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Teoria geral do garantismo

considerações preliminares

Teoria geral do garantismo: considerações preliminares

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Sumário:Introdução. 1. As três acepções para uma Teoria Geral do Garantismo. 2. O Garantismo sob o ponto de vista externo. 3. O modelo garantista de legitimidade. 4.Considerações Finais. Bibliografia


Introdução:

O garantismo jurídico nasce, nas palavras de N. Bobbio, ao prefaciar a primeira edição da obra Direito e Razão de Luigi Ferrajoli, do interesse em elaborar um "...sistema geral do garantismo jurídico ou, se se quiser, a construção das colunas mestras do Estado de direito, que tem por fundamento e fim a tutela das liberdades do indivíduo frente às variadas formas de exercício arbitrário de poder" [01].

Para tanto, parte de um postulado teórico bem definido, qual seja, de que os ordenamentos jurídicos modernos de todos os Estados democráticos da atualidade estão fundados em parâmetros sólidos de justiça, racionalidade e legitimidade. E que tais parâmetros, embora consolidados por uma estrutura normativa constitucional, são negligenciados em todos os níveis do poder estatal, revelando um Estado moderno em crise de governabilidade, em meio ao paradoxo instalado em seu ordenamento jurídico que abarca um "modelo normativo" garantista por excelência, mas que em sua "prática operativa" revela-se essencialmente antigarantista.

Cria-se, assim, uma clara divergência entre normatividade e efetividade, e o garantismo submerge como um "modelo limite", pelo qual os sistemas são analisados de forma a distingui-los sempre entre o modelo constitucional e o efetivo funcionamento nos seus sistemas inferiores. Dentro dessa premissa, será adequado o sistema constitucional que "...detiver mecanismos de invalidação e de reparações idôneos, de modo geral a assegurar efetividade aos direitos normativamente proclamados." [02]

A proposta de Ferrajoli consiste em resolver esse paradoxo entre modelo normativo e prática operativa, a fim de minimizar a crise presente nos sistemas jurídicos da atualidade.

Formula, portanto, a Teoria Geral do Garantismo Jurídico, partindo de três concepções de garantismo: (i) garantismo como modelo normativo de Direito, em que ".. é a principal conotação funcional de uma específica formação moderna que é o Estado de direito" [03] ; (ii) garantismo como uma teoria jurídica da validade, da efetividade e da vigência das normas; e (iii) garantismo como filosofia do direito e critica da política.

Cademartori, buscando aprofundar o marco teórico da Teoria Garantista, como filosofia política, assevera que: "... impõe ao Direito e ao Estado a carga de sua justificação externa, isto é, um discurso normativo e uma prática coerente com a tutela e garantias dos valores, bens e interesses que justificam sua existência. Isto permite a valoração do ordenamento a partir da separação entre ser e dever ser do direito, o que é denominado por Ferrajoli de ‘ponto de vista externo’. Tal ‘ponto de vista’ é para o autor essencialmente democrático, pois ‘ex parte populi’, à diferença do ‘ponto de vista interno’, que seria para ele ‘ex parte principis’". [04]

À luz desse preceito doutrinário, o presente trabalho tem por objetivo apresentar, em linhas gerais, a teoria do garantismo jurídico, conforme formulada por Ferrajoli, principalmente sob seu aspecto filosófico político ou, como intitula o autor, da "filosofia do direito e crítica da política" [05], limitando-se ao entendimento e análise do modelo garantista de legitimidade e da incorporação de um "ponto de vista externo", com o fim de efetivar a prática de legitimação e de deslegitimação ético-poilitica do Direito e do Estado, de forma a ensejar que a adoção de uma postura garantista represente a transformação do Direito e a consolidação da democracia nas sociedades contemporâneas.


1. As três acepções para uma Teoria Geral do Garantismo Jurídico.

A formulação da teoria garantista de Ferrajoli, nasceu e foi aplicada primordialmente no campo do direito penal como resposta à ".. divergência existente entre normatividade do modelo em nível constitucional e sua não efetividade nos níveis inferiores" [06].

Convicto da sua eficácia Ferrajoli procurou estender o modelo de sua teoria garantista, até então restrita à área penal, para todos os ramos do Direito, aplicando-se-lhes os mesmos pressupostos e a mesma matriz conceitual e metodológica.

A linha condutora para o entendimento de um modelo geral da teoria garantista está presente nas três acepções de garantismo apresentadas pelo seu formulador; acepções estas que interagem entre si, ainda que sejam aparentemente distintas, conforme pretendemos demonstrar no decorrer do desenvolvimento deste comentário.

1.1) A primeira acepção de garantismo:

A primeira acepção de garantismo, tem sua inserção no modelo normativo de Direito, a partir do momento em que postula que "..o garantismo é a principal conotação funcional de uma específica formação moderna que é o Estado de direito".

O Estado de direito, analisado por Ferrajoli, tem sua origem na tese desenvolvida primordialmente por Norberto Bobbio, marco da diferenciação entre os dois tipos de governo fontes do Estado moderno. Assim, a primeira acepção de garantismo jurídico sugere entendamos essa diferença entre: ( i ) um governo sub leges [07], submetido às leis; e (ii) um governo per leges [08], que se expressa mediante leis preponderantemente gerais e abstratas.

Cademartori esclarece que qualquer ordenamento, inclusive os totalitários, poderia ser entendido como "Estado de direito" se analisado pela ótica do governo sub leges. Todavia, pela ótica de um governo per leges "...somente os Estados constitucionais, particularmente os de constituições rígidas, merecem esse epíteto, já que em seus níveis superiores incorporaram não só os procedimentos para a edição de normas de nível inferior, como também os limites substanciais para o exercício de qualquer poder". [09]

Ambas tipificações de governo – sub leges e per leges - coadunam-se perfeitamente aos dois princípios clássicos de legalidade, a saber: (i) a legalidade em sentido lato (ou validade formal); e (ii) a legalidade em sentido estrito (ou validade substancial). [10]

A acepção do termo garantismo, enquanto um modelo normativo de Direito, requer entendamos o "Estado de direito" como aquele que se submete a uma legalidade em sentido estrito (ou validade substancial) - o que Ferrajoli chama de "estrita legalidade", por entender que este princípio exige da lei que condicione a legitimidade do exercício de qualquer poder por ela instituído a determinados conteúdos substanciais.

Sendo assim, Estado de direito é sinônimo de garantismo quando se assemelha a "...um modelo de Estado nascido com as modernas Constituições e caracterizado: (i) no plano formal, pelo princípio da legalidade, por força do qual todo o poder público – legislativo, judiciário e administrativo- está subordinado às leis gerais e abstratas que lhes disciplinam as formas de exercício e cuja observância é submetida a controle de legitimidade por parte dos juizes delas separados e independentes; (ii) no plano substancial da funcionalização de todos os poderes do Estado à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, por meio da incorporação limitadora em sua Constituição dos deveres públicos correspondentes, isto é, das vedações legais de lesão aos direitos à liberdade e das obrigações de satisfação dos direitos sociais." [11]

Portanto, a distinção entre legitimidade formal e legitimidade substancial é imprescindível para que se compreenda a relação entre democracia política e Estado de direito, fazendo a primeira (formal), referência à forma de governo, e a segunda (substancial) à estrutura de poder.

Tal distinção é necessária para que não se confunda o Estado de direito, entendido como sistema de limites substanciais aos poderes públicos para a consecução das garantias dos direitos fundamentais, ao Estado absoluto, seja ele democrático ou não. [12]

O garantismo como modelo normativo de Direito, segundo Cademartori permite o estudioso analisar um determinado sistema constitucional para verificar eventuais antinomias entre as normas inferiores e seus princípios constitucionais, bem como incoerências entre as praticas institucionais efetivas e as normas legais. A partir daí, poderá inferir-se o grau de garantismo do referido sistema, ou seja, o grau de efetividade da norma constitucional." [13]

1.2) A segunda acepção de garantismo:

A segunda acepção de garantismo corresponde ao campo da teoria jurídica da validade, da efetividade e da vigência das normas, quando estabelece uma diferença entre "ser" e "dever ser" no Direito; diferença esta centrada na discrepância entre os modelos normativos (tedencialmente garantista e, desse modo, válidos, mas ineficazes) e as práticas operativas vigentes (tedencialmente antigarantistas e, portanto, inválidas mas eficazes). Embora, identificando tais diferenças, Ferrajoli busca, por assim dizer, aproximar os seus elementos, visto entender que pode existir validade sem efetividade e, em um patamar inferior de garantismo, efetividade sem validade, motivando, assim, uma reformulação das noções tradicionais de validade e vigência.

Partindo dessa premissa, se em Kelsen a validade de uma norma está em uma outra norma que lhe é anterior no tempo e superior hierarquicamente, o que equivaleria às diretrizes formais para que tais normas sejam válidas. Revelando a existência de um mecanismo de derivação entre as normas jurídicas, dentro de uma idéia de supra e infraordenação e entre as espécies normativas. [14]

Contudo, evidencia-se que Ferrajoli adere à mesma um novo elemento ao conceito de validade, ou seja, uma norma será válida não somente por sua adequação formal às normas do ordenamento jurídico que lhe são anteriores e estabelecem pressuposto para sua verificação, mas sim a partir do momento em que a validade traz em si elementos de conteúdos materiais, como fundamento da norma, pautados nos direitos fundamentais.

Dessa feita, a teoria garantista propõe uma redefinição das categorias tradicionais, reconhecendo como vigentes (ou formais), as normas postas pelo legislador ordinário em conformidade com os procedimentos previstos em normas superiores (este é o caso de uma norma que ingresse no ordenamento jurídico a partir do esquema formal de Kelsen), remetendo a palavra validade, à validade substancial dos atos normativos inferiores (caso em que se consideraria tal norma como inválida, se em desconformidade com a racionalidade material deste ordenamento, se não observasse, por exemplo, os direitos fundamentais garantidos por este ordenamento).

Observa-se também que dentro de segunda acepção o garantismo opera "... como doutrina jurídica de legitimação e, sobretudo, de perda de legitimação interna do direito, que requer dos juízes e dos juristas uma constante tensão crítica sobre as leis vigentes, por causa do duplo ponto de vista que a aproximação metodológica aqui delineada comporta seja na sua aplicação, seja na sua explicação: o ponto de vista normativo, ou prescritivo do direito válido e o ponto de vistas fático, ou descritivo, do direito efetivo." [15]

Com base nessas redefinições, entende Cademartori, que o "pano de fundo teórico – geral do garantismo", constitui-se também de quatro predicados distintos que se podem imputar às normas, a saber: justiça, vigência, validade e eficácia (efetividade). [16]

Importante ressaltar que o garantismo se insere dentro de um modelo positivista próprio do Estado moderno, consubstanciado pela forma jurídica do

Estado, em conformidade com o princípio da legalidade, desde que o mesmo seja apreendido dentro do conceito de um juspositivismo crítico, em contraposição ao juspositivismo dogmático. Eis, pois, a diferença substancial entre normas vigentes, válidas e eficazes. [17]

Assim sendo, encontra-se o objeto, o ponto de partida para uma teoria positivista crítica, a qual, por sua vez, não é externa, ao contrário, é interna, isto é, inerente ao próprio processo científico e questionador que se depreende do exercício da atividade jurisdicional.

Embasado neste postulado, Ferrajoli deixa claro que "Em contraste com as imagens edificantes dos sistemas jurídicos oferecidos a partir de suas representações normativas, e com a confiança a priori difusa da ciência jurídica na coerência entre normatividade e efetividade, a perspectiva garantista requer, ao contrário, a dúvida, o espírito crítico e a incerteza permanente sobre a validade das leis e de suas aplicações e, ainda, a conseqüência do caráter em larga medida ideal – e, em todo o caso não realizado e a realizar- de suas mesmas fontes de legitimação jurídica." [18]

Isto posto, as determinações a priori contidas na distinção entre normatividade e efetividade não têm por objetivo determinar certezas absolutas, como a unidade e coerência inerentes a um ordenamento jurídico, mas ao contrário, pretende o questionamento, o espírito crítico do operador do direito, em verdadeiro estado de prontidão, objetivando perquirir sempre, ainda que partindo de um referencial estatal, sobre a validade da lei posta, em sintonia com a possibilidade real de sua aplicabilidade, com eficácia.

1.3) A terceira acepção de garantismo:

A terceira, e última, acepção de garantismo é apresentada por Ferrajoli sob a denominação de "ponto de vista externo", via da qual sustenta que a teoria garantista comporta também uma filosofia do direito e uma crítica da política. Neste sentido invoca a presença de uma filosofia política que impõe ao Direito e ao Estado a carga de sua justificação externa, fato que permite a valoração do ordenamento, a partir da dicotomia ser e dever ser do direito, o que Ferrajoli chama de "ponto de vista externo". Isso vale dizer que o ponto de vista externo ".. equivale à assunção, para os fins de legitimação e da perda de legitimação ético-política do Direito e do Estado, do ponto de vista exclusivamente externo." [19]

Dentro dessa assertiva, conclui que uma doutrina filosófica-política, permite não somente a crítica, mas é também responsável pela "...perda da legitimação desde o exterior das instituições jurídicas positivas, baseadas na rígida separação entre direito e moral, ou entre validade e justiça, ou entre direito e moral, ou entre validade e justiça, ou entre ponto de vista jurídico ou interno e ponto de vista político ou externo do ordenamento." [20]

Por seu turno, Ferrajoli afirma que a confusão e separação entre legitimação interna ou jurídica e legitimação externa ou moral, equivale às duas vertentes existentes nas doutrinas políticas que fundamentam os sistemas políticos de todos os tempos, a saber: (i) à primeira, denominada pelo mesmo de doutrinas "autopoiéticas", correspondem às doutrinas políticas que fundamentam os sistemas políticos sobre si mesmas; (ii) a segunda, designada como doutrinas "heteropoiéticas", dizem respeito a legitimação externa ou moral, cuja doutrina política se funda na finalidade social, tendo suas instituições políticas e jurídicas justificadas como mecanismo garantidor dos direitos fundamentais dos cidadãos.

É de todo importante ressaltar que são "autopoiéticas", todas as doutrinas de legitimação que fundamentam a razão de ser do Estado em identidades metafísicas como religião, natureza e similares. Do mesmo modo, o são as doutrinas idealistas, versões do juspositivismo ético-liberal-nacionalista, como as fascistas e stalinistas, porque assumiram "...o princípio da legalidade não só como princípio jurídico interno, mas também como princípio axiológico externo, sobrepondo à legitimidade política a legalidade jurídica e conferindo às leis valor, e não apenas validade ou vigor, unicamente com base no valor associado à priori, à sua forma, ou pior, à sua fonte (o soberano, ou a assembléia, ou o ditador, ou o partido, o povo, ou similares)". [21]

Ferrajoli é categórico ao afirmar que a perda de um ponto de vista ético-político externo tem como conseqüência a negação da legitimidade, dando margem a uma doutrina de ausência de limites aos poderes do Estado.

O garantismo, num sentido filosófico – político, consiste essencialmente nesta fundação heteropoiética do direito, separado da moral.


2. O ponto de vista externo

Neste tópico os nossos comentários circunscrevem-se especificamente aos argumentos sustentados por Ferrajoli no Capítulo 14 da sua obra, oportunidade em que apresenta a sua "análise metateórica do ponto de vista externo", onde, partindo da vinculação dos poderes com os direitos fundamentais, elucida, esclarece e identifica a simetria existente nas relações entre cidadãos e Estados e tudo mais que deriva desta relação.

Com base no seu conceito de "ponto de vista externo", Ferrajoli esclarece que o significado desse conceito está diretamente vinculado ao ponto de vista das pessoas, dos cidadãos. É o valor atribuído à pessoa, fundado no princípio da igualdade jurídica, em que se inclui as diferenças pessoais e se exclui as diferenças sociais.

Segundo o autor, o princípio da igualdade jurídica, embora sendo um princípio complexo, possui, num primeiro sentido, um valor associado indistintamente à todas as pessoas, "sem distinção". Num segundo sentido, as diferenças se resolvem em privilégios ou discriminações sociais que, segundo o autor, "...lhe deformam a identidade e lhe determinam a desigualdade, lesando-lhe ao mesmo tempo o igual valor." [22]

Dissecando esse entendimento, Cademartori esclarece, "com a normatização da igualdade formal, parte-se do pressuposto de que os homens devem ser considerados como iguais (abstraindo suas diferenças pessoais, tais como, raça, sexo, etc.) Com a afirmação da igualdade substancial, sustenta-se que as diferenças sociais devem ser levadas em conta, mas os homens devem ser igualados na medida do possível. Então chamará o autor de diferenças as diversidades do primeiro tipo e desigualdades as do segundo." [23]

Portanto, independente da tipologia, a igualdade jurídica, seja formal ou substancial, será definida como igualdade nos direitos fundamentais, onde garantias do direito à liberdade (ou direitos de) equivalem a igualdade formal ou política, enquanto as garantias dos direitos sociais ( ou direitos a ) asseguram a igualdade substancial.

Embasado nesta sustentação, Ferrajoli concebe o direito à igualdade como um metadireito, tanto no que diz respeito à liberdade, relacionadas aos direitos de liberdade, quanto à fraternidade, objetivada pelos direitos sociais.

Também é neste sentido que os direitos fundamentais são redefinidos, "como aqueles direitos cuja garantia é necessária a satisfazer o valor das pessoas e realizar-lhes a igualdade. Diferentemente dos direitos patrimoniais (tais como dos direitos patrimoniais ao direito de credito) os direitos fundamentais não são negociáveis e dizem respeito a "todos" em igual medida, em razão da identidade de cada um como pessoa e/ou como cidadão." [24]

É, portanto, a autonomia crítica da política e da moral sobre o direito positivo que faz com que este seja um meio para realizar os valores metajurídicos, ou seja, externos. A este princípio são somadas três teses: (i) a refutação do legalismo ético; (ii) a inexistência de uma obrigação política e moral, mas jurídica de obedecer às leis; (iii) a crítica do conceito de soberania estatal. [25]

A separação entre direito e moral e a necessidade de se recorrer a princípios morais que justifiquem as decisões político-jurídicas, não implicam numa contradição no Sistema Garantista (SG). Na realidade, a relação dicotômica existente entre direito e moral quer dizer, num sentido assertivo, que moral e direito não se confundem; e principalmente, que a moral não é suficiente nem em sede judiciária, nem em sede executiva para justificar a intervenção penal. Daí a existência e o primado do ponto de vista externo.

Assim, refutar o legalismo ético representa a própria assunção de um ponto de vista externo, ou seja, de um modelo heteropoiético do direito. O que não quer dizer que o primado de um ponto de vista extrajurídico, impeça que o Direito assuma determinados valores. Como vimos, esta é a própria característica distintiva do Estado de Direito.

Quanto a tese da existência ou não de uma obrigação moral de se respeitar o Direito, esta nos remete a duas outras questões: (i) a obrigação de obedecer às leis é universalizável?; (ii) o Estado de direito pode pretender uma adesão moral para além da adesão jurídica? [26]

De acordo com Ferrajoli, responder positivamente a estas duas questões nos levaria a um legalismo ético (embasado num positivismo dogmático), que per si o SG refuta. Na verdade, a adesão moral do cidadão ao Estado de Direito é conseqüência do fato de ele não a pressupor.

A terceira tese suscitada é a da existência de uma "soberania limitada" como característica do Estado de Direito. Esta idéia, no entanto, está menos ligada a uma orientação jurídica, (uma vez que o conceito jurídico de soberania abarca seu caráter absoluto) e mais propensa a uma orientação política, isto é, está voltada para o entendimento de uma realidade ainda em construção, das mudanças realizadas no plano da autonomia externa dos Estados Nacionais. Significa a insustentabilidade - já defendida por Kelsen - do dogma da soberania absoluta. Acalentando interessante discussão acerca da relação entre garantismo e Federalismo em nível mundial, a partir da aceitação de todos os paises, de um direito internacional eficaz e garantista, com poder de controle externo sobre os poderes internos desses mesmos Estados.


3. O modelo garantista de legitimidade

Nos tópicos precedentes procuramos expositar a Teoria do Garantismo Jurídico de forma resumida em grandes linhas, após breves considerações acerca do sistema garantista enquanto modelo de uma Teoria geral, acrescida de suas implicações filosóficas e políticas na construção de um paradigma diferenciado para melhor compreensão dos modernos ordenamentos jurídicos, a fim de buscar reunir elementos que fundamentem o modelo garantista de legitimidade, projetado por Ferrajoli.

Como dito, os princípios de legitimação interna (ou jurídica) e externa (ou moral), próprios da tradição jurídica, puderam ser compreendidas por uma alternativa mais geral, centrada na filosofia política, a partir das doutrinas políticas que Ferrajoli denominou de autopoiéticas (que fundamentam o Estado e o direito sobre si mesmos), e as denominadas doutrinas heteropoiéticas (doutrinas políticas que fundamentam o Estado e o direito sobre finalidades sociais).

Assim, o garantismo, no seu sentido filosófico-político, consubstancia o seu primado na fundação heteropoiética do direito, separado da moral.

Tal assertiva, segundo Cademartori, leva ao entendimento de que "O Estado de direito é caracterizado politicamente pelo garantismo como um modelo de ordenamento justificado ou fundamentado por fins completamente externos, geralmente declarados em suas Constituições, mas sempre de forma incompleta, e a política é vista como do agir social, servindo de critério de legitimação para a critica e a mudança do funcionamento de fato e dos modelos de direito vigentes." [27]

Pode-se aferir então, que a legitimidade dos poderes sob a ótica garantista é sempre a posteriori, relaciona-se a cada um de seus atos singularmente. Dessa forma, a legitimidade é medida em graus, variável segundo a aplicabilidade das funções próprias de cada poder. O grau de garantismo seria maior, por exemplo, se observássemos somente as normas estatais vigentes sobre os direitos sociais, em um país como o nosso, mas seria ao revés, em termos de aplicabilidade dessas mesmas normas, muito menor.

O garantismo contrapõe-se as tradicionais teorias de legitimação, na medida em que denuncia o comportamento ideológico em que se submeteram tais teorias.

É categórico ao afirmar que essas teorias se transformaram em ideologias de legitimação, pois se estabeleceram não como ponto de partida, mas como fontes de legitimação absoluta dos sistemas políticos.

O modelo garantista de legitimidade, compreende o direito e o Estado como instrumento de consecução, para se chegar a um fim, vinculado a interesses externos a ele mesmo. Há uma evidente ligação entre os poderes e os direitos fundamentais, a missão do Estado de Direito não se limita ao plano normativo, mas se estende a luta social (fática e política), para assegurar o cumprimento das garantias vislumbradas pela Constituição.

O "ponto de vista externo", incorporado no moderno Estado de direito em normas Constitucionais dos direitos fundamentais dos cidadãos, equivale neste sentido, à assunção, para fins de legitimação e da perda de legitimação ético-política do direito e do Estado, do ponto de vista exclusivamente externo. Tanto é assim, que a perda de um ponto de vista ético-político externo, independente do interno, implicaria na negação da legitimidade e conseqüentemente no surgimento de uma doutrina de ausência de limites aos poderes do Estado.

Portanto, é de clareza solar que o modelo garantista de legitimidade, ao avaliar o poder a partir de valores superiores e externos ao Estado, assegura a manutenção do poder como meio à satisfação dos interesses da sociedade e, portanto, é uma teoria coerente com a análise de instâncias políticas.


4. Considerações finais

Como visto, a Teoria Geral do Garantismo Jurídico, formulada por Ferrajoli, nasce como resposta a uma das questões centrais da Filosofia do Direito na atualidade, no que se refere ao debate acerca da imensa disparidade entre teoria e prática em sede de direitos fundamentais do homem.

O que se constata hoje em nosso meio como uma crise institucional, que também se revela nas questões ético-filosóficas como da legitimidade e da distinção das noções de vigência e validade, está relacionada principalmente a dinâmica contraditória entre a declaração solene dos direitos fundamentais num ordenamento jurídico e o emprego dos meios necessários para a sua concretização. [28]

Dessa feita, surge a necessidade de adoção de um modelo, que além de fornecer os instrumentos necessários para tal prática, seja, nas palavras de Cademartori, "...uma ferramenta idônea para, por um lado, descrever o Estado Constitucional de Direito enquanto fenômeno normativo, e de outro, postular o resgate de sua legitimidade, subtraindo-o a empregos desviados de seus fins que maiorias eventuais possam utilizar." [29]

Ao propor um modelo ideal de ação, caracterizado pela primazia do direito substancial, Ferrajoli aponta para a incorporação de limitações e imposições normativas de atuação dos governos em seus ordenamentos jurídicos, para que os mesmos se aproximem do real Estado de Direito, com o propósito de se tornar um sistema efetivo de garantias para os cidadãos.

Cabe ao intérprete, fazer com que a finalística garantista algumas vezes implícita na norma, venha à tona, em toda sua concretude, enunciando práticas tedencialmente antigarantistas dos governos, que motivados por fatores econômicos, muitas vezes em desconformidade com a lógica jurídica, passam por cima das garantias consolidadas pelas Constituições, voltada à satisfação dos interesses da sociedade.

Neste sentido, o resgate da legitimidade do Estado de Direito, é um trabalho contínuo que deve ser feito coletivamente, por toda a sociedade. Não se limita ao plano normativo, é uma luta social cotidiana, para assegurar o cumprimento das garantias Constitucionais. Sob pena de cairmos na falácia normativista, em que o direito vigente é incontestavelmente tido como válido, e continuarmos submetidos a sistemas desiguais e manipuladores, que sustenta o Estado como única forma legitima de produção e aplicação do direito.


Bibliografia:

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.

CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do advogado, 1999.

KELSEN. Hans: Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1985.

BOBBIO, Norberto: A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

CADEMARTORI, Sérgio U.; XAVIER, Marcelo Coral. Apontamentos iniciais acerca do garantismo. Artigo disponível na página do Programa Especial de Treinamento do curso de Direito da UFSC na Internet (http://www.ccj.ufsc.br/~pet).


Notas

01 Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. (p.7)

02 Direito e razão, p 684

03 Direito e Razão, p. 683

04 Cadermatori, Sérgio. Estado de Direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do advogado, 1999. (p.155)

05 "neste sentido o garantismo pressupõe a doutrina laica da separação entre direito e moral, entre validade e justiça, entre ponto de vista externo e ponto de vista interno na valoração do ordenamento, ou mesmo entre o ‘ser’ e ‘dever ser’ do direito. E equivale à assunção, para os fins de legitimação e da perda da legitimação ético-política do direito e do Estado, do ponto de vista exclusivamente externo" (direito e razão, p. 685)

06 Direito e Razão, p. 683

7 Segundo Ferrajoli o poder sub lege, pode ser entendido de duas formas: "num sentido débil, ou lato, ou formal, no qual qualquer poder deve ser conferido pela lei e exercitado na forma e com os procedimentos por ela estabelecidos; e num sentido forte, ou estrito, ou substancial, no qual qualquer poder deve ser limitado pela lei que lhe condiciona não somente as formas, mas também os conteúdos." Direito e Razão. p.687

08 Resumindo as características de um governo per leges, Cademartori conclui : "estes três elementos (generalidade, abstração e vontade geral), conformam a função ou potencial garantista da lei enquanto forma jurídica: enquanto norma geral e abstrata responde às exigências de igualdade e enquanto fruto da vontade geral atende à exigência de liberdade como autonomia ou como determinação autônoma não autoritária." p.23

09 Cademartori.S. Estado de direito e legitimidade, p. 156

10 Para Cademartori, estes dois modelos de legalidade correspondem a fontes de legitimação: "...legalidade em sentido amplo (mera legalidade), segundo a qual a lei é condicionante, e legalidade em sentido estrito (legalidade estrita), por força da qual a lei se encontra condicionada" p. 157

11 Ferrajoli, Direito e razão, p. 688

12 Ferrajoli esclarece: "Mesmo a democracia política mais perfeita, representativa ou direta, é precisamente um regime absoluto e totalitário se o poder do povo for nela ilimitado (...) nem se quer por unanimidade pode um povo decidir (ou consentir que se decida) que um homem morra ou seja privado sem culpa de sua liberdade, que não se reúna ou se associe à outros.." Direito e razão. P. 690

13 Cademartori,S. Op. Cit., p.76

14 Kelsen. Hans: Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1985, p. 205 s e 240 s

15 Direito e razão, p. 684

16 Segundo Cademartori : a) uma norma é "justa" quando responde positivamente a determinado critério de valoração ético-político (logo, extrajurídico); b) uma norma é "vigente" quando é despida de vícios formais, ou foi emanada ou promulgada pelo sujeito ou órgão competente, de acordo com o procedimento prescrito; c) uma norma é "válida" quando está imunizada contra vícios materiais, ou seja, não está em contradição com nenhuma norma hierarquicamente superior; d) uma norma é "eficaz" quando é de fato observada pelos seus destinatários (e/ou aplicada pelos órgãos de aplicação)."P. 80

17 A esse respeito Cademartori esclarece: "De fato, denuncia ele (Ferrajoli) como "ideológicas" tanto as orientações normativistas, que confundem vigência com validade, quanto as teorias realistas, que reduzem a validade à eficácia. As primeiras são tidas como ideológicas por contemplarem apenas o Direito válido, esquecendo-se de sua possível ineficácia; as segundas porque apreciam apenas na normas eficazes, deixando de lado a sua possível invalidade." p. 80

18 Direito e Razão, p. 685

19 Ferrajoli,L Direito e razão, p 685

20 Ibid, p. 705

21 Ibid. p.707

22 Ibid. p. 726

23 Cademartori S. Estado de Direito e legitimidade, p. 166

24 Ferrajoli. Direito e Razão. P.727

25 Cademartori, S U.; Xavier, Marcelo Coral. Apontamentos iniciais acerca do garantismo. Artigo disponível na página do Programa Especial de Treinamento do curso de Direito da UFSC na Internet (http://www.ccj.ufsc.br/~pet).

26 Cademartori, S U.; Xavier, Marcelo Coral. Apontamentos iniciais acerca do garantismo. Artigo disponível na página do Programa Especial de Treinamento do curso de Direito da UFSC na Internet (http://www.ccj.ufsc.br/~pet).

27 Cademartori S. Estado de direito e legitimidade, p. 164

28 Neste sentido, esclarece Bobbio: "... o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, (...), mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados", p. 25.

29 Cademartori, Estado de direito e legitimidade, p. 171


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ASSUNÇÃO, Marlize Daltro. Teoria geral do garantismo: considerações preliminares. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 970, 27 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8037. Acesso em: 27 abr. 2024.