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Breves notas sobre o princípio da impessoalidade

Breves notas sobre o princípio da impessoalidade

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A grande dificuldade da garantia da impessoalidade estatal reside na circunstância de que as suas atividades são desempenhadas pelas pessoas, cujos interesses e ambições afloram mais facilmente ali, em razão da proximidade do Poder e, portanto, da possibilidade de realizá-las, valendo-se para tanto da coisa que é de todos e não apenas delas.

Carmem Lúcia Antunes Rocha

A Administração Pública vale exatamente o quanto valem os homens que a compõem.

Pierre Escoube

Sumário: 1 – Introdução; 2 – O princípio da impessoalidade na Constituição Federal de 1988; 3 – Fundamentos do princípio da impessoalidade; 4 – O princípio da impessoalidade na doutrina brasileira; 5 – Impessoalidade como Imparcialidade; 6 –Conclusões; 7 – Referências;


1- Introdução

Embora a afirmação sofista segundo a qual "nomes são simples rótulos que sobrepomos às coisas" tenha alçado o status de topos, não se pode perder de vista que o uso reiterado dos nomes, sem dúvida, em algum momento, faz com que se tornem significantes e, portanto, remetam a determinado(s) significado(s). E por mais vaga que a idéia de impessoalidade se nos apresente neste momento, o cotejo desta idéia, ainda que vaga, com a prática cotidiana da Administração Pública brasileira revela sua total infirmação.

A começar pela prática usual de se ter a foto do Chefe do Executivo em todos os órgãos da Administração Pública [01], como resquício de uma cultura herdada do Absolutismo, em que a pessoa do Estado se confundia com a pessoa do Monarca, e passando por vários outros exemplos, onde se destaca a questão da normalidade como se pratica e encara o nepotismo, vê-se que a impessoalidade é princípio que carece de maior efetividade.

Para tanto, expoentes da nossa nova doutrina têm se esforçado em atribuir ao princípio significado autônomo, desvinculando-o da idéia de igualdade, a qual classicamente sempre esteve atrelado, para conectá-lo à idéia de imparcialidade, como já vem ocorrendo no direito comparado, principalmente nos ordenamentos ibéricos.

O propósito deste breve estudo é analisar o princípio da impessoalidade no ordenamento jurídico brasileiro, seus fundamentos e a possibilidade de desvinculá-lo do princípio da igualdade. Num primeiro momento, apresentar-se-á breve panorama acerca do entendimento doutrinário do princípio, demonstrando-se como nossos autores divergem no que tange à conceituação e alcance da impessoalidade. Depois, demonstrar-se-á a tendência contemporânea de se extrair deveres autônomos decorrentes do princípio da impessoalidade, o que se faz associando-o a idéia de imparcialidade, discutindo-se, ao final, a validade das premissas utilizadas pelos autores para diferenciá-lo do princípio da igualdade.


1- O princípio da impessoalidade na Constituição Federal de 1988.

Insculpido no artigo 37 [02] caput, da Constituição Federal, o princípio da impessoalidade ultrapassa as barreiras de sua delimitação constitucional [Titulo III (Da Organização do Estado), Capítulo VII (Da Administração Pública)], na medida em que é corolário direto dos sobreprincípios que fundam a República Federativa do Brasil e que podem ser extraídos dos artigos 1º ao 4º da Carta da República. Neste sentido, a doutrina é praticamente unânime em afirmar que não se trata de princípio específico da Administração Pública, consoante aparentemente prescreve o texto constitucional, mas de norma a qual estão vinculados todos os poderes do Estado [03]. Tanto é assim que a elaboração normativa não pode revestir-se de caráter pessoal, isto é, a lei não pode ser elaborada tendo em vista o rosto de determinado(s) administrado(s), sob pena de ofensa à impessoalidade. No caso do Judiciário, por outro lado, basta atentar para que os impedimentos e suspeições dos magistrados nada mais são que decorrência direta do dever de imparcialidade, que tem como fundamento imediato a impessoalidade (e como fundamento mediato, sem qualquer dúvida, a igualdade).

Na verdade, se levarmos em conta que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito (CF, artigo 1º, caput) que tem como fundamento, dentre outros, a dignidade humana (inciso III ao artigo 1º) e onde todos são iguais perante a lei (art. 5º, caput), o que indubitavelmente se extrai dos artigos 1º ao 5º da Constituição Federal, pode-se afirmar que o princípio da impessoalidade nem precisaria estar expresso no artigo 37, caput da Constituição Federal, na medida em que decorre diretamente desses princípios e sobreprincípios que são seu fundamento.

Ao nosso ver, o princípio da impessoalidade nada mais representa do que uma densificação possível dos sobreprincípios fundantes do ordenamento jurídico brasileiro [04] que, muito mais do que um significado autônomo, tem como principal função a de servir de ponte entre os princípios estruturais e os deveres deles advindos ( o que não é pouco). No entanto, como se verá adiante, a doutrina insiste, ao nosso ver ainda sem lograr êxito, em dissociá-lo do princípio da igualdade, demonstrando uma preocupação exagerada em distingui-lo de referido princípio [05] (como se dizer que determinada conduta ofende o princípio da igualdade ou ofende o princípio da impessoalidade trouxesse alguma diferença em termos de violação à Constituição).


2 – Fundamentos do princípio da impessoalidade.

Na Constituição Federal de 1988, que é o objeto sobre o qual se assenta este breve estudo, pode-se encontrar uma gama de sobreprincípios e princípios a fundamentarem e lançarem os contornos da impessoalidade, a saber: o Estado de Direito, o princípio democrático, o princípio republicano e os direitos fundamentais, onde se destaca o direito à igualdade de tratamento por parte do Estado (princípio da igualdade).

O Estado de Direito fundamenta o princípio da impessoalidade na medida em que significa a superação das monarquias absolutistas, onde a vontade do Estado nada mais era que a vontade do soberano. No Estado de Direito o Estado é a pessoa e o Direito é a sua vontade, traduzindo os fins a serem perseguidos, previamente estabelecidos pelos próprios destinatários das normas (em se tratando também de Estado Democrático). No Estado de Direito funda-se a impessoalidade na medida em que a atividade estatal é pautada pela lei e deve levar em conta os interesses individuais e coletivos de todos os administrados, e não de pessoas determinadas.

O princípio democrático, assentado na soberania popular, faz com que todos tenham o mesmo valor no momento de escolher os representantes responsáveis pela votação das normas que ao povo retornarão. E se o poder é do povo e a ele retorna sob a forma de normas igualmente válidas para todos, a conduta dos representantes do povo, que em nome dele exercem um poder funcional, deve pautar-se sempre em critérios supra-individuais, o que significa levar em conta sempre, a um só tempo, os interesses de cada um e de todos os indivíduos que juntos detêm a titularidade da soberania.

O princípio da igualdade, por sua vez, exige que as decisões estatais sejam tomadas sem a consideração da pessoa, mas com a consideração objetiva dos pontos de vista estabelecidos em lei. No dizer de Carmem Lúcia Antunes Rocha [06], à generalidade da lei (o que é necessário para garantia da igualdade) corresponde (ou deve corresponder) a impessoalidade da administração (o que, ao nosso ver, corrobora o entendimento de que o princípio da igualdade, na acepção formal e substantiva, engloba o princípio da impessoalidade).


3 – O princípio da impessoalidade na doutrina brasileira.

A análise do princípio da impessoalidade na doutrina brasileira revela que a esta norma têm sido atribuído diferentes significados e alcances, conforme o autor estudado.

Assim é que Hely Lopes Meirelles [07] e Diogo de Figueiredo Moreira Neto [08] tendem a conceituá-lo como o princípio da finalidade, enquanto Maria Sylvia Zanella Di Pietro [09], além da relação com a finalidade pública, vê no princípio o fundamento para a imputação dos atos administrativos à Administração, e não à pessoa do agente que o pratica.

Noutra esteira, Celso Antônio Bandeira de Mello [10] o identifica com o princípio da igualdade, no que é acompanhado por vários outros autores [11].

Há ainda quem identifique a impessoalidade com a moralidade, como faz Ives Gandra da Silva Martins. [12]

Enfim, alguns autores procuram seguir a tendência atual de buscar um significado autônomo para a impessoalidade, o que fazem aproximando-o da idéia de imparcialidade. Entre estes, Lucia Valle Figueiredo [13], Carmem Lúcia Antunes Rocha [14] e Ana Paula Oliveira Ávila [15].

A verdade, ao nosso ver, é que a falta de efetividade do princípio da impessoalidade deve-se muito mais a um problema cultural que propriamente técnico. Não que este último não exista. Existe e não requer grande labor identificá-lo na dificuldade que a doutrina nacional ainda tem de manusear os princípios, notadamente na sua modalidade de eficácia que se pode designar integradora. Mas se este problema pode ser sanado com certa facilidade, o primeiro requer o rompimento com paradigmas que estão no pano de fundo das relações Administração/Administrados desde a época colonial (os paradigmas do paternalismo, patrimonialismo, privatização do público, coronelismo e tudo mais que caracteriza nossos ciclos do atraso). São estas, na verdade, as causas da carência de efetividade do princípio da impessoalidade [16].


4 – Impessoalidade como Imparcialidade.

Com o desiderato de municiar com maior robusteza o princípio, parte da doutrina nacional, atenta aos estudos de direito comparado, tem acompanhado a tendência de procurar dar autonomia ao princípio da impessoalidade, distinguindo-o da igualdade e identificando-o como fundamento dos deveres de imparcialidade.

É o que faz Ana Paula Oliveira Ávila, em profundo trabalho sobre a matéria [17]. Para demonstrar a diferença entre os princípios da igualdade e impessoalidade a autora vale-se de duas justificações, colhidas dos trabalhos de Lucia Valle Figueiredo [18] e Carmem Lucia Antunes Rocha [19]. Discutamos cada uma delas:

Afirmando ser Lucia Valle Figueiredo quem deduz do princípio da impessoalidade o conteúdo principal que seu estudo procura desenvolver, o da impessoalidade como imparcialidade, Ana Paula Oliveira Ávila colhe a seguinte passagem de referida autora para diferenciá-lo da igualdade:

"A impessoalidade pode levar à igualdade, mas com ela não se confunde. É possível haver tratamento igual a determinado grupo (que estaria satisfazendo o princípio da igualdade); porém, se ditado por conveniências pessoais do grupo e/ou do administrador, estará infrigindo a impessoalidade [20]".

Sobre a hipótese ventilada, que fundamentaria a pretensa distinção, e que influenciou tanto as premissas adotadas por Ana Paula Oliveira Ávila ao ponto de ter sido colacionada repetidas vezes em seu estudo, a autora aduz que, acaso a impessoalidade fosse entendida como corolário da igualdade, "a situação apontada por Lucia Valle Figueiredo, em que se preserva a igualdade, mas viola-se a impessoalidade, ficaria sem resposta jurídica [21]".

Com a devida vênia, consideramos que a hipótese colacionada revela muito mais uma redução do conteúdo do princípio da igualdade do que propriamente a descoberta de um campo autônomo de incidência para o princípio da impessoalidade. Parece-nos de uma clareza meridiana que o exemplo hipotético teria sim resposta jurídica com base no princípio da igualdade bastando, para tanto, um novo olhar sob a mesma situação descrita.

Ora, se o tratamento a determinado grupo, ainda que igual para todos os seus membros, é ditado por conveniências pessoais do grupo ou do administrador, por óbvio que este grupo está sendo tratado, sem um critério de discrimen juridicamente autorizado, de forma desigual em relação aos demais grupos ou demais pessoas, o que, indubitavelmente, fere o princípio da igualdade. Note-se que não se trata de outro caso, mas um olhar mais amplo lançado sobre a mesma situação (tem-se ofensa à igualdade quando se analisa o mesmo caso, mas da perspectiva da relação do grupo com os que dele não fazem parte). Por outro lado, se o tratamento diferenciado do grupo se dá pela aplicação de critérios objetivamente fixados em lei (e justificados pelas finalidades legais), não se fere a igualdade nem a impessoalidade, pois os membros do grupo terão tratamento diferenciado não em razão de conveniências pessoais, mas por apresentarem condições que se subsumem na hipótese normativa.

Também para justificar a diferenciação, Ana Paula Ávila colhe de Carmem Lucia Antunes Rocha a seguinte passagem:

" Na mesma linha, ANTUNES ROCHA, apoiada nas lições de RUI BARBOSA, para quem "quando a lei dispõe do termo especifico e unívoco(...) não deve ir buscar o indeciso e multicor. Usemos, na fraseologia jurídica, da expressão que se não preste a dois sentidos..."Chama a atenção esta autora para o singelo fato de que"uma coisa se diz bem uma vez na lei e a cada vez que o mesmo conteúdo é repetido, a palavra também o é". Assim sendo, em havendo um termo especifico e repetidamente utilizado na Constituição Federal de 1988 como é o da igualdade, não se haveria de presumir que o constituinte tenha desejado empregar mais de um termo para expressar a mesma e única idéia."

Mais uma vez, consideramos que a passagem utilizada não serve a fundamentar o raciocínio da autora, haja vista que fundada no mito da perfeição do legislador e da lei, o que o evolver da história há muito já incumbiu-se de derrubar.

O próprio professor Humberto Ávila, nas memoráveis lições que profere no Programa de Pós Graduação Strictu Sensu da UERJ, é exaustivo nos exemplos em que "muitas vezes há palavras demais (distintas) para designar a mesma coisa e, noutros casos, há coisas demais (distintas) que são designadas pelas mesmas palavras [22]". E a Constituição Federal de 1988 não está infensa a esta crítica.

Aliás, no que tange ao esforço de Carmem Lúcia Antunes Rocha em separar a igualdade da impessoalidade, e com todo respeito aos auspiciosos conhecimentos da Autora, parece-nos que a leitura de seu texto [23] com este desiderato não resiste a uma crítica analítica mais rígida. Confira-se as seguintes passagens:

"...é de se considerar que, conquanto a impessoalidade seja princípio muito próximo ao da igualdade, e que com ele atina, desenvolvendo-se o se conteúdo exatamente para garantir-lhe a realização, dispõe de conteúdo e finalidade diferentes do que pelo princípio da igualdade se expressa.

(...)

A igualdade jurídica domina o conteúdo da legalidade justa e é o princípio que a expressa que se põe na base do Estado Democrático.

Dele emanam outros princípios que lhe circundam e garantem a sua concretização. Dentre estes põe-se o da impessoalidade administrativa, que, conquanto dotado de conteúdo próprio, como antes mencionado, nesse se embase e com ele se concilia".

(...)

Vê-se, pois, que ambos são princípios de observância obrigatória da Administração Pública, mas o da impessoalidade o é em caráter exclusivo, vale dizer, não desborda da esfera estatal, tendo aí o seu espaço de incidência.

Na verdade, estes dois princípios recobrem realidades diferentes, sendo o conteúdo da igualdade jurídica mais amplo e dotado de primariedade que se desdobra, como afirmado acima, dentre outros, no princípio da impessoalidade administrativa.

Como se percebe, a Autora não consegue empreender uma distinção minimamente nítida entre os dois princípios. No primeiro parágrafo colacionado aduz que o conteúdo da impessoalidade é desenvolvido exatamente para garantir a realização da igualdade para, contraditoriamente, dizer em seguida que a impessoalidade tem conteúdo e finalidade diferentes da igualdade (a verdade é que o parágrafo, ao nosso ver, não é inteligível).

Nos dois parágrafos seguintes, assevera a autora que da igualdade emanam outros princípios jurídicos, que lhe circundam e garantem a sua concretização, dentre os quais está a impessoalidade.

E nos dois últimos parágrafos colacionados, enfim, a autora deixa entrever que, ao contrário de distinto, o princípio da impessoalidade corresponde a uma especificação, desdobramento ou faceta do princípio da igualdade. Traduzindo suas palavras para o campo das figuras geométricas, resta claro que o princípio da impessoalidade, pelo que se lê, corresponderia a um círculo menor que estaria dentro de um círculo maior, que representaria a igualdade. Como desdobramento ou especificação da igualdade, não haveria para a impessoalidade, campo de incidência autônomo, onde não pudesse chegar a igualdade.

Além destas passagens, a autora baseia ainda sua distinção, no que é felicitada por Ana Paula Oliveira Ávila [24], na distinção entre um dever e um direito. Assim, enquanto a igualdade seria um direito do indivíduo, a impessoalidade seria o dever a ele correlato, o qual incumbe à Administração. Ora, a mais comezinha lição de direito prescreve que a todo direito, para usar a expressão de Kelsen, corresponde um dever que lhe é reflexivo. Logo, dizer que o dever da Administração, correlato ao direito do indivíduo de ser tratado com igualdade, é o dever de impessoalidade ou o dever de tratar com igualdade é, ao nosso ver, mais uma vez, mera troca de palavras.

Atente-se, ainda, para o fato de que a imparcialidade, pretenso conteúdo autônomo que se procura dar à impessoalidade, tem suas origens clássicas na isonomia, o que de certo modo já justificaria a fundamentação da impessoalidade no tratamento igualitário que deve ser dispensado pela Administração Pública aos administrados, conforme leciona Diogo de Figueiredo Moreira Neto. [25]

Enfim, ao nosso ver, a conceituação da impessoalidade como imparcialidade, embora tenha grande importância, principalmente no que tange à visualização mais clara dos deveres dele advindos, não tem o condão de desvinculá-la nem de torná-la autônoma em relação à igualdade. Permanece o princípio como um desdobramento do princípio da igualdade e como uma ponte que liga os deveres de imparcialidade aos sobreprincípios que estruturam o ordenamento jurídico pátrio, reduzindo o esforço argumentativo do operador do direito na tarefa de fundamentá-los e, além disso, oferecendo um fundamento constitucional mais próximo para esses deveres, o que certamente pode contribuir para sua efetividade.

Prova cabal disso é a consideração, praticamente unânime por parte da doutrina mais abalizada, de que o princípio da impessoalidade não se restringe somente à Administração Pública e sequer precisaria estar escrito. Ora, acaso este princípio não estivesse escrito, quem discordaria que os deveres de imparcialidade [26] encontram guarida segura no princípio da igualdade?

Mais uma prova disso se obtém a partir de uma análise dos exemplos utilizados por Ana Paula Ávila para demonstrar os deveres de imparcialidade. Todos eles, sem exceção, podem ser reconduzidos ao princípio da igualdade, distinguindo-se apenas no que tange ao esforço argumentativo do intérprete para fazê-lo.

Assim, por exemplo, quando se impede ao Chefe do Executivo de usar marcas pessoais nas campanhas publicitárias da Administração, o que se visa imediatamente, como salta aos olhos, é a garantia da impessoalidade. No entanto, a analisada à luz da disputa eleitoral, a mesma conduta (e isso é importante frisar: não se está analisando outra coisa, mas o mesmo caso sob outro prisma) visa a impedir que o Chefe do Executivo ou quem ele apóie concorra em condição privilegiada em relação aos demais candidatos. Assim, se o dinheiro público não banca a campanha de todos, não pode bancar a de ninguém, em decorrência do dever de tratamento igualitário perante a Administração.

Os próprios impedimentos e suspeições no procedimento administrativo ou mesmo no Código de Processo Civil visam a que o julgamento não leve em conta condições pessoais dos envolvidos, em razão de circunstâncias alheias aos fins legais (decorrência da impessoalidade). Em última análise, no entanto, visam a que todos tenham igualdade de tratamento (não podendo, por exemplo, uma situação particular de inimizade com a pessoa que desempenha a função pública de Administrador ou Juiz refletir no julgamento da demanda).

Em reforço ao que já foi dito, portanto, acreditamos que não há lugar onde chegue o princípio da impessoalidade que não chega o princípio maior da igualdade. A função primordial da impessoalidade seria a de servir de ponte entre a igualdade e os deveres de imparcialidade, o que não é pouco, na medida em que serve de fundamento mais imediato a estes deveres, reduzindo o esforço argumentativo do operador jurídico e aumentando a força da justificação (pois um fundamento mais próximo é sempre melhor que um fundamento mais remoto, até porque a argumentação é sempre muito rica e admite sempre numerosas possibilidades).

Além disso, e aqui parece estar a principal (não obstante menos reconhecida) função, o estado ideal de coisas a ser promovido pelo princípio da impessoalidade permite a vedação de determinadas condutas (que atentam contra este estado ideal de coisas visado pela norma) independentemente de haver lei específica (eficácia negativa). Ademais, o princípio, mediante a análise do estado ideal de coisas que visa promover, permite a formulação da regra nos casos em que não haja. Ora, para os casos em que o dever de imparcialidade está expresso na lei, a própria institucionalização da regra já é razão suficiente para seu cumprimento. Por outro lado, nos casos em que determinado comportamento, não obstante viole a impessoalidade, não esteja legalmente proibido, a eficácia expansiva e integradora do princípio, que se manuseia tendo-se em conta o estado ideal de coisas que ele visa promover, permite a formulação da regra a impedir o comportamento potencialmente violador.

O exemplo clássico é o do nepotismo, o mais comum entre os vícios de pessoalidade da administração pública (que também viola o dever de tratamento igualitário da administração, na medida em que o favorecimento de um parente pretere os demais administrados que poderiam ter acesso aos cargos "dados" em comissão). Vejamos um caso recente:

A Ministra do Meio Ambiente Marina Silva ( eleita senadora pelo PT) foi acusada de nepotismo pelo fato de seu marido ocupar cargo comissionado (o de maior salário dentro dos quadros comissionados do Senado) no gabinete de seu suplente, o Senador Sibá Machado (PT-AC). Questionada sobre o fato, a Senadora limitou-se a afirmar que jamais praticou nepotismo, nunca tendo empregado parente em seu gabinete, de vereadora a senadora, dizendo que quem deveria falar sobre a contratação era seu suplente, na medida em que foi ele quem formalizou o convite ao seu marido.

Para defender a colega, o Senador Eduardo Suplicy, crítico ferrenho do nepotismo, ocupou a tribuna do Senado Federal para afirmar que: ''''Ora, o senador Sibá Machado tem inteira liberdade de contratar os seus serviços e mesmo se tivesse sido aprovada uma lei proibindo o nepotismo, ainda neste caso, essa questão não estaria inserida porque ele (o marido da Senadora Petista da qual Siba é suplente) não é seu parente''''.

Do exemplo colacionado percebe-se claramente que o nepotismo que se pretende combater não é o vício de pessoalidade que o princípio da impessoalidade visa a coibir, mas tão somente parte dele. Das palavras do senador vê-se uma clara abertura à violação oblíqua do princípio, que se dá pelos famosos casos apelidados pela imprensa como os de "barriga de aluguel". É o desconhecimento (ou a vista grossa que se faz) da eficácia expansiva e integradora dos princípios que permite este funesto tipo de violação oblíqua. Ora, se o estado ideal de coisas pretendido pela norma é que a Administração a todos trate com imparcialidade, ou que todos recebam da Administração tratamento igualitário, é óbvio que o impedimento da contratação de parentes não se restringe apenas e tão somente ao gabinete do Administrador, mas também ao de seus correligionários.

E por que o Judiciário se abstém de reprimir esta conduta em casos análogos que lhe são submetidos, alegando sempre, para justificar sua complacência, que "os cargos de confiança são de livre nomeação"? Simplesmente porque seus membros valem-se dos mesmo expedientes para burlar a lei (seria muita ingenuidade tributar o fato à falta de conhecimento da eficácia dos princípios). Assim, premidos de contratarem seus parentes em seus gabinetes, muitos desembargadores, em vários Estados deste País, contratam os parentes dos desembargadores dos gabinetes vizinhos, em troca dos mesmos favores. É este o problema cultural enraizado ao qual no início deste trabalho nos referimos: no fundo, a maioria daqueles que ocupam funções estatais não quer deixar de fazer do público seu espaço privado, valendo-se do que é de todos para o privilégio e benefício dos seus.

A situação chega ao ponto de, na hipótese de uma lei dizer expressamente que "é vedado contratar tios e sobrinhos", muitos sentir-se-ão implicitamente autorizados a contratarem suas tias e sobrinhas. E isso não é conseqüência do desconhecimento das modalidades de eficácia dos princípios, mas sim fruta da vontade de perpetuar uma prática que sempre ocorreu.

Contra isso, a divulgação das modalidades de eficácia dos princípios é muito importante, mas muito mais útil é o papel da imprensa em denunciar e o de cada membro da sociedade, ao levar essas práticas em conta no momento de escolher seus representantes.

Apenas para não passar batido sobre a questão, cumpre dizer que alguns autores identificam ainda, como deveres fundados no princípio da impessoalidade, os deveres de neutralidade e objetividade. Não obstante a importância do que estes autores pretendem demonstrar, há que se ter em mente que a neutralidade, hoje em dia, nada mais é que a própria imparcialidade; e a objetividade, só pode ser a objetividade possível. [27]


6 - Conclusões:

Ao cabo desta breve pesquisa, pode-se concluir que, não obstante os hercúleos esforços de nossa doutrina mais recente em se distinguir a impessoalidade da igualdade, aquela aparece muito mais como um corolário ou especificação desta. Numa representação geométrica, a impessoalidade seria um círculo menor inserta dentro de um círculo maior que corresponderia à igualdade; não havendo, portanto, âmbito de incidência autônomo da impessoalidade. Em outras palavras, as condutas identificadas como ofensivas à impessoalidade também são ofensivas, num olhar sob outro prisma, à igualdade.

Tal fato não reduz a importância do princípio da impessoalidade, que funciona como uma ponte que liga a igualdade aos deveres de imparcialidade, reduzindo o esforço argumentativo do intérprete em fundamentá-los. Ademais, este princípio oferece uma fundamentação mais próxima aos deveres de imparcialidade, o que significa dizer uma fundamentação mais forte.

Os vícios de pessoalidade que caracterizam a Administração Pública brasileira decorrem basicamente de dois problemas: um de ordem jurídica, caracterizado pelo desconhecimento das modalidades de eficácia dos princípios; e outro, mais grave e difícil de ser sanado, decorrente dos ciclos do atraso que caracterizam nossa história, marcada por uma privatização do público desde a época colonial.

Embora o princípio da impessoalidade, inserido no artigo 37, caput, da Constituição Federal, tenha eficácia para impedir os casos de nepotismo e de barriga de aluguel que caracterizam o dia a dia da administração pública nacional, esta modalidade de eficácia lhe é negada justamente para que se possa perpetuar uma prática que interessa a grande maioria daqueles que desempenham funções de estado, tanto no âmbito da administração pública stricto sensu quanto nos demais poderes: a de valerem-se do que é de todos para beneficiar ou privilegiar os seus, mantendo uma estrutura de poder custeada pela máquina estatal e, em última análise, por todos os membros da sociedade (justamente os que são prejudicados por esta prática viciada).

Se à comunidade jurídica cabe zelar pela efetiva aplicação do princípio, em todas as suas modalidades de eficácia possíveis, o que permitiria, no caso, valer-se do princípio para proibir práticas ofensivas ao estado ideal de coisas que ele visa promover independentemente de haver lei específica, tarefa maior incumbe à sociedade como um todo: a de protestar contra os casos de flagrante violação, direta ou oblíqua, denunciando e expondo os violadores, e não admitindo mais como representantes aqueles que assim se valem. Só a rejeição nas urnas é capaz de solucionar de vez o problema cultural mais grave que caracteriza a questão.


7 - Referências:

ANTUNES ROCHA, Carmem Lúcia. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.

AVILA, Ana Paula Oliveira. O Princípio da Impessoalidade da Administração Pública. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

AVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

______. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1999.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2001.

FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de Direito Administrativo. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.Curso de Direito Administrativo, 10ªed. Rio de Janeiro: Forense, 1992.

RIBEIRO, Mari Teresa de Melo. O princípio da imparcialidade da administração pública. Coimbra: Almedina, 1996.

SUNDFELD, Carlos Ari. Princípio da Impessoalidade e Abuso do Poder de Legislar. Revista Trimestral de Direito Público n. 5. p. 152-178, 1994.

ZAGO, Lívia Maria Armentano Koenigstein. O princípio da impessoalidade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.


Notas

01 Como se o Estado não tivesse personalidade jurídica própria e sua atividade administrativa não fosse contínua, mas se tratasse da Administração "daquele chefe" ou "daquele partido político" momentaneamente no poder. Em outras palavras, como se ainda estivéssemos num governo de pessoas, e não de leis.

02 Art. 37 A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (grifos nossos).

03 Não só porque o princípio é corolário direto dos sobreprincípios que fundam a República Federativa do Brasil, mas também porque todos os órgão do poder exercem função administrativa, e o fazem em nome do público, com verbas públicas, e para o público, devendo, portanto, fazê-lo em estrita obediência aos princípios constitucionais atinentes à administração pública. Note-se aqui, que a expressão "administração pública" portanto, não se cinge aos atos administrativos praticados pelo Poder Executivo, a quem, por excelência, é atribuída a função administrativa preponderante, mas a toda função administrativa desempenhada pelo Estado, o que inclui as atividades praticadas também no âmbito dos Poderes Legislativo e Judiciário (cuja administração também é custeada pela sociedade e deve pautar-se pelas normas constitucionais).

04 O que é mais um argumento em favor da desnecessidade de sua previsão expressa.

05 Para justificar esta distinção o que se vê, na maioria das vezes, é nada mais que uma redução da amplitude do significado da igualdade. Em outras palavras, para dar conteúdo autônomo à impessoalidade os autores, por via oblíqua e talvez sem se dar conta, acabam, na verdade, é reduzindo o conteúdo da igualdade o que, ao nosso ver, não implica qualquer tipo de avanço na matéria (mas apenas uma troca de palavras).

06 In ANTUNES ROCHA, Carmem Lúcia. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.

07 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 89/90. Afirma o saudoso mestre que "O princípio da impessoalidade, referido na Constituição de 1988 (aret. 37, caput), nada mais é que o clássico principio da finalidade, o qual impõe ao administrador público que só pratique o ato para seu fim legal. E o fim legal é unicamente aquele que a norma de Direito indica expressa ou virtualmente como objetivo do ato, de forma impessoal".

08 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.Curso de Direito Administrativo, 10ªed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 68/69. Segundo o autor "Pode-se conceituar o princípio da finalidade como a orientação obrigatória da atividade administrativa ao interesse público especificamente explícito ou implícito na lei.

Com efeito, ao estabelecer, o legislador, qual a finalidade da ação do agente administrativo, proíbe-o de considerar quaisquer inclinações ou interesses pessoais. Essa é a característica, destacada pela Constituição com a designação, que preferiu, de princípio da impessoalidade (art. 37, caput), que já levara Cirne Lima a definir a boa administração como a que prima pela "ausência de subjetividade"."

09 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 71. Assevera a autora que validação de atos praticados, por exemplo, por funcionário cuja investidura no órgão da administração se deu de forma irregular, é decorrência da aplicação do princípio da impessoalidade. Nas suas palavras: "Outra aplicação desse princípio encontra-se em matéria de exercício de fato, quando se reconhece validade aos atos praticados por funcionário irregularmente investido no cargo ou função, sob fundamento de que os atos são do órgão e não do agente público". Vale lembrar que boa parte da doutrina justifica a validação de atos praticados nestas condições, diferentemente de Di PIETRO, no princípio da proteção da confiança ou ainda na boa fé objetiva.

10BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 70. Leciona o autor que o princípio da impessoalidade "não é senão que o próprio princípio da igualdade ou isonomia. Nele, se traduz a idéia de que o Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas".Além disso, como ‘todos são iguais perante a lei’, a fortiori teriam de sê-lo perante a Administração".

11 Dentre os quais Edmir Netto de Araújo, Wolgran Junqueira Ferreira e Diógenes Gasparini, conforme elenca, em amplo trabalho sobre o tema, ZAGO, Lívia Maria Armentano Koenigstein. O princípio da impessoalidade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 300 e ss.

12 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Os princípios da moralidade pública e da impessoalidade da Administração. Boletim de Direito Administrativo, janeiro de 1992, p. 01-12. Pontifica o autor que "A Administração Pública tem que ser impessoal, sem favorecimentos a quem quer que seja, aplicando as leis do país, por igual, a todos os cidadãos, residentes ou pessoas que aqui transitam, visto que apenas nas monarquias absolutas ou nas ditaduras os ‘amigos do rei’ são favorecidos e os ‘inimidos’ perseguidos.

" À evidência, não se pode falar em impessoalidade sem falar em moralidade, eis que é esta que dá a coloração maior daquela, tornando o administrador um justo servidor público na medida em que não cria privilégios, nem oferta tratamentos desisonômicos e preferenciais". Cabe observar, ainda, que também o Ministério Público Federal associa a noção de impessoalidade a de moralidade, como restou claro ao aduzir, recentemente, em pedido protocolado junto ao Tribunal de Contas da União requerendo a apuração de práticas de nepotismo no Congresso Nacional, que tal conduta, classicamente tida como vício da impessoalidade, ofende também o princípio da moralidade administrativa.

13FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de Direito Administrativo. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

14 ANTUNES ROCHA, Carmem Lúcia. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.

15AVILA, Ana Paula Oliveira. O Princípio da Impessoalidade da Administração Pública. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

16 Relacionado ao tema, e denunciando a descrença no Judiciário, por contradição performática do órgão, para fazer valer os princípios constitucionais que lhe incumbe aplicar, publicamos, recentemente, em jornal de circulação no Espírito Santo, o artigo O Judiciário e o Déficit de Legitimidade Democrática do Parlamento ( in Jornal do Caparaó).

17 Op. cit.

18 Op.cit.

19 Op. cit.

20 Op. cit. p. 22 e 37.

21 Op. cit. p. 40.

22 Anotações de aula da disciplina Segurança dos Direitos Fundamentais, ministrada pelo professor Humberto Ávila na UERJ.

23 Op. cit. p.151 e ss.

24 Op. cit. p. 37, onde a autora atribui a distinção de Carmem Lúcia a uma "aguda percepção".

25 In Ávila, Ana Paula, op. cit. prefácio.

26 A imparcialidade, ao nosso ver, é condição sine qua non para que se tomem decisões justas (e, nesse sentido específico, aparece como um dever instrumental). Para que a atividade estatal seja pautada por justiça, a imparcialidade é o primeiro requisito necessário, mas não é suficiente. Conforme leciona Antônio Cavalcanti Maia, se a imparcialidade não conduz inequivocamente à justiça (mas é condição para que ela possa ser alcançada) a parcialidade necessariamente conduz à injustiça.

27 A percepção de que o sujeito do conhecimento se relaciona com o objeto do conhecimento ao conhecê-lo, não estando imune a ele, fez romper, nas ciências, com o mito da neutralidade, na medida em que esta interação sujeito objeto influencia na construção do conhecimento. Em outras palavras, o sujeito do conhecimento está no mundo (e não fora dele), e leva toda a sua pré-compreensão ao relacionar-se com o objeto a conhecer. Por isso, não pode ser neutro. O máximo a que consegue chegar é ser imparcial, e objetivo, na medida do possível. Nas palavras de José Vicente dos Santos Mendonça "a afirmação de que a neutralidade científica é impossível corresponde à posição majoritária da filosofia da ciência. Mas o predomínio não veio sem luta e não é exercido sem contestação. O debate sobre a objetividade nas ciências sociais é tão antigo quanto os relatos de Tucidides acerca da Guerra do Peloponeso: o historiador ateniense é apontado como precursor da razão científica neutra. Muito se discutiu desde então. Séculos depois, Nietzche concluiria que " a História é a procissão dos vencedores". Entre os extremos, rio de tinta. E a polêmica ainda não acabou. Diz-se que, modernamente, a partir da enunciação do princípio da incerteza de Heisenberg, segundo o qual um elemento subatômico se comporta ora como partícula, ora como onda, dependendo da expectativa de seu observador, mesmo a objetividade das ciências exatas estaria colocada em xeque. Ter-se-ia justificado a impossibilidade da neutralidade nas ciências sociais.(...) De parte todas as complexidades do assunto, prefere-se ficar com a clara e honesta posição enunciada por Luís Roberto Barroso: "A neutralidade, entendida como um distanciamento absoluto da questão a ser apreciada, pressupõe um operador jurídico isento não somente das complexidades da subjetividade pessoal, mas também das influências sociais. Isto é: sem história, sem memória, sem desejos. Uma ficção. O que é possível e desejável é produzir um intérprete consciente de suas circunstâncias: que tenha percepção da sua postura ideológica (auto-crítica) e, na medida do possível, de suas neuroses e frustrações (autoconhecimento)". In Vedação do Retrocesso: o que é e como perder o medo Revista De Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro. Vol. XII. Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003.


Autor


Informações sobre o texto

Síntese de seminário apresentado em novembro de 2004, no curso de mestrado da UERJ, como um dos requisitos para aprovação na disciplina Princípios Gerais de Direito do Estado, ministrada pelo professor Doutor Humberto B. Ávila.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARAL, Jasson Hibner. Breves notas sobre o princípio da impessoalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1064, 31 maio 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8387. Acesso em: 29 mar. 2024.