferir igualdade entre os sujeitos de direito) 15 e de onde decorre, é claro, a própria igualdade formal (todos são iguais perante a lei), a liberdade negativa 16 e a equidade 17.

Já no Estado Jurídico o princípio fundador é o da autolimitação do Poder Político (funcionando como mecanismo de elevação ou de aprofundamento dos níveis de juridicidade do Poder Político), quando o Direito e os meios democráticos tendem a controlar melhor o poder do Estado – por exemplo, garantindo a institucionalização da separação dos poderes.

O Estado Jurídico pode ser sinônimo de Estado Judiciário, mas ressalve-se que isto se verificará apenas se atentarmos para a ocorrência de uma eficiente 18 separação dos poderes e que disso, inevitavelmente, também resulte uma maior desenvoltura (autonomia e interdependência) do Poder Judiciário.

O Estado Jurídico ainda pode ser entendido como uma fase do Estado de Direito, quando conferimos maior grau de juridicidade à resolução dos conflitos políticos – portanto, sendo o Estado de Direito precedente, o Estado Jurídico lhe é decorrente 19. O que se acentua aqui é realmente esse maior grau de juridicidade, mas, no fundo, são como duas fases ou faces do mesmo conceito, e que vêm sendo elaborados desde o século XVII. Porém, será um outro modelo de Estado, principalmente se compreendermos que ganhou impulso com as novas formas instauradas pelo chamado Estado Capitalista a partir do século XVIII (a fase mercantilista do capital).

No mais, nessa análise do Estado de Direito, do Estado Jurídico (Judiciário) e do Estado Judicial 20, pretendemos destacar uma noção crítica, mas acima de tudo teleológica, do Direito e do Estado. Por crítica, entenda-se a análise que ressalta aspectos ideológicos que estão na base do Direito e do Estado como, por exemplo, as artimanhas e as chicanas que obscurecem e embargam nossa compreensão acerca da realidade política.

Já por perspectiva teleológica (ainda que redundante) destacamos a necessária interpretação que busca no Estado os meios necessários à realização das finalidades sociais, populares e democráticas desse mesmo Poder Político. Pois, sem isso, não há projeto social e político que resista às formas autoritárias do poder, às injustiças, aos privilégios ou às mesquinharias dos donos do poder. Mas não se veja nas afirmações nenhuma imputação de verdade ou determinação absoluta e irrefreável do poder, pois, historicamente, é fácil notar que a capacidade teleológica da sociedade civil é sempre superior aos Estados abusivos.

Por fim, podemos dizer que aplicar o Direito Justo é promover uma revolução na estrutura social e política que porventura ainda se mantenha atrelada a benefícios injustos. E nisto, ao propor a Justiça por meio do Direito, o Estado de Direito é inovador e revolucionário. Principalmente num país como o Brasil, em que o Direito mantém uma relação inversamente proporcional às necessidades sociais dos mais pobres.

3.1. Estado de Direito Revolucionário

Desse modo, considerar a prática política e jurídica (legítima) do Estado de Direito, no Brasil, em si já seria um procedimento revolucionário. Se a lei não muda nada por si mesma, a vontade de se aplicar este conjunto legal à realidade sócio-econômica seria o estampido da mudança social - justamente por envolver a ação política de transformação necessária à própria aplicação de um Direito Justo. Ou, mais simplesmente, só uma vontade política nova pode ser aplicada a um direito novo – a prática do Estado de Direito, para nós, seria esse Direito novo, especialmente nos rincões e nos sertões, mas também nos grandes centros urbanos favelados. Para esta definição, vou utilizar-me de Carré de Malberg, um francês chocado com a Primeira Guerra e pronto a defender a lei contra a violência. Diz Malberg (2001) 21:

"Por Estado de Direito se deve entender um Estado que, em suas relações com seus súditos e para a garantia do estatuto individual, submete-se ele mesmo a um regime de direito, porquanto encadeia sua ação em respeito a eles, por um conjunto de regras, das quais umas determinam os direitos outorgados aos cidadãos e outras estabelecem previamente as vias e os meios que poderão se empregar com o objetivo de realizar os fins estatais: duas classes de regras que têm por efeito comum limitar o poder do Estado subordinando-o à ordem jurídica que consagram".

"Uma característica do regime do Estado de Direito consiste precisamente em que, com respeito aos administrados, a autoridade administrativa somente pode empregar meios autorizados pela ordem jurídica vigente, especialmente pelas leis. Isto implica duas coisas: por um lado, quando entra em relação com os administrados, a autoridade administrativa não pode ir contra as leis existentes, nem se apartar delas, ela está obrigada a respeitar a lei. Por outro lado, no Estado de Direito em que se tenha alcançado seu completo desenvolvimento, a autoridade administrativa não pode impor nada aos administrados se não for em virtude da lei, e não pode aplicar, com respeito a eles, senão as medidas previstas explicitamente pelas leis ou ao menos implicitamente autorizadas por elas; o administrador que exige de um cidadão um feito ou uma abstenção deve começar por mostrar-lhe o texto da lei de onde toma o poder para dirigir-lhe esse mandamento".

"Por conseguinte, em suas relações com os administrados, a autoridade administrativa não deve somente abster-se de atuar contra legem senão que ademais está obrigada a atuar somente secundum legem, ou seja, em virtude das habilitações legais. Finalmente, o regime do Estado de Direito implica essencialmente que as regras limitantes que o Estado impôs a si mesmo, em interesse de seus súditos, poderão ser alegadas por estes da mesma maneira que se alega o direito, já que somente com esta condição terão de constituir, para o súdito, verdadeiro direito".

"O Estado de Direito é então aquele que, ao mesmo tempo, formula prescrições relativas ao exercício do seu poder administrativo, e assegura aos administrados, como sanção de ditas regras, um poder jurídico de atuar ante uma autoridade jurisdicional com o objetivo de obter a anulação, a reforma ou pelo menos a não aplicação dos atos administrativos que as tiveram infringido. Portanto, o regime do Estado de Direito se estabelece em interesse dos cidadãos e tem por fim especial preservá-los e defendê-los contra a arbitrariedade das autoridades estatais".

"O regime do Estado de Direito significa que não poderão impor-se aos cidadãos outras medidas administrativas, que não sejam aquelas que estejam autorizadas pela ordem jurídica vigente, e, por conseguinte, exige-se a subordinação da administração tanto aos regulamentos administrativos quanto às leis. Não se pode confundir, entretanto, esta fórmula governamental com aquela que se conhece habitualmente sob o nome de governo convencional 22".

"Ademais, o desenvolvimento natural do princípio sobre o qual descansa o Estado de Direito, implicaria que o próprio legislador não pode, mediante leis feitas a título particular, derrogar as regras gerais consagradas pela legislação existente. Estaria igualmente de acordo com o espírito de dito regime que a Constituição determinasse princípios e normas superiores, e garantisse aos cidadãos aqueles direitos individuais que devem permanecer fora do alcance do legislador 23. O regime do Estado de Direito é um sistema de limitação, não somente das autoridades administrativas, senão também do corpo legislativo".

"Mas, por outro, não se há elevado o Estado de Direito até a perfeição, pois, se bem se assegura aos administrados uma proteção eficaz contra as autoridades executivas, não se obriga o legislador a um princípio de respeito do direito individual que deva impor-se a ele de um modo absoluto. Para que o Estado de Direito se encontre realizado, é indispensável, em efeito, que os cidadãos estejam providos de uma ação de justiça, que lhes permita atacar aos atos estatais viciosos que lesionem seu direito individual 24".

"A Constituição não somente exige que o administrador atue intra legem, senão que lhe manda atuar secundum legem, no sentido de que todo ato administrativo deve fundar-se em leis que lhe autorizem, ou nas quais busque a execução. Neste sentido está certo afirmar, sem forçar o alcance natural das palavras, que a administração é somente um poder de ordem executiva. A expressão função executiva traduz unicamente a idéia de que a atividade das autoridades, diferente do legislador, apenas pode exercer-se em virtude das leis; mas não existe nenhuma categoria particular de atos que sejam, pela sua mesma natureza, atos executivos".

"Em síntese: 1º O Estado de Direito se estabelece simples e unicamente em interesse e para a salvaguarda dos cidadãos: só tende a assegurar a proteção do seu direito ou do seu estatuto individual; 2º O sistema do Estado de Direito se encontra estabelecido atualmente na maior parte dos Estados, pelo menos no que se refere ao poder administrativo; 3º O sistema do Estado de Direito, por mais que tenha um alcance menos absoluto que o do sistema do Estado legal, enquanto a extensão do poder administrativo, possui, em outros aspectos, um alcance maior que este último".

O democrático e legítimo no Estado de Direito está no fato de que se interpôs o Direito e suas garantias como obstáculo à extrema concentração do poder e ao arbítrio que lhe seria obviamente decorrente.

Transpondo as observações, é como se disséssemos que o Estado de Direito no Brasil seria revolucionário por transformar-se em "legitimidade política" e assim nos rogaria alguma "legalidade administrativa". Esse foi, relativamente, o curso de legalização e de burocratização por que passou o Estado Constitucional revolucionário, desde a origem, em direção à sua transformação institucional (institucionalização da política) na forma do Estado de Direito. Desse curso também adveio a idéia-matriz da Constituição, a idéia-força que lhe daria suporte legal, e isto seria uma espécie de positivação do Estado Constitucional, isto é, um Estado Constitucional positivado é um Estado de Direito Positivo 25.

3.2. Características e Princípios Elementares do Estado de Direito 26

  • Trata-se de um projeto acadêmico – não é político e nem transformador da sociedade. No fundo, é conservador do status quo definido pelo Direito vigente. Assegura o capitalismo: a exemplo de que o principal direito individual é o clássico direito à propriedade.

  • Instaurou uma base formal e burocrática: dominação racional-legal.

  • Instaurou princípios administrativos: formalidade, impessoalidade, imparcialidade. Esses princípios deveriam atestar um processo de legitimação lastreado na força da lei. A forma é a da lei e a fôrma é a do próprio Estado de Direito.

  • Instituiu princípios políticos básicos ao Direito Moderno: eficiência, probidade.

  • Instituiu princípios jurídicos básicos ao Direito Moderno: razoabilidade, proporcionalidade, neutralidade, racionalidade, objetividade, fundamentação, previsibilidade, igualdade, isonomia.

  • Configurou princípios processuais elementares, como legalidade ou liberdade negativa. Trata-se do ponto de vista de quem vê (cidadão) ou do que se vê (a lei).

  • Assegurou a personalidade jurídica do Estado.

  • Trouxe a responsabilidade objetiva do Estado – mas também obriga o servidor a tê-la.

  • Sinalizou as finalidades precípuas (políticas, teleológicas) do Estado: a partir da própria promessa de assegurar a plenificação da Justiça.

  • Reafirmou o monopólio legal do uso legítimo da força física pelo Estado: deve-se pautar pelos princípios da transparência e da clareza. A corrupção procura o anonimato.

  • Destacou o monismo jurídico = monopólio da produção legislativa: com relevo para o papel do Estado como produtor do Direito ("o acordo faz lei entre as partes" – porém, mesmo assim, o Estado deve dar o aval ou a chancela final que atesta sua validade).

  • Sinalizou para o governo das leis: o que não impede a personificação do poder 27.

  • É da ordem do Direito Posto ou Positivo (diz respeito a tudo o que guarda proximidade com o chamado ordenamento jurídico). Não se trata de Justiça Social . Sob essa questão, não há Direito Proposto.

  • Sistematizou os direitos políticos (denominados de 2ª Geração).

  • Refere-se à segurança jurídica (art. 5º CF/88) e à Ordem Pública (art. 144. CF/88). Ainda que não se destaque, da mesma forma, a Ordem Pública.

  • Delimitou critérios para se auferir a solenidade e a publicidade da lei: a lei precisa ser conhecida pelo povo, para que este não alegue ignorância da lei e aí cometer crimes (aspecto jurídico). "O povo precisa (re)conhecer a lei para julgá-la e modificá-la ou não" (aspecto político).

  • A Constituição ocupa o ápice da hierarquia nas relações jurídicas.

  • Pode existir tanto na República, quanto nos regimes de monarquias constitucionais.

  • Estabeleceu a prevalência do interesse público sobre o privado: no caso brasileiro, o problema está em equacionar a herança cultural, política e jurídica deixada pelo servilismo e por toda influência do patrimonialismo.

  • Estabeleceu a função estatal pacificadora (Jurisdição): poder do Estado de estabelecer e impor a Justiça; capacidade jurídica (institucional) do Estado em definir e decidir imperativamente, de impor decisões peremptórias (categóricas).

  • Delimitou as instituições formadoras, as circunstâncias e o alcance do chamado "Poder Extroverso": os atos administrativos e seus efeitos se impõem a terceiros igualmente e independentemente de sua concordância ou anuência. Os cidadãos são atingidos quer concorram de alguma maneira para a consecução dos efeitos dos atos administrativos ou não.

  • Instituiu aspectos mais democráticos (racionais) de acesso ao Poder Judiciário.

  • Instituiu condições de oferta razoáveis para o oferecimento e desenvolvimento da Justiça Formal.

  • Indicou a necessidade da vigência de outros princípios elementares 28 : a) reserva legal 29; b) juiz natural; c) devido processo legal; d) ampla defesa; e) representação; f) contraditório; g) oralidade; h) imparcialidade do juiz; i) duplo grau de jurisdição; j) igualdade na relação jurídico-processual 30; k) presidencialismo; l) livre convicção do juiz; m) persuasão racional do juiz; n) equidade; o) economia processual: celeridade.

  • Apresentou desde o início três elementos básicos: 1) divisão dos poderes 31; 2) império da lei (Rule of Law); 3) primado dos direitos individuais 32.

  • Simbolizou uma salvaguarda jurídica do cidadão perante as ações ofensivas do Estado 33 .

  • Implementou a idéia da necessidade dos princípios fundamentais (direito à vida, dignidade da pessoa humana), além da conquista das garantias dos direitos (a cada direito corresponde a previsão de uma ação e de sua garantia).

  • Por isso, é um tributo à liberdade (mesmo que se restrinja à chamada liberdade negativa).

  • Mas, poderia ter ofertado, criado, pois seria um curso natural, uma base material (processual, objetiva, institucional) para uma maior ou real materialização dos Princípios Gerais do Direito: honeste vivere (viver honestamente), alterum non laedere (não prejudicar ao próximo), suum cuique tribuere (dar a cada um o que lhe pertence).

  • Neste sentido, também poderia ter incorporado de forma presente os preceitos do Estado Constitucional (moderno constitucionalismo) e não só formalmente, alusivamente, ilusionariamente.

  • O ideal republicano, datado do Império Romano, de doar-se plenamente pelo público, também se diluiu em meio aos princípios formais.

  • Resta-nos definir e colocar em prática os Princípios Reais da Justiça.

A razão que existe entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade revela que a cada ação corresponde uma reação de igual valor ou de força equivalente.

Deve haver uma razoável proporção entre os meios empregados e os fins almejados, ou seja, deve haver uma adequação entre meios e fins (ou proporção satisfatória, satisfativa na relação custo-benefício). Portanto, de acordo com os princípios administrativos arrolados, não se aplica a regra política de que os fins justificam os meios.

Na essência são tidos como sinônimos, os princípios da legalidade e da liberdade negativa. Mas há diferenças, se entendermos que essas diferenças não serão essenciais.

  • Legalidade – a pergunta é: o quê? Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo (alguma coisa, qualquer coisa) senão em virtude da lei. Assim, o que se destaca é a lei (fazer ou omitir-se em razão da lei). Neste caso, o foco ou o destaque está na lei.

  • Liberdade Negativa – a pergunta é: quem? Quem é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo? Portanto, refere-se ao indivíduo, ao cidadão, ao próprio sujeito de direitos.

Tendo-se o Estado como referência, o que muda é a angulação em que se projeta um determinado ponto de vista, ou seja, se de cima para baixo ou se, ao contrário, de baixo para cima. Pelo princípio da legalidade, o Estado edita normas e se vê obrigado ao cumprimento dessas normas, portanto, ao agir assim, o Estado cria normas e responsabilidades para si mesmo (desse modo, o movimento é de cima para baixo).

Já pelo viés do princípio da liberdade negativa, olhando-se de baixo para cima, trata-se de se assegurar direitos e garantias que salvaguardem o cidadão perante as ações abusivas do próprio Estado (deve-se lembrar especialmente, neste caso, dos chamados remédios jurídicos e das garantias constitucionais).


4. Estado de Direito Positivo

Como vimos, Robert Von Mohl, o jurista alemão que formulou o conteúdo-base da expressão Estado de Direito, tinha em mente antes de tudo a regulação dos poderes do Estado, na esteira liberal de que a garantia dos direitos individuais seria o melhor remédio de contenção dos ímpetos centralizadores do Estado Moderno. Ou como nos diz Jorge Miranda:

Robert Von Mohl, considerado o autor que lançou o conceito, dizia que a idéia em que se fundamentava o Estado de Direito se resumia nisto: o desenvolvimento o mais humano possível de todas as forças humanas em cada um dos indivíduos (Polizei, 1841, Concepto de policia y Estado de Derecho, in Liberalismo aleman em el siglo XIX – 1815-1848, coletânea de estudos, trad., Madrid, 1987, p. 141). E acrescentava: 'ninguém pode ser sacrificado como um meio ou como uma vítima à idéia de todo' (pág. 142); 'nenhum direito deve ficar sem proteção, (mesmo que) seja demasiado insignificante para o Estado' (pág. 143); 'estado de Direito exige proteção jurídica' (pág. 144) (Miranda, 2000, p. 86).

Quando cita Mohl, ao dizer que Ninguém pode ser sacrificado como um meio ou como uma vítima à idéia do todo, Miranda (2000) está inferindo que o Estado não se sobrepõe ao indivíduo em termos jurídicos, posto que deve prevalecer e se afirmar o princípio de que vige a personalidade jurídica do Estado. O Estado é o responsável pela segurança do princípio da legalidade, da mesma forma como está submetido às suas imposições.

4.1. O Direito Constituído Pela Cultura

Nesse modelo de Estado, é óbvio – mas é preciso afirmar -, o Direito vai progressivamente, constantemente, tornando-se positivo ou positivado. Trata-se do Direito Posto que foi regularizado pela força das instituições positivas do Estado e, já contando com essa força de lei, o Direito também se afastou gradualmente das motivações embrionárias ou revolucionárias que lhe deram origem.

A reivindicação dos direitos antes promovida pela sociedade, e que gradativamente se dá com a promulgação do próprio Direito, torna-se Direito Posto. De emissário, o Poder Social torna-se submisso ao próprio Estado, pois o requerimento social e político vai-se tornando mera instituição do Estado. A força do Poder Social é transviada na forma de regramento do Poder Político – desse modo, as proposituras do direito à revolução acabam como parte integrante do Estado. O direito estranho acaba como política doméstica.

Para visualizar esse efeito de conversação institucional, tomemos basicamente o exemplo da Revolução Francesa e do processo de positivação de direitos que se seguiu até a Constituição de 1793. Posterior a 1793, praticamente tem-se o fim da experiência apelidada pelos franceses de Estado Legal: quando o povo saía às ruas para requerer o cumprimento dos seus direitos, das promessas revolucionárias de 1789.

Desse modo, de Estado Revolucionário (1789-1793), a revolução transformou o Estado francês em simples Estado de Direito Positivo. Este que é, aliás, uma típica modalidade de Estado, em que o conjunto geral do Direito é mais formal do que propriamente resultado de sua fase criadora - da revolução que lhe forneceu toda a bagagem restou apenas o emblema. A partir de 1793, na França, toda a força criativa e inovadora do Poder Constituinte (Revolucionário 34) se converteu em Poderes Constituídos, agora mais a serviço da manutenção do próprio Estado 35.

Aos poucos, mas com a postura impositiva da lei e sob a força coercitiva e punitiva do Estado – isto é, como externalidade jurídica da coerção aplicada pelo Estado à sociedade, por meio do Direito –, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (expressiva do Poder Social) se transfigurou na Primeira Constituição Francesa (como regulação do Poder Político). Entre a Declaração e a Constituição, interpôs-se um processo de institucionalização, em que o Poder Social acabaria subsumido na forma rígida do Poder Político. Mas, o que foi essa Declaração de Direitos?

Quando se diz que toda Declaração de Direitos expressa o Poder Social, também se quer dizer que aí estão relatados os direitos da sociedade, do povo, pois a Declaração de Direitos procura expressar a Vontade Geral. Por sua vez, a Vontade Geral é mais significativa do que a vontade da maioria, ou seja, não se confunde absolutamente com a somatória das idéias porque se exige capacidade de negociação – a política atua como plus social.

Por outro lado, a Declaração de Direitos não traz muito mais do que uma razoável relação de princípios. Pelo fato de não ir muito além de uma intenção de direitos (mesmo que sólida), também não vai muito além de um projeto político de direitos populares e não deixa de ser uma proposição teórica (por mais vontade popular que ela expresse 36). Sob essa condição, a Constituição é muito mais pragmática e política, pois sob efeito da positivação, a Constituição deve positivar a política real, concreta. Mesmo o possível dever-ser postado na Constituição Normativa ou Dirigente 37 deve ser compreendido como parte do Direito Constitucional Positivo.

4.2. A Constituição Sistemática de Uma Regra só Para o Estado

Em que se diferencia uma Declaração de uma Constituição?

A Constituição, ao contrário da Declaração, expressa o Poder Político: o Poder Social simplificado, sistematizado ou tornado "inofensivo" pelo Estado. A Constituição, entretanto, realça os chamados "direitos do Estado", bem como o contorno e os limites políticos e institucionais do Estado 38. Assim é que se tem um Estado de Direito Constituído ou Estado de Direito Positivo.

Na Constituição - ou ao longo do andamento do processo de constitucionalização do poder social - há uma positivação das principais intenções do projeto político originário. Esse processo de subsunção é uma "fase política" em que sistematicamente a Vontade Geral vai sendo sacralizada, pasteurizada e positivada pelo poder normatizador, regulador do Estado. E, neste sentido, o Estado de Direito será conservador (uma tendência a manter o próprio Direito Posto) se comparado ao Estado Constitucional – isto vale para a França pós-1789, como vale para o Brasil de hoje.

Com essa constitucionalização também se inicia e se fortalece o processo de aproximação, de equivalência (de subsunção) entre Poder Político e Poder Público, entre Estado e Vontade Geral. Esta Vontade Geral é a que se vê transformada em Vontade Comum, em vontade da maioria depositada nos referendos regulares do Estado, por exemplo, nas eleições. Dessa equivalência entre Poder Público e Estado, por sua vez, deriva a transformação orgânica/institucional da Vontade Geral em ordem pública.

Neste curso, há transformação da política em lei, com prejuízo da ação política que agora se administra pela burocracia ou pela via legal. As manifestações populares contra possíveis ações de Governo (até mesmo as mais pontuais ou localizadas) são interpretadas como ações contra a ordem pública, contra o Estado. Desse modo, utilizando uma expressão da época (França pós-1789), o Estado Legal vai sendo reduzido a Estado de Direito Positivo. Note-se que esta confusão entre Estado e Governo não é ocasional, mas sim parte do próprio projeto político fundacional do Estado de Direito.

No Estado Legal, o povo questionava a ordem, porque queria veementemente rever, subverter o status quo ante, porque queria revolucionar o Estado Absolutista que servia ao Antigo Regime. No Estado Legal, o povo procurava aprofundar a realidade dos seus direitos, pois buscava as garantias políticas da liberdade, da igualdade, da fraternidade.

Por outro lado, no Estado de Direito Positivo que decorre da Constituição Formal, o povo questionador de seus direitos se vê tratado como subversivo (da ordem jurídica formal), como baderneiro, como insuflador, como pólo crítico, porque estaria se portando como antiestatal. Enfim, ao invés de Vontade Geral Popular e Revolucionária, a França (pós-1793) fez valer a Vontade da Administração Pública.

Com o fim do Estado Legal, viu-se uma mudança nos pólos: no lugar do Poder Constituinte (criador, transformador), afinaram-se os Poderes Constituídos; no lugar do Direito à Revolução, vieram os Direitos do Estado; no lugar da política divergente, pôs-se a lei reguladora/uniformizadora; em substituição ao direito político e constitucional viu-se afirmar o Direito Administrativo; como resposta às pressões sociais, insurgentes, foi posto um Direito Positivo uniforme; como resposta à sociedade, adveio o peso da máquina da Administração Pública.

Em suma, daí por diante, na vigência desse processo de institucionalização (em que o Direito é simplesmente posto), estabeleceu-se o Estado de Direito Positivo em oposição ao Direito Propositivo de outrora; em substituição ao processo político inclusivo do povo, abateu-se uma rotina jurídica focada no Estado. Enfim, em contrapartida ao Direito Proposto, passou a vigir com força total um Estado de Direito Posto. No lugar do Estado Constitucional (iminentemente político) adveio, interpôs-se, institucionalizou-se o Estado de Direito (eminentemente jurídico).

Na Constituição Brasileira de 1988, essa questão da ordem pública é destacada de acordo com a premissa de que o legislador deveria cuidar do status quo (vale dizer, do sistema de propriedades), como tarefa destinada especificamente às polícias e não ao Poder Judiciário. Vejamos o texto da CF/88:

CAPÍTULO III

DA SEGURANÇA PÚBLICA

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I - polícia federal;

II - polícia rodoviária federal;

III - polícia ferroviária federal;

IV - polícias civis;

V - polícias militares e corpos de bombeiros militares (grifos nossos) 39.

Além da destinação dada à Polícia Federal e que consta dos artigos seguintes, não há dúvida de que a ordem pública (ao contrário da Ordem Jurídica) é uma questão meramente de polícia (repressão, coerção), e não de Direito, de Justiça. Essa questão deveria ter sido contornada, resolvida pela Constituinte de 1986, quando se discutia o modelo de Estado que iríamos implantar na abertura, assim como a democracia que nascia. Mas, o que deve ser uma Constituição no sentido estrito?

4.3. O Estado de Direito é um "Constituir-se": trata-se da constituição do social e da política

O conceito de "Constituição" é um complexo, mas tanto se compreende como verbo, quanto como substantivo, além de ser um conjunto de regras, de posições políticas e sociais mais ou menos definidas e/ou ideais sociais e coletivos que podem orientar a Nação, o Governo e o Estado. Portanto, a Constituição (em maiúsculo) como substantivo político-jurídico, atua como condição teleológica do Povo. E é essa articulação que talvez possa receber o título de Estado de Direito Constitucional.

Em síntese, a palavra "constituição" é empregada com vários significados, tais como:

  • conjunto de elementos essenciais de alguma coisa.

  • organização, composição ou formação.

  • conjunto de normas que regem uma instituição.

  • ato de se estabelecer questões jurídicas – a exemplo da constituição de uma sociedade anônima.

  • lei fundamental de um Estado.

No nosso caso, especificamente, estamos falando da Constituição de um Estado, considerando-se como sua lei fundamental. Seria, então, a organização dos elementos essenciais, fundamentais, estruturais do Estado. No dizer de José Afonso da Silva, trata-se de: "um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos e os limites de sua ação" (1991, p. 38).

Podemos dizer que a Constituição é o conjunto de normas que organizam os elementos constitutivos ou os componentes do Estado, tais como sua organização política, econômica, jurídica, social, territorial, ambiental, cultural.

Há autores que conceituam a Constituição sob o aspecto meramente jurídico, outros preferem uma entonação sociológica ou ainda política. Entretanto, entendemos que não se pode prescindir de nenhuma análise, pois o tema não pode ser abordado de forma isolada. A análise que privilegia o conjunto formado de Constituição, Estado de Direito, Democracia, Direitos Humanos e Políticas Públicas Populares deve ser mantida a todo custo.

De certo modo, precisamos redobrar os esforços para analisar esse encontro infindável entre Política e Direito (entre motivação ou pressão política e decisão jurídica) como se tivéssemos uma hermenêutica constitucional global, articulada e sistêmica. Não podemos perder o sentido dialético, essa integração existente entre os vários conteúdos da vida coletiva, que devem ser levados em conta no momento da elaboração de um ordenamento fundamental e considerado supremo, como é o caso da Constituição, e de onde decorrem as demais leis.

Todo conceito jurídico mantém uma relação íntima, ontológica com a história política que o precede e por isso o cerca. Não se trata, portanto, de uma evolução doutrinária pura e simples, mas atua como mecanismo jurídico em contato estrito com o Poder. Com essa postura, deixamos de lado as meras formalidades do Estado de Direito, em busca da legitimidade e do empuxo de sociabilidade que se abriga no Direito Justo.

Desse modo, ainda, a Constituição não deve ser vista apenas como uma norma pura, em seu sentido meramente jurídico, mas como norma que resulta da conexão, da interação com a realidade social que nos cerca, que é o que lhe dá conteúdo e significado, razão de sua existência. Assim, a Constituição do moderno Estado de Direito (Estado Democrático de Direito Social) deve ser vista como o elo entre a Política, o Direito e a Sociedade.

Vista somente pelo ângulo político, definimos Constituição como um conjunto de normas que organizam os elementos constitutivos do Poder Político, pois não há como falar em política sem pensar na relação intrínseca que esta tem com a comunidade, com o destino das pessoas, com o modo de vida e de produção de determinado grupo social. Tanto quanto outras ciências dinâmicas, a Ciência Política e a Teoria do Estado são essencialmente dialéticas, emaranhadas em todos os aspectos da vida, na atualidade, estando presentes na mais simples organização social da vida humana.

Em seu aspecto sociológico, a Constituição corresponde à soma dos "fatores reais do poder que vigoram em um país" (Chimenti, 2005, p. 3), identificados na atuação e na força dos principais movimentos sociais organizados no Brasil como, por exemplo: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), as Centrais Sindicais, as Federações Empresariais, as organizações militares, as organizações civis de defesa do consumidor ou de determinado grupo econômico, a força dos produtores rurais, das organizações não-governamentais de defesa do meio ambiente ou ainda das minorias como é o caso dos portadores de deficiência, dos homossexuais, dos negros, das mulheres, dos povos da floresta e tantos mais.

Por essa ótica, a Constituição é o resultado da atuação e da reivindicação dos movimentos sociais que dão força e impulsionam a produção de leis que vigoram em determinado ordenamento jurídico. Significa dizer, em suma, que o ordenamento jurídico de determinado Estado deve adequar-se à realidade social de seu povo, à sua história, à ontologia e à dinâmica social, e, mais do que qualquer outra coisa, estar a serviço da promoção do bem público e geral 40. Como afirma Renato Janine Ribeiro, este seria o objetivo do Estado de Direito:

A república está associada ao direito. A modernidade em política constrói duas grandes obras. Uma é a democracia. A outra, mais antiga, avançando desde a Renascença, é o Estado de Direito — ou seja, a idéia de obedecer à lei e não ao arbítrio do poderoso. Em tese, o Estado de Direito não precisa ser democrático. Uma aristocracia de magistrados honestos poderia aplicar imparcialmente a lei 41. É o que se chama o império da lei, rule of law. Mas essa consagração da lei acima dos interesses particulares já significa que ela é coisa pública e não privada. Há aí o princípio republicano da prioridade conferida à res publica (Ribeiro, 2001, p. 65).

Ainda seguindo Renato Janine Ribeiro, o mesmo Estado de Direito — mas agora sob a vigência da República —, no entanto, teria de apresentar um cunho mais fático e incisivo do ponto de vista político. De certo modo, com esse tom político abandonamos o reduto jurídico: "A república é o regime em que a democracia entra no Estado de Direito. Convicções democráticas podem levar a uma revolução, mas o que a converterá em Estado e em direito, em duração, são princípios republicanos. A democracia precisa da república" (Ribeiro, 2001, p. 65).

Contudo, há reveses históricos em que o Estado de Direito se distancia de modo proposital em relação ao Poder Popular e à delimitação democrática. Caso clássico é a passagem do chamado Estado Legal (sob a Revolução Francesa de 1789) e a posterior confirmação do Estado de Direito francês, pós-1789. Mais uma vez com Renato Janine Ribeiro:

Veja-se a Revolução Francesa. Nos anos que a precedem, quem mais enfrenta o arbítrio do rei são os juízes do Parlamento de Paris, que, apesar do nome, é um tribunal e não uma assembléia eleita. Eles assinam documentos corajosos, são banidos, batem-se com denodo para o país ter uma Constituição. Em apenas dois anos, porém, sem terem mudado de ideais, eles passam da oposição radical para a retranca mais conservadora: em 1790 já está evidente que eles defendem seus privilégios, os cargos que possuem (por herança ou compra), a posição de interlocutores destacados do rei, de representantes não-eleitos da sociedade. À medida que aumenta a liberdade de expressão e organização, a sociedade passa a falar por si, a organizar-se, e não mais a casta de juízes como seu porta-voz e tutor (Ribeiro, 2001, pp. 65-66).

Estava assim configurado o Estado de Direito Positivo, sob o sentido preciso de que, a partir de então, tratar-se-ia de um estatuto político conservador e mantenedor da ordem jurídica, do status quo. Exatamente pelos motivos já aventados, a Constituição não pode ser vista, interpretada ou compreendida, se não se tiver em mente essa estrutura de conexão entre as faces jurídicas (formal), sociais (resultado da valoração das relações sociais humanas) e políticas: como organização do poder estatal.

Portanto, a Constituição é um complexo, um somatório de elementos que se entrelaçam em um todo, formando uma unidade, e como resultado das diversas nuances da vida comunitária, dos desejos e anseios de um povo. Por isso mesmo, diz-se que a Constituição é norma fundamental, essencial, suprema, e que no nosso entendimento, para ser legítima, deve ter como base de formação e de transformação o poder que emana do povo e que para ele deveria ser dirigido. E mesmo que se saiba que o Estado de Direito é mais dominado por grupos políticos hegemônicos do que legitimado pelo referendo popular – fenômeno típico de dominação que a crítica social sustenta, ou seja, que a lei está mais próxima do Poder Econômico do que jamais esteve do Poder Popular.

4.4. Estado de Direito e Constituição

4.4.1. Regras Básicas Para Uma Constituição Legítima e Justa

Para Dallari, a Constituição moderna 42 veio à lume para satisfazer três requisitos básicos, de ordem política, econômica e institucional. Primeiro, procurou-se definir e assegurar a liberdade econômica da burguesia e a igualdade necessária para ajuizar de acordo com seus interesses de classe:

A liberdade era entendida como a possibilidade de agir, de celebrar contratos, de realizar negócios e de utilizar o patrimônio sem nenhuma interferência do governo. E a igualdade significava o direito de participar do governo, de ter acesso à educação, de freqüentar os lugares mais refinados, ou seja, de fazer tudo o que até então só era permitido aos nobres (Dallari, 1985, p. 11).

Depois, em segundo lugar, o critério político-institucional tramava a limitação do próprio poder político, isto é, instigava-se a idéia de que era necessário assegurar-se permanentemente o controle e a distribuição do poder. Por fim, a terceira motivação, mas não menos importante, previa a racionalização da sociedade e do governo. Em resumo: "Assim nasceu a Constituição, tendo por objetivos declarar e assegurar os direitos fundamentais dos indivíduos, disciplinar o uso do poder e promover a organização racional da sociedade e do governo, impedindo que o poder político fosse concentrado nas mãos de um ou de alguns" (1985, p. 12). A Constituição, portanto, nasceu intencionalmente atrelada ao sistema de poder.

Do século XVIII ao século XX, algumas coisas mudaram e, conceitualmente falando, mudaram muito. Hoje, por exemplo, percebe-se mais claramente o alcance que a economia tem sobre o Direito:

No século dezoito a afirmação da necessidade de liberdade foi feita em favor dos que já tinham poder econômico [...] Nas sociedades industriais do fim do século vinte o principal inimigo da liberdade individual nem sempre é o poder público. Freqüentemente um indivíduo muito rico ou um poderoso grupo econômico reduzem seriamente a liberdade de muitos indivíduos, ou mesmo de um povo inteiro, por meio da dominação econômica (Dallari, 1985, p. 13).

Só se é livre de fato se há condições materiais, reais para ter, consumir, trabalhar, estudar, participar, enfim, para o indivíduo gozar dos direitos que lhe cabem formalmente. Por isso, mais do que a igualdade formal (apenas diante da lei), é preciso o princípio da igualdade para se viver bem, para ser feliz (como queria o constitucionalista americano do século XVIII). A Constituição do século XVIII trouxe direitos econômicos somente para a burguesia, mas hoje é preciso expandir esse horizonte para os grupos sociais mais pobres. Como utopia possivelmente realizável, também podemos dizer que se trata mais de liberdades positivas, conquistadas e praticadas na ação política popular. Portanto, muito além do sentido legal restrito adaptado às chamadas liberdades negativas.

4.4.2. Elementos da Constituição

Porém, é preciso relembrar que a Constituição deve ser legítima e não basta que isto esteja escrito em um pedaço de papel. A Constituição, para ser verdadeiramente democrática e popular, deverá conter alguns elementos políticos e outros formais, para ir além de um nome pomposo.

De maneira mais solene, como um conceito jurídico-formal, podemos ver na Constituição moderna um texto-base legitimador do Estado Constitucional, ou simplesmente um sistema inicial de normas jurídicas limitativas do poder:

A Constituição é conceituada como sistema de normas jurídicas, produzidas no exercício do poder constituinte, dirigidas precipuamente ao estabelecimento da forma de Estado, da forma de governo, do modo de aquisição e exercício do poder, da instituição e organização de seus órgãos, dos limites de sua atuação, dos direitos fundamentais e respectivas garantias e remédios constitucionais e da ordem econômica e social (Peña, 2003, p. 61).

De certo modo, está aí uma definição de Poder Jurídico que vai embasar as Teorias do Estado, pois esta disciplina trataria especificamente dessa análise conceitual do poder na Constituição Federal. Sob este aspecto estritamente político, a Constituição revelaria o Poder Político conectado democraticamente a um conjunto orgânico de regras e de princípios constitucionais.

No caso brasileiro, as Teorias do Estado deveriam dar cobertura especial ao preâmbulo da Constituição, bem como analisar pormenorizadamente os artigos 1º ao 4º, pois o artigo 5º trata dos direitos individuais. A própria Constituição articula as Teorias do Estado, transformando em artigos os preceitos do Estado Moderno Democrático – em seus artigos desfila a história política do Estado e da sociedade: do liberalismo à democracia; do liberalismo aos preceitos socialistas.

Peña ainda relembra Jellinek: "a Constituição designa o conjunto de normas jurídicas que definem os órgãos supremos do Estado, determinam a forma de sua criação, sua relação recíproca e seu âmbito de atuação, como também fixam a posição do indivíduo em relação ao poder do Estado" (Peña, 2003, p. 61).

Resumidamente: "A Constituição é a declaração da vontade política de um povo, feita de modo solene por meio de uma lei que é superior a todas as outras e que, visando a proteção e a promoção da dignidade humana, estabelece os direitos e as responsabilidades fundamentais dos indivíduos, dos grupos sociais, do povo e do governo" (Dallari, 1985, pp. 21-22).

É importante frisar que se diz solene a Constituição escrita, pois esta será, a partir de então, uma característica essencial das novas Constituições. O fato de ser escrita também inibe a alegação de que a Constituição costumeira dá margem a confusões, uma vez que os costumes poderiam ser interpretados diversamente. A forma escrita ainda empresta à Constituição um caráter de maior durabilidade. A solenidade que recobre a forma escrita, por sua vez, também destaca a necessidade do rito formal que deve ser empregado em sua confecção.

Dessa definição, destacamos alguns elementos: 1) Vontade Política do Povo; 2) Solenidade Necessária; 3) Lei Superior; 4) Proteção e Promoção da Dignidade Humana; 5) Direitos e Responsabilidades dos Indivíduos, do Povo, dos Grupos Sociais e do Governo (Dallari, 1985).

O primeiro implica, obviamente, em que não se pode impor a vontade de um ou de alguns sobre a maioria do povo – se um grupo dominante age dessa forma será uma clara arbitrariedade. Por isso, depois de promulgada pelos Poderes Constituídos, a Constituição deveria ser apresentada para passar pela aprovação (ou não) do referendo popular.

O segundo critério se consagra à apreciação de regras formais que foram decididas anteriormente e de modo democrático, quer dizer, com conhecimento e aprovação popular. O povo deve ter claro que aquelas eleições são especiais, pois se destinam a eleger e a compor a Assembléia Nacional Constituinte – esta é a primeira regra. Desse modo, também indica que o rito para a mudança da Constituição não é como das demais leis ordinárias, trata-se de um rito mais complexo e exigente.

O terceiro critério sustenta a Constituição como a lei que é superior às demais leis, que a própria Constituição deve ser cumprida e que mesmo suas normas programáticas são parte inerente e material da Lei Maior. Ou seja, a chamada norma programática 43 é também direito formal, material.

O quarto critério traz à tona a urgente ou urgentíssima necessidade de provocarmos as transformações sociais, econômicas e políticas que minimizem a miséria, a degradação humana, as desigualdades mais profundas. Trata-se de afinar a busca e os mecanismos que nos levem à Justiça Social, mas agora de modo real e concreto, para além da Constituição.

O quinto critério ainda lembra que, além dos direitos individuais, há direitos sociais, coletivos (consumidor e idoso, por exemplo) e humanitários/globais (como preservar o meio ambiente), que precisam ser resguardados e também efetivados. Neste sentido, não há hierarquia ou preponderância entre direitos individuais e coletivos ou globais. A realidade social dinâmica do século XX e início do XXI mostra uma pluralidade 44 de direitos e de interesses sociais, coletivos e globais genuínos, válidos.

4.4.3. Estado Constitucional e Ordem Jurídica 45

E assim temos um melhor perfil desse chamado moderno constitucionalismo. Trata-se da Constituição reguladora da soberania do Estado, da sociedade e do povo. Pode ser considerada a operação de transformação do Estado Constitucional, a passagem do processo histórico, revolucionário, constitutivo de uma outra ordem jurídica, no modelo institucionalizado, definido, regulado e que é apresentado pelo Estado de Direito.

Este, aliás, é o movimento que se percebeu na formação do Estado Constitucional americano, no período da Revolução. Em 1776, a Revolução Americana formara exatamente o Estado Constitucional, revolucionário, e que se inaugurara com o Poder Constituinte. Já em 1787, também nos EUA, mas agora na vigência da Constituição Americana, o processo constituinte originário, revolucionário e de independência da Inglaterra, estava cessado, interrompido em nome de uma nova ordem jurídica – independente da Inglaterra.

Por isso, se há um processo revolucionário, é possível falar em Estado Constitucional Revolucionário. Mas, em oposição, se há apenas Assembléia Nacional Constituinte (eleita mediante processo eleitoral) e que decorra do amadurecimento democrático ou da necessária transformação legal (sem corte violento na continuidade institucional), então, nesse caso, só podemos falar em Estado Constitucional Derivado 46. Como o Estado Constitucional Originário foi paulatinamente regulado, ainda dizemos que esse Estado Constitucional Derivado é o nosso Estado de Direito.

Porém, não se confunda esse Estado Constitucional Derivado com o chamado Poder Constituinte Derivado, uma vez que o Poder Constituinte nunca pode ser derivado, não pode ser condicionado e nem é mera concessão de qualquer outro poder. Pela lógica e por definição, o Poder Constituinte é soberano, ilimitado, incondicionado, criador.

Essa nova ordem jurídica instituída pelo Poder Constituinte (revolucionário da ordem jurídica anterior e ultrapassada) será definida e presidida exatamente pela Constituição. Nesse sentido, há a distinção de Carlos Ayres Britto: "a sociedade política ou nação é a única a experimentar o Poder Constituinte, nele efetivamente se transfundindo e formalizando-o numa Constituição" (Britto, 2003, p. 95).

Portanto, como poder já soberano, e buscando reconhecimento internacional, os EUA afirmaram-se como Estado de Direito Positivo – o positivo aqui segue a idéia de um Direito Posto, como base dos Poderes Constituídos. Ou seja, de Poder Constituinte, o poder inaugural se converteu em Poderes Constituídos; de Estado Constitucional (em 1776), os EUA se transformaram em Estado de Direito Positivo (1787) 47. Com isso, surgia ainda uma ordem jurídica que vinha para conservar o novo status político - status esse conquistado com a independência do jugo inglês.

Novamente com Britto, vemos a distinção entre o Poder Constituinte e o Poder Constituído: "Se o verdadeiro e único Poder Constituinte é um Poder que pode o mais (elaborar a Constituição), mas sem poder o menos (reformar a sua própria obra legislativa), o Poder Constituído é um Poder que pode o menos (modificar a obra do Poder Constituinte), mas sem poder o mais (trocar uma Constituição por outra)" (Britto, 2003, p. 97).

Mas, será possível, exeqüível que a Constituição do século XIX tenha repartido tanto a seguridade da soberania, antes una, indivisível e inquestionável? A Constituição moderna é a essência das tentativas de regulação da soberania:

A Constituição dos modernos é formada pela sucessão das teorias da soberania do monarca, soberania do povo e soberania do Estado, que antecederam o surgimento das Constituições democráticas do século XX. Em primeiro lugar, a teoria da soberania do monarca, elaborada por Thomas Hobbes (1588 – 1679) e Jan Bodin (1529 – 1596) [...] Em segundo lugar, a teoria da soberania do povo, enunciada por Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778) e Emmanuel Joseph Sieyès (1748 – 1836) denota que o poder seria confiado ao povo [...] Em terceiro lugar, a teoria da soberania do Estado, exteriorizada por Georg Hegel (1770 – 1831) e Joseph de Maistre (1753 – 1821) [...] Por fim, as Constituições democráticas do século XX, visualizadas por Hans Kelsen (1881 – 1973) e Carl Schmitt (1888 – 1985) são caracterizadas pela retomada da dimensão política (Peña, 2003, pp. 64-65).

Tem-se, assim, uma segunda proposta de análise da formação das Constituições modernas, com um lastro histórico mais largo, pois retoma Jean Bodin e Hobbes. Nossa posição, no entanto, é a de que o moderno constitucionalismo nasceu com o desenvolvimento do pensamento liberal, justamente para fazer frente a essa teoria da soberania do monarca, para destronar o Antigo Regime.

Essa definição inicial de Estado Constitucional e de sua Constituição reguladora do poder nos permite sinalizar a natureza jurídica que recobre essa jurisdicição da política, ou seja, a política e o poder tornados Direito por força do Estado Constitucional Regulador. Sua natureza jurídica aponta três categorias ou níveis subjacentes: sociológico, político e jurídico.

O sentido sociológico é aquele já apontado por Ferdinand Lassale, isto é, sinaliza os principais fatores reais do poder que condicionam a Constituição. O sentido político teria sido dado por Carl Schmitt, quando ressaltava a decisão política fundamental, que é a vontade expressa pelo Poder Constituinte. Já a posição jurídica derivaria de Hans Kelsen e implicaria em definir a Constituição como a lei fundamental da organização estatal – uma força normativa superior sobre a qual nenhum poder seria soberano (Peña, 2003, pp. 65-66).

Esse Estado Constitucional europeu e que, aos poucos, tornou-se referência para muitas Constituições latino-americanas, a partir da década de 1980, como nos diz Hesse, é um tipo de Estado com direitos:

"Estado Constitucional" indica um tipo de Estado, cuja Constituição, nos âmbitos dos direitos fundamentais e da construção estatal, mostra princípios gerais e, com isso, comunidades que no desenvolvimento europeu recente ganharam significado crescente; nesse aspecto, o conceito circunscreve pontos de referência para a compreensão e o desenvolvimento da Constituição (Hesse, 1998, p. 26).

Sob esse princípio constitucional de organização do poder e de garantia da sociedade, opera-se o que Hesse denomina como o encontro entre unidade política (Estado) e ordem jurídica (Constituição seguida de ordenamento jurídico). No fundo, temos aqui apenas um único conjunto histórico: "Unidade política’, ‘Estado’ e ‘coletividade’ são empregados aqui, portanto, como designações de conexões de efeito distintas que, em grande medida, são sustentadas pelos mesmos homens e, por causa disso, não devem ser entendidas no sentido de uma coexistência separada e somente para melhor demonstração, como ‘âmbitos" (Hesse, 1998, p. 34).

Então, se o Estado Constitucional é aquele que, sem dúvida, tem suporte na Constituição e no controle democrático do poder, o que será ordem jurídica?

Novamente, de acordo com Hesse, trata-se de:

[...] uma ordem determinada, que garante o resultado da colaboração formadora de unidade e o cumprimento das tarefas estatais e que exclui um abuso das faculdades de poder confiados ou respeitados por causa daquele cumprimento de tarefas – em que tal garantia e asseguramento é, não só uma questão da normalização, mas, sobretudo, também da atualização da ordem jurídica (Hesse, 1998, p. 35).

Isto já indica ou retoma a necessidade de se pensar que a própria ordem jurídica deva ser legítima, ou seja, para que não ocorra desvio ou concentração de poder é preciso criar novos instrumentos que garantam o sentido de coletividade e que sejam consoantes à própria Constituição inspiradora de 1988. Com isso, também podemos definir ordem jurídica sob o olhar sociológico:

Ordem jurídica está dada, além disso, em um sentido mais amplo. A coletividade precisa da sua, porque convivência humana sem ela não seria possível, de todo, na situação da atualidade que fundamenta a necessidade de ordem e coordenação objetiva ampla das condições e âmbitos da vida econômica e social. Como o Estado, essa ordem não está determinada em um direito supra-histórico, desprendido da existência humana e atividade humana, existente em si e por si, ou nas objetivações de uma "ordem de valores" encontrada; senão ela deve, como ordem histórica, pela atividade humana ser criada, posta em vigor, conservada e aperfeiçoada (Hesse, 1998, p. 35-36).

A ordem jurídica expressa o Poder Político, mas também deve regular esse mesmo poder que lhe deu origem. A ordem jurídica é realidade social e, por isso, implica na unidade política. E aí está claro, com todas as letras, a necessidade de que esta ordem jurídica (decorrente do Poder Constituinte e da Constituição derivada) deva ser ela mesma legítima e constantemente legitimada.

De certo modo, entende-se o porquê de Carlos Ayres Britto dizer da Constituição como de uma poesia que precisa de realidade política e do contexto social articulados para não ser um simples repertório de palavras. Tal qual o poema, a Constituição tem um sentido expresso (escrito, solene) e outro não-escrito (o espírito da justiça – e mesmo que também possa/deva ser articulado como justiça social). Como afirma Britto, iniciando pela Constituição:

Ela consubstancia um tipo tão articulado de unidade que faz lembrar a composição e o sentido de um poema. Se este se constitui de palavras, tais palavras somente conservam íntegro o seu papel de servir a uma obra de arte se permanecem no contexto da poesia e no exato lugar em que se encontrem. Permutá-las, substituí-las, destacá-las do conjunto, seccioná-las, enfim, é quase sempre repetir o fenômeno que decorre de se colocar, hipoteticamente, um pouco de qualquer das ondas do mar em um balde: a onda removida perde instantaneamente a qualidade de onda, que é uma coisa viva ou em movimento, e passa à condição de simples água salobra, que é uma coisa morta ou sem mobilidade própria. No caso da poesia, o que era a riqueza de um poema fica rebaixado à pobreza de simples vocábulos, como tantos outros (Britto, 2003, p. 99).

A Constituição é, pois, vida social, e que ainda se expressa por meio da unidade política e da ordem jurídica. Neste modelo de Estado Constitucional, a política ou os conflitos políticos estão na origem da própria Constituição e de sua ordem jurídica. Os membros politicamente ativos desta sociedade teriam chegado, hipoteticamente, à conclusão lógica, racional, óbvia de que não há sociedade sem conflitos políticos e ideológicos. Também teriam chegado à conclusão de que um meio racional de se equilibrar a disputa política (porque não há como suprimí-la) seria criando normas ou regras para a ação política – este conjunto de regras políticas seria a Constituição. Assim, o objetivo da Constituição seria contornar os conflitos políticos e ideológicos:

"Formação da unidade política" não significa a produção de um Estado harmônico de concordância geral, de todo, não a abolição de diferenciações sociais, políticas ou organizacional-institucionais por unificação total [...] Conflitos são capazes de preservar do entorpecimento, de ficar parado em formas superadas [...] Se eles faltam, ou se eles são reprimidos, então isso pode conduzir ao imobilismo de uma estabilização do existente, isto é, porém, à incapacidade de ajustar-se às condições transformadas e produzir novas configurações [...] Sobretudo, não só tem importância que haja conflitos, mas também que sejam regulados e vencidos (Hesse, 1998, p. 30).

A Constituição, portanto, seria um eficiente instrumento racional (o moderno contrato político e jurídico) de organização e de estruturação das relações políticas mais conflituosas. Isto é, a origem da Constituição (Poder Constituinte) é o conflito político e não a pretensa harmonia social. Eis a análise que vimos, por exemplo, com Hesse.

Com esses dados podemos reformular a questão clássica: todo Estado de Direito é um Estado Constitucional? Há inúmeros pontos discordantes, mas há alguns de assemelhamento, como a simetria que estabelecemos entre seus princípios ou postulados. Se tomarmos que o Estado Constitucional tem por base o iluminismo, o contratualismo e o individualismo, então, não será difícil relacionarmos tais princípios ao Estado de Direito.

O individualismo do Estado Constitucional está para a prevalência dos direitos individuais, proposto no Estado de Direito, assim como o contratualismo (Locke, Rousseau) está para a separação de poderes, em Montesquieu (também um contratualista). Aliás, é da vigência do contrato social que deve ser formulado o Estado que sirva à sociedade, diferentemente do Estado Absolutista.

Entretanto, o famoso império da lei não pressupõe a mesma sintonia de interesses, valores e de validade com o iluminismo. Basta-nos pensar que há leis injustas e até Estado de Direito baseado nesse tipo de leis, como foi o Estado Nazista, o regime do apartheid e a realidade americana na década de 1960, antes de vigirem os direitos civis. Neste sentido, portanto, não devemos reduzir o Estado de Direito ao princípio do império da lei e nem confundir Estado Constitucional com a limitação de uma Constituição rígida.

O Estado de Direito pode declarar válida a Constituição (formalmente, solenemente), mas sem que se verifique o mínimo necessário à universalização do preceito do iluminismo. O Estado de Direito que se sustente em uma Constituição formal, que até mesmo indique a busca da ordem pública, mas que não patrocine políticas públicas (populares e sociais), não é um Estado Constitucional no rigor na expressão. Neste rumo, aliás impopular, pode estar a caminho de se tornar um Estado de não-Direito – fato, inclusive, que desde os anos 80 vem gerando críticas políticas mais severas. Uma crítica mais materialista ao Estado de Direito foi endereçada por parte do movimento socialista.

4.4.4. Uma Crítica Socialista ao Estado de Direito

Nos anos 80, manuais de Ciência Política e de Teoria Geral do Estado, intitulados de socialistas e editados em Moscou, também debatiam a figura do Estado de Direito. Nestes manuais via-se, igualmente, uma espécie de contra-acusação dirigida a algumas críticas ocidentais: os ideólogos do Ocidente acusavam o Estado Socialista de ser dualista, ora usava do Direito, ora da força, da mera coerção para resolver os conflitos individuais e sociais. Diante dessa acusação, os ideólogos do leste atacavam os horizontes do Estado de Direito:

Os partidários desta concepção afirmam que no Estado socialista, diferentemente do "Estado de direito" do Ocidente, atuam – dizem – dois elementos: o sistema de força e o sistema do Direito, sendo a força a mais importante dos dois. De acordo com esta concepção dualista, nos países socialistas os atos governamentais têm prioridade diante da lei (ZHIDKOV, 1980, p. 27).

Na verdade, essa modalidade de crítica dual (aos amigos tudo, aos inimigos a lei), em que a corrupção institucional remove montanhas, é muito mais próxima do nosso próprio Estado de Direito (a praga se volta contra o praguejador). Com a benção e a proteção das chicanas e dos infindáveis debates processuais, com grande apego ao formalismo infindável e impraticável, o Estado de Direito no Brasil ainda é incapaz de promover alguma Justiça Social substancial.

Entretanto, não devemos hoje pensar o Estado de Direito atrelado à justiça? Mas, isto seria um ideal ou ideologia? O Estado de Direito está incapacitado de promover Justiça Social condizente com nossas necessidades:

E o que parece ser um dos pontos importantes dessa concepção é a vinculação do Estado de Direito a uma ordem estatal justa, que compreende o reconhecimento dos direitos individuais, garantia dos direitos adquiridos, independência dos juízes, responsabilidade do governo, prevalência da representação política e participação desta no Poder Legislativo (Bastos, 2001, p. 468).

De certo modo, à crítica ao legalismo exagerado que se verifica em torno da definição e do debate acerca do Estado de Direito, podemos estender uma crítica ao contexto institucional brasileiro.


5. Estado de Direito?

Assim, pensando de modo concreto, histórico, será que no Brasil, definido como República Federativa – sob os auspícios do Estado Democrático de Direito 48 - realmente há uma estrutura jurídica mínima assentada nas bases do Estado de Direito?

Para tanto, deveríamos indagar, ainda, se o próprio liberalismo jurídico é realidade no país, pois é fácil inquirir até onde estão presentes idéias-fortes como os princípios da liberdade, igualdade, legalidade, isonomia e a própria ânsia pelo Direito. É fácil demonstrar que a coisa se complica se pensarmos na eficiência e na legitimidade desse Estado e do seu Direito, e não apenas na formalidade e na legalidade.

De forma bem mais simples, mas sempre no plano teórico, é possível articular Estado de Direito e Estado Constitucional, no Brasil? É como se a estrutura institucional-formal do Estado de Direito no Brasil não fosse suficiente para o enraizamento dos princípios liberais da liberdade e da legalidade – como se não tivéssemos o chão da famosa Revolução Burguesa por que pisar.

Tomemos o exemplo do artigo 5º da CF/88 - aliás, um dos textos mais célebres, universais e humanistas que o Direito já produziu. Ora, sem que se respeite o direito adquirido de trabalhadores ou de aposentados, será válido dizer que o tal artigo 5º está em vigor? Quando se vê, infelizmente de forma regular, que pessoas são presas ou detidas por furtarem (não dissemos roubarem!) galinhas, isso se dará na vigência do Estado de Direito e estará de acordo com o artigo 5º? Quando um prefeito resolve construir um estádio de futebol em vez de escolas primárias (havendo falta crônica de vagas escolares), estará seguindo e servindo o "espírito constituinte do Estado de Direito" e do artigo 5º?

O Estado de Direito no Brasil ainda não é realidade. Dessa forma, efetivar os preceitos do Estado de Direito no Brasil seria um procedimento/processo revolucionário porque, neste caso, a lei teria algum significado, alcance ou eficácia universal, global, e não a cínica declaração de que – mesmo incrustando/condenando milhares à miséria absoluta – "todos são iguais perante a lei". Porém, ainda se pode indagar: neste Estado de Direito, é correto dizer/afirmar que o direito à liberdade concede ao mendigo/inválido ou desvalido/miserável escolher a ponte que melhor lhe aprouver para se abrigar?

Alguém diria que sim, alegando que o Estado de Direito concedeu tal direito ao andarilho, e outros regimes não o fariam em hipótese alguma. Para os donos dessa convicção, cabe uma última questão: por que, diante de casos ou quadros sociais de total pilhéria do ser humano, o Estado de Direito deveria acusar/condenar o morador das pontes, baseado na alegação de que ali se pratica o "crime de vadiagem" 49?

Neste Estado de Direito, os pobres podem ser condenados por serem pobres 50? Lembremo-nos de que não é de hoje que a miséria e a pobreza são definidas como "questão de polícia" e não de política. Somente para a classe média é fundamental existir esse Estado de Direito. Historicamente, as elites sempre fizeram uso da coerção do Estado de Polícia (entre os inimigos sociais) e da atual arbitragem (para adversários comerciais).

Por isso, o que temos consubstanciado ainda é um Estado de Direito Indireto, pois nem há fumaça de bom direito. Enfim, parece-nos que é um caso exemplar em que o Direito precisa de mais realidade, de concretude do que de definição ou de retórica.

Neste sentido, também não soa estranho que de concepções deformadas do conceito de Estado de Direito derivaram a concepção/aplicação do Estado Judicial, como Estado que deve prover a moral oficial ao povo e que, por sua vez, nada tem a ver com a finalidade pública do Estado ou com a justiça. De acordo com José Afonso da Silva (1991):

Disso deriva a ambigüidade da expressão Estado de Direito [...] ou de um "Estado de Justiça", tomada a justiça como um conceito absoluto, abstrato, idealista, espiritualista, que no fundo encontra sua matriz no conceito hegeliano do "Estado Ético", que fundamenta a concepção do Estado fascista [...] Diga-se, desde logo, que o "Estado de Justiça", na formulação indicada, nada tem a ver com Estado submetido ao Poder Judiciário, que é um elemento importante do Estado de Direito (p. 100).

Em parte, essa desfiguração há muito tempo tem permitido justificar o Estado de não-Direito, tão marcadamente presente no fascismo e no nazismo, como Estado de Direito. Essa inversão ideológica dos pólos, obviamente, é intencional e serve à produção de injustiças.

De modo complementar, mas contraditoriamente, a estrutura jurídica do Estado de Direito é justamente o que está ausente, quando pensamos na fórmula do Estado Paralelo. Aliás, mais exatamente, os temas prementes do chamado Estado de não-Direito.


NOTAS

01 Sabe-se que nossa inspiração veio do constitucionalismo português, da inversão da denominação lusa do Estado de Direito Democrático.

02 Não se refere ao Estado Neoliberal, como ausência de participação estatal na área social e econômica.

03 Sob esse sentido estrito, talvez o melhor fosse dizer que houve uma progressiva constitucionalização dos direitos políticos.

04 Hoje, certamente, poderíamos falar da necessidade desses dados e de uma imprensa livre, crítica e investigativa.

05 Não se confunda com Estado Judicial, analisado na crítica de José Afonso da Silva e que parte de Carré de Malberg, como veremos adiante.

06 Conceito que será retomado a seguir, em análise mais detalhada.

07 É de se aceitar a análise de que o Direito realmente aceito – reconhecido como valor, partilhado nas práticas sociais – acaba por afastar a incidência da coerção. Sob esse prisma, Direito e coerção são antagônicos, excludentes.

08 Historicamente, esta é a garantia institucional atribuída à conquista do direito de petição.

09 Em nota seguinte ao texto que corresponde à citação de Comparato, ainda se lê: "a noção de garantia institucional, como um mecanismo objetivo de organização do Estado, objetivando a proteção das liberdades civis, foi elaborada pela doutrina alemã a partir de 1919" (conforme nota 85, p. 47). É de se lembrar que em 1919 tem-se, com a Constituição de Weimar, o Estado Social.

10 Ou simplesmente entendido como império e vigência da lei.

11 Esta que também é uma constituinte e legítima fonte política do Direito, nesta determinada ordem jurídica estabelecida pela democracia representativa.

12 Trata-se de documento de domínio público.

13 Têm-se aqui o tino evidente e claro dos princípios da liberdade, legalidade, responsabilidade e probidade administrativa. A citação foi mantida – mesmo que longa – para que não se perdesse a idéia de conjunto que os artigos arrolados devem transmitir.

14 Uma conhecida elaboração jurídica foi o direito de petição.

15 Também podemos dizer que a isonomia é o meio e que a eqüidade é o fim almejado – isso, é óbvio, de acordo com uma leitura teleológica do Direito e do Estado.

16 Ninguém é obrigado a fazer ou a deixar de fazer algo, senão em virtude de lei.

17 Tratar os iguais, igualmente e os desiguais, desigualmente.

18 Eficácia jurídica como verificação real das especificações da lei.

19 Da mesma forma, a jurisdicização da política é decorrente, e a constitucionalização da política é precedente.

20 Entendido o Estado Judicial como uma deturpação moralista, autoritária e fascista do Estado de Direito.

21 As citações a seguir, sempre entre aspas, são parte de uma tradução livre e constituem um breve resumo de Malberg (2001) organizado para este texto, e compreende um resumo pessoal do período entre as páginas 449 a 461. Portanto, é uma tradução com interferência direta. Recortamos uma citação tão longa porque se trata de obra de difícil acesso, e também o autor é considerado um dos pensadores clássicos do Estado de Direito, na linha evolutiva direta de V. Mhol.

22 Também parece claro que não é o caso de se pensar num governo de magistrados.

23 Cláusulas pétreas.

24 Hoje seria o caso evidente de se interpor as garantias institucionais e os remédios jurídicos.

25 Ou poder-se-ia dizer simplesmente Estado de Direito Positivo, tornado ordenamento jurídico escrito (solene), formalizado, publicado e reconhecível perante a soberania popular.

26 Podemos definir o Estado de Direito como a anatomia do corpo jurídico.

27 Nossa relação com o presidencialismo é tão forte que, inclusive, temos um presidente de cada processo, que é o juiz natural ou o juiz responsável por determinado processo.

28 Todo esse item se refere ao chamado império da lei.

29 Aqui temos um quarteto articulado: 1) legalidade; 2) reserva legal; 3) isonomia; 4) eqüidade. A legalidade, por sua vez, pressupõe a igualdade ("Todos são iguais perante a lei"), pois sem a igualdade só há privilégios. Na anatomia do corpo jurídico, a legalidade (igualdade) corresponde ao fluxo sangüíneo.

30 Daí o princípio da isonomia: tratar os iguais, igualmente; os desiguais, desigualmente.

31 Neste item subentende-se a idéia de República e de Federação.

32 Sob esse quesito se esconde todas as características patrimonialistas do Direito.

33 Com destaque para os direitos e as garantias institucionais, a exemplo do próprio direito de petição.

34 Não há Poder Constituinte de fato que não seja revolucionário.

35 O que leva a alguns definirem (equivocadamente) como Poder Constituinte Derivado.

36 Neste sentido, ainda se diz que a Declaração de Direitos é cultural, uma vez que irradia a cultura popular que lhe dá sustentação. Só há sentido em se falar de Declaração de Direitos se há aceitação e reconhecimento.

37 Por exemplo, erradicar toda miséria social.

38 Por isso, também podemos dizer que as Declarações de Direitos têm muita afinidade com o intuito geral, popular, ou seja, têm um caráter muito mais cultural (a consciência do Direito), ao passo que a Constituição relata bem os direitos já aceitos e incorporados pela ordem estatal.

39 É certo que uma hermenêutica constitucional mais democrática e pluralista deverá ler o artigo cominado com o alcance social interposto no espírito da Constituição. Porém, para o caso deste trabalho, trata-se de artigo-símbolo dessa figura do direito-autoritário, da nossa cultura jurídica de que o Direito está a reboque do patrimônio e dos privilégios. De certo, é ainda um exemplo de que o proto-fascismo do Estado Novo não está totalmente curado, nem mesmo no âmbito constitucional.

40 Ainda que, em grande parte da história política brasileira, tenha prevalecido (ainda prevalece) juridicamente, politicamente a vontade dos grupos economicamente privilegiados e das classe sociais dominantes.

41 E certamente não se colocariam o problema de investigar se as leis em questão seriam justas ou não.

42 Dallari (1985) sinaliza para a Constituição da Colônia da Virgínia (depois Estado) como a primeira Constituição moderna, promulgada a 29 de junho de 1776, ou seja, quatro dias antes da Declaração de Independência das Colônias inglesas (4 de junho de 1776).

43 Normalmente as que projetam as ações estatais para o futuro: o Estado Constitucional Teleológico.

44 É curioso que, no Brasil, ao mesmo tempo em que discutimos direitos de 5ª Geração, apregoados diante do mundo virtual da telemática, também tenhamos o mesmo grito pela defesa dos Povos da Amazônia, os índios que primeiro ocuparam nosso país. Talvez nenhum outro povo ou Estado conheça tamanha diversidade e pluralidade de interesses e de direitos.

45 Aprofundaremos o debate acerca do Poder Constituinte Originário porque a operação em que este se transforma em Poderes Constituídos Derivados ilustra muito bem a passagem ou transformação do Estado Constitucional em Estado de Direito Positivo.

46 A não ser que ocorra uma revolução jurídica passiva e daí se transformem radicalmente as demais instituições. O que, do ponto de vista histórico e político, não parece muito plausível.

47 Só nesse aspecto da análise histórica é que se pode afirmar que o Estado Constitucional é um Estado de Direito.

48 Como se sabe, trata-se explicitamente do preceito do art. 1º da CF/88.

49 Kowarick, 1987.

50 O crime contra os pobres clássico que encontramos no Brasil, além da corrupção pública, enquadra-se nos crimes contra a economia popular e para estes deveria servir a ação civil pública e a ação popular.


Autor

  • Vinício Carrilho Martinez

    Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 920, 7 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7786. Acesso em: 16 abr. 2024.