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A Emenda Constitucional nº 45/2004 e a competência penal da Justiça do Trabalho

A Emenda Constitucional nº 45/2004 e a competência penal da Justiça do Trabalho

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A Emenda Constitucional nº 45 teve o objetivo manifesto de abandonar a raiz clássica do Direito do Trabalho, isto é, a relação de trabalho juridicamente subordinada.

SUMÁRIO:I – Introdução; II – Da Mutação do Critério de Definição de Competência da Justiça do Trabalho; III – Do Inciso IX do Artigo 114 da Constituição e a «Adequação Legítima» da Atribuição de Competência Penal para a Justiça do Trabalho; IV - Do Inciso I, ‘d’ do Art. 108 da Constituição e a Competência Hierárquica; V – Da Limitação da Competência Penal da Justiça do Trabalho; VI – À Guisa de Conclusão.


I – Introdução

            A Emenda Constitucional n. 45, promulgada em 8 de dezembro de 2.004, mas só publicada no Diário Oficial da União em 31 de dezembro do mesmo ano, no que tange à Justiça do Trabalho (JT) teve o objetivo manifesto de abandonar a raiz clássica do Direito do Trabalho, isto é, a relação de trabalho juridicamente subordinada.

            Antes da Emenda, a competência da JT estava quase que toda ela concentrada no ora revogado caput do artigo 114; com a promulgação, o caput desdobrou-se em nove incisos. Este estudo sustenta a tese de que este desdobramento, levado a efeito pela referida Emenda Constitucional, conferiu competência penal à Justiça do Trabalho.

            O cerne da fundamentação da presente proposição consiste na articulação dos incisos I, IV e IX do novel artigo 114 da Constituição da República, que deságua em duas conseqüências: (i) mutação do critério subjetivo para o objetivo, no que toca à definição de competência trabalhista e (ii) atribuição da competência penal à Justiça do Trabalho, além daquela simplesmente hierárquica, tanto pela natureza da infração, nos termos do art. 69, III do Código de Processo Penal, como pela relação de adequação legítima entre o processo penal-trabalhista e a Justiça do Trabalho.

            Ademais disso, sustenta-se que a competência penal da Justiça do Trabalho poderá ser ampliada, pela via ordinária, sem necessidade de emenda constitucional.


II – Da Mutação do Critério de Definição de Competência da Justiça do Trabalho

            A anterior ordem constitucional firmava a competência trabalhista, em relação aos litígios decorrentes do contrato de trabalho, em função da pessoa - trabalhador e empregador - não em razão da natureza da matéria. Não é demais ressaltar, que a esse critério, deve-se aditar, naturalmente, o requisito de que a controvérsia decorresse da relação de emprego.

            Em outras palavras, a competência da Justiça do Trabalho não decorria apenas de um litígio que tivesse origem na relação de trabalho subordinado, mas que, além disso, fosse qualificado pela condição jurídica das pessoas envolvidas: empregador e trabalhador. Nesse sentido, a competência material da Justiça do Trabalho – ou seja, aquela que decorresse da relação de emprego sem envolver necessariamente o trabalhador e o empregador - somente se aperfeiçoava mediante lei específica.

            O Excelso Supremo Tribunal Federal, em sua composição plenária, já havia assentado entendimento dessa ordem [01], fixando que a "determinação da competência da Justiça do Trabalho não importa que dependa a solução da lide de questões de Direito Civil, mas sim, no caso, que a promessa de contratar, cujo alegado conteúdo é o fundamento do pedido, tenha sido feita em razão da relação trabalhista, inserindo-se no contrato de trabalho" [02].

            Nessa acepção o termo relação de emprego preferia ao de contrato de trabalho, pois o último denotava uma equivocada e conservadora visão contratualista, no sentido de que a competência da Justiça do Trabalho estaria jungida estritamente a cláusulas contratuais, perdendo, assim, toda a abrangência do fenômeno jurídico atinente à relação de emprego.

            A visão contratualista mais avançada da relação de emprego capta tal fenômeno, não por um enfoque de conteúdo, porquanto não tem o contrato de trabalho conteúdo específico, mas sim pelo aspecto de sua realização operacional [03].

            É importante ressaltar que não impressiona a objeção no sentido de que o critério da pessoa, para se firmar a competência trabalhista, iria importar, se levado às últimas conseqüências, na assunção de competência penal pela Justiça do Trabalho, por exemplo, nos casos de crimes de ação penal privada envolvendo o trabalhador e o empregador.

            A Justiça do Trabalho não tinha competência penal porquanto o Ministério Público é o dominus litis. A demanda penal não ocorre entre o réu e a vítima. Mesmo na ação penal privada, consoante o magistério de ADA PELLEGRINI GRINOVER [04], o ofendido, na queixa-crime (ação privada) não é o titular do ius puniendi, mas apenas é extraordinariamente legitimado à ação. Trata-se, pois, de típica substituição processual penal, que, como tal, não altera a competência da lide [05].

            Após a Emenda Constitucional n. 45/04 a situação ganhou contornos bem distintos. Com a elisão dos vocábulos ´´empregador´´ e ´´trabalhador´´ do art. 114 da Constituição, a competência da Justiça do Trabalho deixou de se guiar pelo aspecto subjetivo (sujeitos ou pessoas envolvidas na relação de emprego), para se orientar pelo aspecto meramente objetivo, qual seja, ações oriundas da relação de trabalho, sem qualquer referência à condição jurídica das pessoas envolvidas no litígio.

            Assim, a ação penal oriunda da relação de trabalho, que processualmente se efetiva entre o Ministério Público e o réu, passou a ser da competência da Justiça do Trabalho, em decorrência da referida mutação do critério de atribuição.

            Isso porque o critério objetivo, dessa forma, se comunica com a natureza da infração, que é uma das formas de fixação da competência, nos termos do artigo 69,III do Código de Processo Penal.


III – Do Inciso IX do Artigo 114 da Constituição e a «Adequação Legítima» da Atribuição de Competência Penal para a Justiça do Trabalho

            O primeiro óbice que se apresenta à tese afirmada no tópico anterior – competência penal decorrente da assunção do critério objetivo – consiste na alegação de inexistência de atribuição manifesta de competência penal à Justiça do Trabalho.

            Antes, contudo, de se examinar se existe ou não tal manifestação em nível constitucional, é importante verificar se a atribuição de competência penal depende de tal requisito de explicitação.

            Consoante reconhece a doutrina, não existe qualquer essencialidade técnica nos critérios de definição de competência, que são definidos segundo a experiência prática secular [06], já que eles variam de país para país. [07] No ordenamento brasileiro, de uma maneira geral, o critério-mor é extremamente pragmático, com a consideração concreta de dados objetivos da causa.

            De uma maneira geral tais dados são captados a partir da respectiva categoria jurídica, destacando-se, sobretudo, a natureza da relação jurídica que envolva a demanda (crime, ato ilícito civil, relação de emprego, etc.) [08].

            A despeito de se tomar a categoria jurídica como critério definidor da competência, nem sempre ela é observada, e isso se passa por uma infinidade de razões de ordem pragmática ou política, à conveniência assistemática do legislador.

            O que se percebe é que os intentos de sistematização dos critérios definidores da competência resultam inócuos. Todos os estudos a respeito ressaltam o caráter mais descritivo do que sistêmico da distribuição de competência entre os mais diversos ramos do Judiciário, distribuição essa que envolve até o Poder Legislativo.

            Nessa ordem de idéias, embora a tradição tenha consagrado a visão de que a competência para a categoria jurídica «crime» deva vir explicitada na Constituição, para fins de atribuição de competência penal, não existe qualquer fundamento científico ou dogmático a amparar tal entendimento.

            O que parece é que se confunde o princípio da reserva legal, que vigora em sede de Direito Penal material, para efeitos da condenação criminal, com a definição, própria do Direito Processual Penal, do ramo judiciário encarregado de proceder ao julgamento da lide.

            Ícone da inexistência do critério da atribuição específica é a própria competência penal da Justiça Estadual, que não se encontra inserida de forma manifesta ou latente na Carta Constitucional. Não há objetar nem mesmo com o caráter residual da competência da Justiça Comum, pois se a competência penal dependesse de atribuição manifesta obviamente que seria um contra-senso afirmar que uma competência específica (penal) resultaria do mesmo critério de definição da competência genérica.

            Além disso, a competência penal da Justiça Eleitoral – que é também um ramo Especial como a Justiça do Trabalho – não se encontra atribuída especificamente na Constituição, senão no Código Eleitoral. Como veremos nos tópicos que se seguem, a competência penal da Justiça Eleitoral, em sede constitucional, restringe-se ao habeas corpus de natureza hierárquica e funcional, previsto no art. 121. parágrado 4º, inciso V.

            Por outro lado, ainda que a distribuição de competência não seja dotada de uma essencialidade técnica, isso não significa que ela não deva observar um critério mais racional de atribuição. A teoria processual desafia, naturalmente, um mínimo de racionalidade e adequação à realidade, sob pena de transformar-se em puro e desordenado arbítrio.

            É nesse sentido, pois, que se entende a conceituação de competência perpetrada por CELSO NEVES, que abandona a tradicional ‘medida da jurisdição’, concebendo-a como a relação de «adequação legítima» entre o processo e o órgão judiciário, ou seja, uma noção concreta, pragmática, porém, racional de competência [09]. A idéia do processualista paulista é superar as conceituações quantitativas da competência – competência enquanto medida - para caminhar em direção a uma conceituação qualitativa.

            A conceituação qualitativa, segundo CELSO NEVES, tem um aspecto subjetivo e outro objetivo. Do ponto de vista subjetivo, a competência é definida como atributo para o exercício da jurisdição, decorrente da investidura legítima. Do ponto de vista objetivo, que aqui nos interessa mais especificamente, como a relação necessária, de adequação legítima, entre o processo e o órgão jurisdicional [10].

            Nessa perspectiva de consideração da competência penal enquanto relação de adequação legítima entre o processo e o órgão judiciário, a competência penal da Justiça do Trabalho decorre da própria necessidade de defragmentação judiciária do fenômeno trabalho.

            Em tendo sido alçado à condição de verdadeiro fundamento da República, nos termos do inciso IV do artigo 1º da Carta Magna, o valor social trabalho [11] desafia tutela judiciária abrangente e concreta, no sentido bobbiano, de que a evolução dos direitos partiu da universalidade abstrata, para a atingir a fase de sua concreção. Para tanto, a proteção judiciária do valor social trabalho, para se tornar eficaz e concreta, há de se fazer de forma a evitar a fragmentação, que só enseja procedimentos que conspiram contra a integridade do cumprimento das normas de tutela do trabalho humano.

            Daí que a adequação legítima corresponde, perfeitamente, ao critério de fixação da competência penal, atinente à natureza jurídica da infração, previsto pelo inciso III do art. 69 do Código de Processo Penal,

            Em outras palavras, a Justiça que lida com a proteção do trabalho é que, sem dúvida, tem maior grau de adequação e legitimidade para a avaliar o teor ofensivo das condutas reprimidas pela ordem penal-trabalhista.

            Por outro lado, nos parece decisivo ressaltar, novamente, que o inciso IX do artigo 114 da Constituição permite, perfeitamente, que norma ordinária processual confira competência penal à Justiça do Trabalho.

            O precitado inciso III do art. 69 do Código de Processo Penal, desse modo, constitui, assim, a norma de integração da competência penal da Justiça do Trabalho, em interpretação conforme a Constituição – rectius: conforme a Constituição integrada pela Emenda n. 45/04.

            Por qualquer lado, portanto, em que se analise a questão, é patente no ordenamento jurídico que há atribuição, manifesta ou latente, de competência penal à Justiça do Trabalho.


IV – Do Inciso IV do Art. 114 da Constituição e a Natureza Jurídica do Habeas corpus

            Não obstante inexista fundamento jurídico a sustentar a tese de que a competência penal desafia atribuição específica na Constituição, e, além do mais, ainda que se desconsiderasse a atribuição de competência penal à justiça trabalhista pelo art. 69,III do CPP, em face do que dispõe o inciso IX da Constituição, cumpre ressaltar que a novel competência, prevista pelo inciso IV do mesmo art. 114, em articulação à competência objetiva prevista pelo inciso I do mesmo artigo, também se constitui como esse requisito da atribuição manifesta da competência penal à Justiça do Trabalho.

            Muito se discute na doutrina a natureza jurídica do habeas corpus, todavia a polêmica centra-se na questão acerca do caráter recursal ou não dessa medida. Para o nosso estudo interessa outro aspecto, qual seja, a natureza penal ou não desse instituto.

            Sem dúvida em sua origem no direito brasileiro, o habeas corpus tinha uma natureza que transcendia o caráter penal. Como não havia outro instrumento de defesa dos direitos e liberdades civis, com a eficácia liminar, a doutrina, pregada por Rui Barbosa, o admitia inclusive para hipóteses não-penais [12].

            Com o advento do mandado de segurança, contudo, o caráter penal do habeas corpus ficou ressaltado, pois as questões meramente econômicas ou civis poderiam, a partir de então, ser tuteladas através dessa nova medida judicial criada.

            Dessa forma, não obstante a possibilidade da impetração do habeas corpus contra prisão civil (depositário infiel ou em caso de alimentos), ou mesmo contra prisão administrativa, o Supremo Tribunal Federal acabou por consolidar o entendimento, através do Conflito de Competência n. 6979-1-DF, que a ação autônoma de impugnação, denominada habeas corpus, tem desenganada (sic) natureza penal:

            "Sendo o habeas corpus, desenganadamente, uma ação de natureza penal, a competência para seu processamento e julgamento será sempre de juízo criminal, ainda que a questão material subjacente seja de natureza civil, como no caso de infidelidade de depositário, em execução de sentença. Não possuindo a Justiça do Trabalho, onde se verificou o incidente, competência criminal, impõe-se reconhecer a competência do Tribunal Regional Federal para o feito". (STF-CC6979-1-DF-Ac. TP, 15.08.91, Relator Min. Ilmar Galvão).

            O entendimento consagrado pelo Supremo Tribunal não desconsiderou, portanto, que o habeas corpus possa ser impetrado contra prisão civil ou administrativa, mas que ainda nesses casos, o que define sua natureza penal é a sua própria teleologia – a proteção da liberdade de ir e vir - e não o ato impugnado. Consoante se pode observar dos votos dos Ministros no referido conflito de competência, e principalmente do voto do Ministro Celso de Mello, ainda que a o ato tenha origem extrapenal a natureza da medida é de ação penal.

            No mesmo sentido o magistério de TOURINHO NETO, que entende que o habeas corpus tem natureza de ação cautelar, de ação constitutiva ou mesmo declaratória, mas sempre penal, in verbis:

            "Trata-se de garantia individual destinada a fazer cessar o constrangimento ou a simples ameaça de constrição à liberdade de locomoção (...) se o habeas corpus não é recurso, no sentido técnico da expressão, qual seria sua natureza jurídica? Às vezes, como nas hipóteses dos incs. II, III, IV e V do art. 648 (do Código de Processo Penal), é uma verdadeira ação penal cautelar, por visa a impedir que o desenrolar moroso do processo, ou de qualquer outra providência que possa ser tomada, venha carretar maior restrição ao status libertatis do paciente. Nas hipóteses dos incs. VI e VII, se houver sentença com trânsito em julgado, funciona ele como verdadeira ação penal constitutiva, pois visa a extinguir uma situação jurídica. Seu caráter, aí, seria semelhante ao de uma ação rescisória. Todavia, nessas mesmas hipóteses (VI e VII), se a decisão não transitou em julgado, ou o processo não foi instaurado, porque na fase das investigações, a ação seria declaratória, porquanto teria por finalidade a declaração da inexistência de uma relação jurídico-material. E, dependendo da hipótese concreta, o habeas corpus, com fundamento no inc. I, poderá ter a natureza de ação penal cautelar, de ação penal constitutiva ou até mesmo declaratória." [13]

            Também do ponto de vista da Constituição, e a despeito do contorno constitucional do habeas corpus como garante da liberdade fundamental de locomoção, ALEXANDRE DE MORAIS, conclui pelo caráter penal da medida:

            "É uma ação constitucional de caráter penal e de procedimento especial, isenta de custas e que visa a evitar ou cessar violência ou ameaça na liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder." [14]

            Dessa forma, não há falar nem mesmo, na hipótese do inciso IV do art. 114 da Constituição, em competência penal latente, já que ela é manifesta, no sentido consagrado pela Excelsa Corte.

            É verdade que tal inciso, contudo, é passível de leitura restritiva, qual seja, a de que a competência penal da Justiça do Trabalho limitar-se-ia ao habeas corpus.

            Todavia, tal entendimento incide e insiste no equívoco, já ressaltado, de que a competência penal desafia atribuição específica.

            Nem se alegue, por outro lado, que o argumento hermenêutico de que não há na lei palavras inúteis, militaria a favor da tese restritiva, pois a tal argumento pode-se contrapor o chamado argumento "a maiori ad minus" [15], similar ao argumento "a fortiori", e que consiste em se partir de uma afirmação mais extensa para uma menos extensa. Em termos da argumentação concreta da presente hipótese, o argumento consiste em afirmar que se inclusive o habeas corpus, que constitui o maior bastião da liberdade, é da competência da Justiça do Trabalho, com mais razão há de ser a dos demais procedimento penais, que sequer alcançam alçada constitucional.

            Ou seja, se todo o sistema de definição prévia e específica do direito penal decorre da finalidade de proteção do alto valor constitucional da liberdade física, não seria razoável que se estendesse, em caráter de exceção, a competência penal justamente para o instituto que decide de uma forma mais patente e manifesta a liberdade do ser humano, sonegando-a em procedimentos com menor grau de transcendência política.

            É importante sublinhar que, ainda que o habeas corpus tenha como objetivo a liberdade e não a pena, a sua denegação tem notória, concreta, efetiva – e até desenganada, na dicção do STF – conotação penal.

            Essa conotação penal, especificamente na seara trabalhista, é mais profunda que se pensa. Chama atenção, inclusive, a conceituação mais técnica do habeas corpus no Código de Processo Penal – art. 647 – em que se nota a visceral correspondência entre os núcleos do tipo penal-trabalhista e a conduta do agente que justifique a impetração da medida. O art. 647 do CPP dispõe como núcleo da ação sofrida pelo paciente a locução "sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal". Na maioria dos artigos que definem o crime contra organização do trabalho o núcleo do tipo é sempre ‘constranger sob violência ou grave ameaça’ alguém a alguma coisa.

            Em grande parte dos delitos penais-trabalhistas, como por exemplo, o de aliciamento de trabalhadores, o de redução à condição análoga à de escravo (especialmente os incisos I e II do par. 1º do art. 149-A) e até o de atentado contra a liberdade de trabalho o bem jurídico tutelado é o mesmo do habeas corpus, ou seja, a prórpia liberdade física de locomoção.

            Saliente-se, por fim, que a opção por um ou outro critério hermenêutico diz respeito muito mais à adequação político-social da decisão do que propriamente ao desate técnico-jurídico da controvérsia. A teoria da argumentação jurídica tem se revelado ineficaz quanto à hierarquização de critérios exegéticos. Como concluiu, há muito, CHAÏM PERELMAN, na lógica jurídica o decisivo é a definição da premissa, a qual não se processa por meio de um mecanismo lógico. E aqui, como se viu, a adequação político-social encontra-se, sem dúvida, na Justiça do Trabalho.


V - Do Inciso I, ‘d’ do Art. 108 da Constituição e a Competência Hierárquica

            A nosso sentir, outro indicativo da existência manifesta da competência penal oriunda do inciso IV do art. 114, acrescido pela Emenda Constitucional n. 45/04, decorre da análise do inciso I, ‘d’ do art. 108 do diploma constitucional, que trata da competência dos Tribunais Regionais Federais.

            O referido dispositivo constitucional dispõe expressamente sobre a competência funcional e hierárquica para julgar o habeas corpus contra ato de juiz federal.

            Nisso tal dispositivo se distingue muito do dispositivo contido no mencionado inciso IV do art. 114, por duas razões. Em primeiro lugar, porque sua inserção se faz sentir - ao contrário do inciso I, ‘d’ do artigo 108 da Constituição - na esfera de competência originária e ordinária de primeiro grau.

            Em segundo lugar porquanto, na formulação do inciso IV, in fine, do art. 114 há uma outra referência manifesta à competência penal: a conexão entre o habeas corpus e a matéria correlata, ainda que tal atribuição tenha se expressado de maneira extensiva e conectada [16] à competência para julgar o habeas corpus [17].

            Em não se tratando de competência funcional e hierárquica como está disposto no inciso do art. 108, I, ‘d’, não se vislumbra outra hipótese de matéria sujeita à competência do juiz do trabalho de primeiro grau, que não aquela decorrente dos atos de processamento da competência penal-trabalhista, pois na hipótese de prisão civil decorrente de ato do juiz, a competência é, de forma indiscutível, do Tribunal Regional do Trabalho.

            Poder-se-ia imaginar a hipótese do cabimento de habeas corpus diretamente ao juiz de primeiro grau, que não se tratasse de competência originária dos tribunais, para os casos, por exemplo, de prisão, pela autoridade policial, de sindicalista em meio a movimento paredista.

            Todavia, mesmo, nessa hipótese, não há como desconectar a competência penal da competência para o habeas corpus, pois o fato gerador da medida decorreria sempre de uma conduta passível de ser capitulada em algum tipo penal [18], já que o exercício de greve, por si só, não constitui crime, ao contrário, trata-se, de liberdade fundamental.

            Se se tratar de crime comum, ainda que decorrente da relação de trabalho, a competência para o habeas corpus é da Justiça Comum; se se tratar de crime penal-trabalhista [19], a competência é, sem dúvida do juiz do trabalho de primeiro grau. O sistema resultaria caótico se fosse dado ao juiz do trabalho apenas conceder ou negar uma ordem de soltura, intervindo na jurisdição e no processo virtual ou efetivamente instaurado perante outro juízo.

            Para marcar bem a nota distintiva da competência penal conexa ao habeas corpus, nos termos do inciso IV, seria produtivo distinguir-se uma modalidade de atribuição manifesta de competência: a competência penal manifesta, por extensão.

            Em síntese, a competência penal que decorre do inciso IV do artigo 114 da Constituição transcende a competência penal hierárquica para o habeas corpus e, além disso, se estende para os crimes que decorram da relação de trabalho.


VI – Da Limitação da Competência Penal da Justiça do Trabalho

            A tese da assunção da competência penal pela Justiça do Trabalho não significa, contudo, que todo delito criminal oriundo da relação de trabalho seja da sua competência. Não obstante a referida mutação do critério subjetivo para o critério objetivo, a competência da Justiça do Trabalho somente pode atender aos requisitos de adequação e legitimidade se se configurar, de forma restritiva, não como competência penal comum, mas como tutela jurídica processual de caráter especial, ou seja, como competência penal-trabalhista. Vejamos.

            Se levado a extremo a tese da competência objetiva, estaria inserida na esfera trabalhista, inclusive, a ação penal para julgamento de homicídio praticado pelo empregado contra o patrão, decorrente de desentendimento na execução dos meios de trabalho. Todavia, a prevalecer tal entendimento, a finalidade da especialização de tal ramo do Judiciário perderia sentido e adequação.

            A saída para esse aparente dilema é a concepção de que a competência penal e não-penal (ou econômica) da Justiça do Trabalho se guia pela teleologia da descompensação jurídica da relação de poder e sujeição [20] que existe de fato na prestação de trabalho sob dependência e subordinação econômicas.

            Andou bem, pois, o constituinte ao estender a tutela judiciária especial (que estava restrita à subordinação ´´jurídica´´) a todo tipo de trabalho prestado sob subordinação econômica.

            A extensão dessa tutela judiciária ‘específica’ da relação de ´´poder e sujeição´´ deve ser não apenas abrangente, mas também eficaz, de forma a abarcar tanto o aspecto proativo, promocional e econômico, como também o aspecto punitivo.

            Nessa ordem de idéias, o suposto paradoxo de conjugar a perda do foco de tutela específica, com a necessidade de lidar com o fenômeno trabalho de uma forma mais abrangente se resolve na restrição da competência penal para as hipóteses em que o tipo penal, na sua delineação hipotética, dependa da relação de trabalho exercido sob dependência econômica.

            Assim, o homicídio ocorrido em razão de desentendimento quanto à execução dos meios de trabalho não se desloca para a competência trabalhista porque o tipo penal homicídio se aperfeiçoa, do ponto de vista hipotético e formal, independentemente da noção de relação jurídica de trabalho. A relação de trabalho pode apenas ou não, dependendo da hipótese, ser circunstância de aumento de pena, na forma do art. 226, II do Código Penal.

            Por outro lado, os crimes contra a organização do trabalho, previstos nos artigos 197 a 207 do Código Penal, bem assim, o crime de redução à condição análoga à de escravo (Código Penal art. 149) dependem, na qüididade de sua configuração formal, da noção jurídica da relação de trabalho subordinado. Ou seja, sem a noção de subordinação econômica do trabalho, tais crimes sequer se configurariam em tese.

            Mais tecnicamente, fundados na lição de DAMÁSIO DE JESUS, podermos afirmar que a competência penal da Justiça do Trabalho se limita aos casos em que a existência da relação de trabalho, sob subordinação econômica, constitui elementar do fato típico, e não mera circunstância do crime.

            DAMÁSIO DE JESUS explica que circunstâncias são "determinados dados que, agregados à figura típica fundamental, têm a função de aumentar ou diminuir as suas conseqüências, em regra, a pena" [21]. Já a elementar, ou elemento específico do tipo, desclassifica (atipicidade relativa) ou destipifica (atipicidade absoluta) o fato como crime.

            Assim, a relação necessária de adequação legítima somente se aperfeiçoa quando a relação de trabalho economicamente subordinado surge na própria elementar da tipificação penal, já que a mera circunstância é assessória, não justificando, assim, a necessidade de uma tutela judiciária especializada.

            O requisito da integração da elementar do tipo penal coincide, dessa maneira, o critério de atribuição de competência penal pela natureza da infração, nos termos do inciso III do art. 69 do Código de Processo Penal.

            O crime de assédio sexual, portanto, previsto pelo artigo 216-A do Código Penal, também é da competência da Justiça do Trabalho, já que a subordinação decorrente da relação de trabalho é elemento específico do tipo.

            Nesse sentido se delineia a distinção entre crime comum, circunstancialmente decorrente da relação de trabalho, e delito penal-trabalhista.

            É importante sublinhar, ainda, que o disposto no art. 109,VI da Constituição da República, que dispõe expressamente a competência da Justiça Federal para os crimes contra a organização do trabalho, não inibe as conclusões ora expendidas, senão vejamos.

            É que a despeito da literalidade de tal dispositivo, a jurisprudência, consolidada na Súmula n. 115 do extinto Tribunal Federal de Recursos, consagrou que a competência da Justiça Federal, para essas hipóteses, somente se configura quando se trate de lesão penal de transcendência coletiva e com repercussão geral na organização do trabalho, concebida como sistema.

            Em face disso, o que se sustenta aqui é que apenas os crimes contra a organização do trabalho, de aspecto individualizado, é que se deslocariam da competência da Justiça Estadual, para a Justiça do Trabalho.

            Em face, contudo, da própria ‘adequação legítima’ já acenada, é fundamental que o constituinte desloque ou revogue o mencionado inciso VI do art. 109 da Constituição, a fim de que o fenômeno trabalho tenha um tratamento penal holístico, inclusive do ponto de vista coletivo.

            Assinale-se, por fim, que em face do que dispõe o inciso IX do artigo 114 da Constituição da República, e das razões ora expendidas, especialmente a inexistência de um critério de atribuição penal específica na Constituição, simples lei ordinária poderá trasladar para a Justiça do Trabalho os crimes em que a relação de trabalho subordinado, a despeito de não de compor a elementar da figura típica, for conexa, acessória ou circunstancial ao elemento específico do tipo penal, tais como nos crimes contra a ordem previdenciária, previstos nos artigos 168-A e 337-A do Código Penal.

            Evidentemente, os crimes, cuja competência esteja atribuída diretamente na Constituição, não poderão ser deslocados para a competência da Justiça do Trabalho pela via ordinária, ainda que tenham a relação de trabalho como integrantes da elementar penal, ou que mantenham com ela relação de conexão ou assessoriedade, em razão do sistema de hierarquia das normas jurídicas.


VII – À guisa de Conclusão

            De uma forma bem objetiva, sintetizamos as seguintes conclusões acerca da competência penal da Justiça do Trabalho:

            1.A Emenda Constitucional n. 45/04, ao suprimir as figuras do ‘empregador’ e ‘trabalhador’ da delineação da competência da Justiça do Trabalho, transmutou o critério de atribuição da competência trabalhista, da perspectiva subjetiva para a objetiva;

            2.Tal transmutação para o critério objetivo significou a assunção da competência penal pela Justiça do Trabalho, além daquela simplesmente hierárquica, tanto pela natureza da infração, nos termos do art. 69, III do Código de Processo Penal, como pela relação de adequação legítima entre o processo penal-trabalhista e a Justiça do Trabalho;

            3.Não existe fundamento dogmático ou doutrinário a sustentar a tese de que a competência penal desafia atribuição manifesta na Constituição, uma vez que a atribuição de competência pode se efetivar também de forma latente;

            4.Tendo o Supremo Tribunal Federal definido a natureza penal da ação de habeas corpus, o inciso IV do art. 114 da Constituição é indicativo de que à Justiça do Trabalho foi atribuída bem mais do que simples competência penal-trabalhista latente;

            5.A conexão entre o habeas corpus, de competência originária de 1º grau, e a matéria sujeita à jurisdição da Justiça do Trabalho, como consta do inciso IV do art. 114 da Constituição, é também indicativo de um plus em relação à mera atribuição penal latente; nesse caso, a atribuição de competência penal-trabalhista é manifesta, ainda que por extensão;

            6.Somente os crimes, cuja elementar do tipo penal forem compostos pela relação de trabalho economicamente subordinado, é que estão na esfera penal da Justiça do Trabalho; os crimes, cujas circunstâncias decorram da relação de trabalho, somente poderão se deslocar para a competência da Justiça do Trabalho com a específica autorização de lei ordinária; da mesma forma, os crimes contra a ordem previdenciária, nos termos do inciso IX do art. 114 da Constituição;

            7.Diante disso, se delineia a distinção entre crime comum, circunstancialmente decorrente da relação de emprego (v.g. art. 226,II do Código Penal) e delito penal-trabalhista (v.g. crimes contra organização do trabalho; redução à condição análoga à de escravo e assédio sexual).

            8.Os crimes contra a organização do trabalho, que, antes da E. C. 45/04, eram da competência da Justiça Estadual, nos termos da Súmula 115 do extinto TFR, se deslocam para a competência da Justiça do Trabalho; os crimes contra a organização do trabalho, concebida de uma forma coletiva e como sistema, continuam na órbita da Justiça Federal, em face do que dispõe o art. 109,VI da Constituição.


Notas

            01 STF CJ 6.959-6 (DF) - Ac. Sessão Plenária, 23.05.90 - Rel. Ministro Sepúlveda Pertence - Revista LTr. 59-10/1370.

            02Idem, relator Min. Sepúveda Pertence.

            03 Cf. CORRADO, Renato, apud MARANHÃO, Délio Direito do Trabalho - Rio de Janeiro: FGV, 1966, p.29

            04 Cf. As Nulidades no Processo Penal - 5 ed. revista e ampliada - São Paulo: Malheiros Editores, 1996. p. 60.

            05 a exemplo das demandas em que o sindicato, como substituto processual, litigava contra o empregador sem alteração da competência trabalhista.

            06Cf. CINTRA, A. C. A., GRINOVER, A. P., DINAMARCO, C. – Teoria geral do processo – 7ª ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990 p. 205.

            07Cf. CINTRA (1990) ob. cit., pp. 205 e 207.

            08Cf. CINTRA (1990) ob. cit., pp. 207/208

            09 Cf. CINTRA (1990) ob. cit., p 204.

            10 In Comentários ao Código de Processo Civil – vol. VII – 4ª ed – Rio de Janeiro: Forense, 1992, prolegômenos, p. XII

            11 na própria dicção da Constituição do precitado inciso IV do art. 1°.

            12 Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, n. 17, p.189

            13 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal I - São Paulo: Saraiva, 1990. pp. 407/408.

            14 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1999, p. 128.

            15 Cf. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio – Introdução ao estudo do direito – técnica, decisão dominação – São Paulo: Atlas, 1988, p. 312.

            16 Dispõe o inciso IV, in fine, do art. 114 da Constituição: "(...) habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição" (grifo nosso)

            17 Saliente-se, novamente, a grande identidade que existe entre o bem jurídico tutelado pelo habeas corpus e vários dos delitos penais-trabalhistas, consoante se viu no tópico anterior.

            18 Tanto da conduta dos grevistas, patrões, como até da autoridade policial.

            19 A distinção, para efeitos de competência, entre crime comum e crime da esfera penal-trabalhista será perpetrada no tópico seguinte.

            20 Como ressalta REGINAL MELHADO, o conceito de ´´subordinação jurídica´´ é o aparato jurídico utilizado pelo capital para legitimar e encobrir o seu poder privado de sujeitar o trabalho. Cf. in Poder e Sujeição – os fundamentos da relação de poder entre capital e trabalho e o conceito de subordinação jurídica – São Paulo: LTr, 2003, p. 216.

            21 in Direito Penal - 1º Vol. - Parte Geral - 13ª ed., revista/ampliada – São Paulo: Saraiva, 1988, p. 139


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CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende. A Emenda Constitucional nº 45/2004 e a competência penal da Justiça do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 909, 29 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7787. Acesso em: 25 abr. 2024.