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Natureza jurídica do direito à sepultura em cemitérios particulares

Natureza jurídica do direito à sepultura em cemitérios particulares

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A doutrina e a jurisprudência, na maior parte das vezes, tratam unicamente do "jus sepulchri" em cemitérios públicos, que não se aplica aos cemitérios particulares.

I) INTRODUÇÃO

A natureza jurídica do jus sepulchri (direito à sepultura), como costuma ocorrer em direito [01], há décadas é objeto de divergências entre os doutrinadores. FERNANDO HENRIQUE MENDES DE ALMEIDA, em estudo pioneiro publicado nos anos 50 [02], enumera nada menos do que vinte e oito teorias a respeito do tema, defendidas por juristas pátrios e estrangeiros, o que, somado à omissão do legislador [03] e ao reduzido número de precedentes jurisprudenciais, contribui para dificultar o estudo do tema:

"Em razão disso, nas legislações municipais, nos estatutos das entidades titulares de cemitérios, nos atos jurídicos celebrados pelos interessados, aparecem os mais variados termos jurídicos (v.g., venda da sepultura, arrendamento, locação, propriedade do sepulcro, etc.), que não refletem a verdadeira natureza do direito formado, servindo apenas para obscurecer ainda mais o tema que, de si, já se apresenta complexo.

Daí a confusão reinante. Fala-se comprei uma sepultura, o arrendamento está vencido, et caetera" [04].

O estudo do jus sepulchri em cemitérios particulares, todavia, ainda apresenta maiores dificuldades, eis que a doutrina e a jurisprudência, na maior parte das vezes, tratam unicamente do direito à sepultura em cemitérios públicos, chegando a conclusões que não se aplicam aos cemitérios privados, noutras não fazem distinção entre uma e outra situação ou, ainda, não apresentam solução satisfatória a respeito da sua qualificação jurídica, o que justifica a elaboração do presente trabalho, que não pretende esgotar o assunto, mas, a exemplo do que afirmou FERNANDO HENRIQUE MENDES DE ALMEIDA [05], contribuir para que não permaneça em aberto "velha dúvida acerca de um instituto de larga prática".


II) SUBMISSÃO DO DIREITO À SEPULTURA AO REGIME JURÍDICO DE DIREITO PRIVADO

Inicialmente, salienta-se que da mesma forma que o estudo da enfiteuse dos terrenos de marinha, bens públicos da União, não se inclui no campo do direito civil [06], a análise da natureza jurídica do direito à sepultura em cemitérios particulares, bens privados, não pertence ao direito administrativo, mas ao direito civil, eis que a prestação de serviço público, por força de permissão administrativa, não afeta a titularidade do domínio [07] do imóvel no qual se encontra a necrópole:

"Por isso, examinando-se os cemitérios do ponto de vista do titular do domínio sobre seu solo, pode-se dizer que os mesmos classificam-se em cemitérios públicos e cemitérios privados. Públicos são todos aqueles que estiverem localizados em imóvel do domínio público, seja ele qual for. Aliter, cemitério privado, é todo aquele situado em imóvel de titularidade privada.

(...)

O fato do cemitério ser um bem que está a serviço público não faz com que todo cemitério seja público" [08] (grifos nossos).

Logo, ainda que existam diversas semelhanças, resultantes do modo e da finalidade do uso dos terrenos, entre o jus sepulchri nos cemitérios públicos e nos cemitérios particulares, o que provavelmente levou JUSTINO ADRIANO FARIAS DA SILVA [09] a reconhecer-lhes, equivocadamente, identidade de natureza jurídica, não são aplicáveis ao tema ora examinado as conclusões da doutrina e da jurisprudência a respeito da natureza jurídica do direito à sepultura em cemitérios municipais (= públicos).


III) CONTEÚDO DO DIREITO À SEPULTURA

O direito à sepultura (jus sepulchri) consiste, basicamente, no direito-de-sepultar [10] e no direito-de-manter-sepultado [11], que é conferido a pessoa física (e seus sucessores) ou jurídica por força de negócio jurídico celebrado com o proprietário de cemitério particular.

Trata-se, conforme decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo no julgamento da Apelação nº 52.591 [12], adotando o entendimento de CLÓVIS BEVILAQUA, de direito de uso [13], com finalidade específica (= inumação das pessoas da família), transmissível "mortis causa".

Diante de tais características, cabe ao operador do direito verificar, nas palavras de JUSTINO ADRIANO FARIAS DA SILVA [14], "que instituto civil poderia abrigar em seu seio o jus sepulchri".

Vale dizer, qual a natureza jurídica do direito à sepultura [15], o que deve ser feito confrontando seus elementos essenciais com as categorias definidas em lei [16], sem atribuir maior relevância à vontade das partes [17] ou ao "nomen juris" utilizado.


IV) NATUREZA JURÍDICA DO JUS SEPULCHRI

JUSTINO ADRIANO FARIAS DA SILVA [18], ao tratar do tema ora examinado, indaga, inicialmente, se o jus sepulchri em cemitérios particulares é direito real ou pessoal, critério útil para a solução do problema, em razão do princípio do numerus clausus dos direitos reais, vigente no direito brasileiro.

Deveras, se, conforme o entendimento dominante, não é possível a constituição de direitos reais que não se encontrem previstos em lei (= Código Civil e legislação extravagante) nem a alteração do conteúdo que a lei lhes atribui, é evidente que, para ser direito real, o jus sepulchri deverá se enquadrar em algum dos tipos de direitos reais regulados legalmente, pois, do contrário, tratar-se-á de direito pessoal.

Do rol dos direitos reais, devem ser excluídos, de início, os direitos reais de garantia (penhor, anticrese e hipoteca) [19], eis que o jus sepulchri não tem por finalidade garantir o adimplemento de dívida [20], vinculando o seu pagamento a determinado bem.

Por idêntica razão, não apresenta o direito à sepultura semelhança com as rendas constituídas sobre imóveis [21], que SILVIO RODRIGUES [22] também inclui entre os direitos reais de garantia, eis que o proprietário do imóvel no qual se encontra localizado o cemitério não perde, completamente, o direito de usar, gozar, fruir e dispor do terreno, o que é revelado pela experiência comum e pela análise dos instrumentos contratuais e estatutos das entidades titulares das necrópoles, diferentemente do que ocorria com o instituto regulado pelos artigos 749 a 754 do Código Civil de 1916, em que o bem imóvel era transferido para o patrimônio do rendeiro ou censuário [23], restando ao beneficiário ou censuísta apenas o direito de exigir o pagamento de renda.

Se o proprietário do imóvel não deixa de ser titular, na sua totalidade, das prerrogativas inerentes ao domínio (jus utendi, fruendi et abutendi), relativamente ao terreno no qual será construído o jazigo, é evidente, ainda, que o jus sepulchri não confere ao seu titular o domínio sobre aquela porção de solo, [24] porquanto a propriedade é o mais pleno dos direitos reais [25].

Não se cogitando de direito de propriedade, nem de direito real de garantia, resta examinar se o direito à sepultura configura alguma das modalidades de direito real de fruição, previstas no Código Civil de 1916 e no de 2002 (servidão, usufruto, uso e habitação, enfiteuse, superfície) ou em lei extravagante (concessão de uso).

O jus sepulchri não configura, a nosso ver, servidão predial, dado que tal espécie de jus in re aliena pressupõe a existência de dois imóveis, o que não ocorre no caso dos jazigos em cemitérios particulares. Do contrário, conforme pondera JUSTINO ADRIANO FARIAS DA SILVA [26], haveria de se reconhecer a propriedade do titular do direito à sepultura sobre a porção do terreno do cemitério, o que já demonstramos não ser correto.

Se, como visto, é da essência do direito à sepultura a sua transmissão por ocasião do falecimento do titular, não se trata, igualmente, de usufruto, uso ou habitação, eis que tais espécies de direitos reais limitados extinguem-se pela morte do usufrutuário, usuário ou habitante (artigo 1410, I c/c 1413 e 1416 do Código Civil), o que tornaria inócua a aquisição do direito [27]. A inviabilidade, a rigor, não decorre da temporariedade do direito em si, como entende JUSTINO ADRIANO FARIAS DA SILVA [28]. Caso fosse admitida no direito pátrio, por exemplo, a instituição de usufrutos sucessivos, em caso de morte do usufrutuário antes de esgotado o prazo de duração, o direito real, apesar de temporário, poderia ser transmitido aos herdeiros do de cujus, inexistindo, em tal hipótese, qualquer incompatibilidade, nesse particular, com o jus sepulchri, até porque a perpetuidade do direito, como se infere da lição de FERNANDO HENRIQUE MENDES DE ALMEIDA [29], ao mencionar a existência de jazigos temporários, não é inerente ao instituto ora examinado.

A enfiteuse, por sua vez, não se apresentava [30], prima facie, incompatível com o jus sepulchri, eis que o titular do domínio útil, como cediço, tem a prerrogativa de usar o bem [31] e o direito positivo expressamente admite a sua transmissão por herança (artigo 681 do CC/16). O caráter perpétuo da enfiteuse, outrossim, também era compatível com o jus sepulchri, apesar de, como salientado acima, não ser tal característica determinante para configurá-lo.

Aliás, considerando que o direito à sepultura não se confunde com as demais modalidades de direitos reais limitados previstos pelo Código Civil de 1916 ou o de 2002 e, como se verá adiante, a concessão de uso criada pelo Decreto-Lei nº 271/67 é transmitida por tempo certo ou indeterminado (direito real resolúvel), residia na enfiteuse a única possibilidade de atribuir-se ao titular do jus sepulchri direito real de caráter perpétuo. Para tanto, contudo, o direito à sepultura haveria de apresentar todos (e não apenas alguns) os elementos essenciais do direito real em questão, sob pena de, não o fazendo, restar afastada a sua caracterização como enfiteuse [32], uma vez que o princípio do numerus clausus impede que se reconheça a existência de "quase-enfiteuse" ou qualquer outra modalidade de direito real sui generis [33], diferente dos estabelecidos por lei. As dificuldades, porém, não são poucas, conforme se demonstrará a seguir.

Para que o jus sepulchri resultasse de enfiteuse, o direito de uso anteriormente cogitado, de início, deveria ter natureza perpétua, pois, do contrário, ainda que se fizessem presentes os demais requisitos legais, não se cogitaria de enfiteuse, mas de locação ou arrendamento [34], conforme dispõe expressamente a parte final do artigo 679 do Código Civil de 1916 [35], que encerrou controvérsia existente antes da sua promulgação [36], originária do direito romano [37].

Logo, não se poderia cogitar de constituição do direito à sepultura por contrato de enfiteuse se o prazo de duração é indeterminado [38], o que é admissível na concessão de uso (DL nº 271/67), na locação e no comodato, como ser verá a seguir, o que é claramente demonstrado por ORLANDO GOMES em parecer a respeito da distinção entre enfiteuse e locação:

"Quando as partes subordinam a eficácia de um contrato de prestações sucessivas a tempo indeterminado, entende-se que não quiseram vincular-se até a expiração de um termo prefixado. Assegurando-se reciprocamente maior liberdade de ação, preservaram a faculdade de, a todo tempo, resolverem o contrato, por iniciativa unilateral. Como não se prenderam por prazo, desligam-se quando apraz a um dos contraentes. A função da cláusula ‘por tempo indeterminado’ sempre foi essa. Jamais significou perpetuidade.

O que pode ser desfeito, a cada momento, não tem duração perpétua, Temporário, portanto, é o contrato destinado a vigorar por tempo indeterminado. O fato de aludir o Cód. Civil, no art. 679, à enfiteuse por tempo limitado, não significa que só se admite como arrendamento a enfiteuse por prazo certo, isto é, sujeita, na sua extinção, a dies certus. Também é temporário o contrato cujo termo é fixado por dies incertus na ou dies incertus quando, como no caso da enfiteuse vitalícia. O que importa, enfim, é a possibilidade da rescisão, tanto mais intensa quanto dependa da vontade unilateral de um dos contraentes.

Ora, a presença da cláusula ‘por tempo indeterminado’ é altamente significativa para a repulsa à hipótese de ter sido constituída uma enfiteuse, porque atenta contra a sua índole e finalidade. Ninguém se investe na condição de foreiro, da qual resultam direitos amplíssimos, quase iguais aos do proprietário, para perdê-la a todo tempo que apraza ao suposto senhorio. Mesmo nos países que admitem tão-somente a enfiteuse temporária, o prazo de vigência do contrato é sempre longo. Do contrário, o aforamento falharia à sua finalidade" [39].

O pagamento do foro, ainda, é requisito essencial, cuja inexistência desfigura o instituto, de tal sorte que, em caso de outorga do jus sepulchri a título gratuito, por liberalidade do proprietário do cemitério particular, não haveria que se cogitar de enfiteuse, mas de comodato. Todavia, não basta que haja o pagamento de determinada quantia em dinheiro para que se tratasse de enfiteuse, eis que o Código Civil (artigo 678 do CC/16) estabelecia que o foro ou pensão deveria ser "anual, certo e invariável". Logo, se a periodicidade do pagamento fosse inferior ou superior a um ano, não tivesse valor determinado ou variasse [40] ao longo do tempo, haveria locação (ou outra espécie de contrato, conforme o caso) e não enfiteuse. Em caso de venda ou dação em pagamento do jus sepulchri, o que a rigor somente deveria ser admitido antes da inumação de cadáver no terreno ou após a sua transferência, observadas as posturas municipais, seria devido, ainda, o pagamento de laudêmio, que reforça o caráter oneroso da avença, o qual na falta de estipulação expressa, seria de 2,5% (dois e meio por cento) do valor da alienação (artigo 686 do CC/16).

O direito de resgate (aquisição da propriedade pelo enfiteuta), por ser inerente à enfiteuse, inclusive àquelas constituídas antes do Código Civil de 1916 (artigo 693 c/ redação da Lei nº 5.827/72) igualmente haveria de aplicar-se ao direito à sepultura, admitindo-se, todavia, que as partes alterassem o prazo e o valor da indenização [41].

A constituição do jus sepulchri, como modalidade de enfiteuse, dependeria, ainda, da inscrição do respectivo título no Registro de Imóveis (artigo 676 do CC/16), o qual, a partir de determinado valor [42], deveria se revestir de forma pública (art. 134, II, do CC/16).

Sob a égide do Código Civil de 1916, a doutrina [43], ao escrever sobre o tema, afirmava sem discrepância que o jus sepulchri não configurava modalidade de direito de superfície, sob o argumento de que tal direito real não encontrava previsão no direito positivo brasileiro.

Com a promulgação do Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406/2002), todavia, há que se reexaminar tal questão, eis que, além de disciplinar o direito de superfície (artigos 1.369 a 1.377), o diploma legal, como visto, eliminou a enfiteuse do rol dos direitos reais [44], reduzindo, ainda mais, a possibilidade de qualificação do direito à sepultura como direito real.

O direito de superfície, tanto no direito romano [45] como nas legislações estrangeiras que o adotaram [46], representa exceção ao princípio da acessão (artigo 1.248, V, do Código Civil), porquanto permite que a propriedade da construção ou plantação seja destacada da propriedade do solo [47], em caráter transitório ou permanente, tendo sido incorporado pelo Código Civil vigente apenas como forma de constituição de propriedade por tempo determinado (artigo 1.369) [48], circunstância que pode dificultar a utilização do instituto para a constituição do jus sepulchri.

Com efeito, se por um lado seria conveniente atribuir-se ao titular do jus sepulchri, através do direito de superfície, a propriedade do jazigo [49] e as prerrogativas que lhe são inerentes, dentre as quais o direito de uso e a possibilidade de transmissão mortis causa (artigo 1.372 do Código Civil), o caráter resolúvel do direito, constituído inexoravelmente por prazo determinado [50], implicaria na transmissão da propriedade ao proprietário do cemitério particular com o advento do termo final (artigo 1.375 do Código Civil) [51], não restando ao superficiário sequer pretensão ao recebimento de indenização, salvo estipulação em contrário. Tal inconveniente, todavia, pode ser contornado mediante a constituição do direito de superfície por prazo extremamente longo (v.g., 100, 200 anos ou mais), o que não é vedado pelo direito positivo [52], à semelhança do que ocorre com a locação (artigo 3º da Lei de Locações), resultando, do ponto de vista prático, na proteção do jus sepulchri por diversas gerações, como se de direito perpétuo se tratasse.

Visto que o prazo de duração do direito de superfície não é obstáculo à configuração do direito à sepultura, resta verificar se há compatibilidade com os demais caracteres do instituto, ressaltando-se, desde já, que a necessidade de registro imobiliário para constituição do direito (artigo 1.227 do Código Civil) e da forma pública do respectivo instrumento (artigo 1.369 do Código Civil), na medida em que aplicáveis a todos os direitos reais, não influem, igualmente, na resposta a tal indagação.

Inicialmente, salienta-se que a utilização do subsolo para fins de construção de jazigo não exclui a possibilidade de utilização do direito de superfície, eis que o § único do artigo 1.369 do Código Civil vigente, em sua parte final, expressamente a autoriza "se for inerente ao objeto da concessão", o que ocorre, por exemplo, nos cemitérios parques.

A constituição do direito de superfície a título gratuito ou oneroso (artigo 1.370 do Código Civil), por sua vez, é indiferente para fins de caracterização do jus sepulchri, eis que, como cediço, nada obsta que o titular da propriedade permita a inumação de cadáver em parcela do solo de cemitério particular, por mera liberalidade.

É irrelevante, também, a possibilidade de transmissão do direito de superfície por ato inter vivos, salvo se no local já houver sido realizada a inumação de restos mortais, hipótese em que se poderia cogitar de desvirtuamento da finalidade da concessão, modalidade de extinção da superfície (artigo 1.374 do Código Civil), inovação salutar que serve para inviabilizar, inclusive, a aquisição do direito à sepultura com finalidade especulativa [53].

Outrossim, o direito de preferência do proprietário ou do superficiário em caso de alienação do direito de superfície ou do imóvel, previsto no artigo 1.373 do Código Civil, tende a ter pouca ou nenhuma relevância prática, em se tratando do direito à sepultura, eis que, em primeiro lugar, o proprietário não terá, de regra, interesse da aquisição da propriedade resolúvel do superficiário, especialmente em caso de pagamento parcelado do preço por diversos anos, como pode ocorrer. O superficiário, por sua vez, dificilmente terá recursos para adquirir, na integralidade, o bem imóvel no qual se encontra localizado o cemitério particular, devendo ser lembrado, nesse particular, que a divisão do imóvel em lotes para fins de construção de jazigos, ainda que seguida da outorga do direito de superfície, não tem o condão, s.m.j., de afetar sua unidade jurídica, à míngua de desmembramento da matrícula [54].

A respeito do direito de superfície cabe perguntar, por derradeiro, se o inadimplemento do superficiário, em caso de pagamento parcelado do preço [55], implica ou não na rescisão do negócio jurídico, eis que é omisso o texto do Código Civil, indagação de particular relevância no caso do jus sepulchri.

PAULO ROBERTO BENASSE [56], invocando o direito comparado e a redação original do Projeto do Código Civil, defende a impossibilidade da extinção do direito de superfície em tal hipótese, ressalvando para o proprietário a cobrança ou execução das parcelas em atraso, entendimento que parece encontrar apoio na lição de MOREIRA ALVES [57], o qual afirma que no direito romano "o direito de superfície se extinguia nos mesmos casos em que a enfiteuse, exceção feita à decadência [58], porquanto o superficiário não tinha as obrigações que, se não cumpridas pelo enfiteuta, acarretavam a extinção da enfiteuse por decadência".

Tal interpretação, contudo, decorre de leitura apressada da lição do preclaro jurista, que, em outra passagem da obra, ressalta que "não era essencial, para a existência do direito de superfície, o pagamento de uma pensão anual (solarium) ao proprietário", o qual, não obstante, poderia ser "expressamente convencionado pelo proprietário do solo e pelo superficiário", assemelhando a superfície à enfiteuse, razão pela qual, na hipótese de inadimplemento, poder-se-ia cogitar da extinção da superfície pela decadência, em caráter excepcional, conforme admite MELHIM NAMEM CHALHUB:

"O proprietário do terreno pode recuperá-lo antes do termo do contrato na hipótese de descumprimento de obrigações por parte do superficiário, tais como, a falta de pagamento do cânon ou a diversa destinação dada ao terreno" [59].

Ainda na seara dos direitos reais, resta examinar, por derradeiro, a concessão de uso, instituída pelo artigo 7º do Decreto-Lei nº 271/67, ainda em vigor [60], nos seguintes termos:

"Art. 7º. É instituída a concessão de uso de terrenos públicos ou particulares, remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, como direito real resolúvel, para fins específicos de urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, ou outra utilização de interesse social.

§ 1º A concessão de uso poderá ser contratada, por instrumento público ou particular, ou por simples termo administrativo, e será inscrita e cancelada em livro especial.

§ 2º Desde a inscrição da concessão de uso, o concessionário fruirá plenamente do terreno para os fins estabelecidos no contrato e responderá por todos os encargos civis, administrativos e tributários que venham a incidir sobre o imóvel e suas rendas.

§3º Resolve-se a concessão antes de seu termo, desde que o concessionário dê ao imóvel destinação diversa da estabelecida no contrato ou termo, ou descumpra cláusula resolutória do ajuste, perdendo, nesta caso, as benfeitorias de qualquer natureza.

§ 4º A concessão de uso, salvo disposição contratual em contrário, transfere-se por ato inter vivos, ou por sucessão legítima ou testamentária, como os demais direitos reais sobre coisas alheias, registrando-se a transferência."

JUSTINO ADRIANO FARIAS DA SILVA [61] rejeita a sua aplicação aos cemitérios particulares, sob o argumento de que não serviria "para abrigar as concessões feitas em caráter perpétuo", argumento que, como visto, não pode ser aceito, eis que não há vedação expressa e a prática registra a existência de concessão do jus sepulchri em caráter temporário.

Anteriormente, ao tratar do assunto em face dos cemitérios públicos [62], o autor, após reconhecer que a figura da concessão de uso permanece obscura, igualmente descarta a sua aplicação ao direto à sepultura, aduzindo, em síntese, que na concessão de uso ocorreria a alienação do solo e da respectiva coluna de ar, o que seria incompatível com bens públicos de uso especial. Ora, tal argumento, caso fosse correto, não representaria óbice à utilização da concessão de uso em cemitérios particulares, nos quais inexistente restrição à alienação, o que não foi cogitado pelo monografista. O erro do raciocínio, todavia, resulta da premissa de que a concessão de uso implica na alienação do solo, o que não encontra apoio no texto legal, o qual, ao revés, expressamente qualifica-a como direito real sobre coisa alheia (§ 4º) [63], indício de que não há alienação. Caso fosse correta a interpretação acima referida, a posição jurídica do concessionário seria semelhante àquela do superficiário, que não é titular de jus in re aliena, mas de propriedade resolúvel, por força da suspensão do princípio da acessão.

Logo, não há obstáculo à constituição do jus sepulchri pela concessão de uso regulada pelo DL nº 271/67, eis que o direito real em questão possui as características essenciais para a configuração do direito à sepultura (direito de uso de terreno e possibilidade de transmissão mortis causa), sendo irrelevantes as demais (onerosidade/gratuidade, prazo de duração, etc.) para a qualificação do negócio jurídico.

Não se cogitando de direito real, o jus sepulchri poderá resultar de locação ou comodato, negócios jurídicos através dos quais se outorga o direito de uso de bem, no caso de natureza imóvel, e nos quais se admite a transmissão do direito aos herdeiros em caso de falecimento do titular [64], residindo a distinção entre uma e outra figura na natureza no caráter oneroso ou gratuito da avença.


IV) DISTINÇÃO ENTRE OS DIFERENTES MODOS DE CONSTITUIÇÃO DO JUS SEPULCHRI (ENFITEUSE, SUPERFÍCIE, CONCESSÃO DE USO, LOCAÇÃO OU COMODATO)

Uma vez demonstrado que o direito à sepultura pode decorrer de diversas modalidades de negócios jurídicos, que preenchem seus requisitos essenciais, a constatação de tratar-se de enfiteuse, concessão de uso, locação ou comodato, em cada caso concreto, há de ocorrer à vista de seus caracteres acessórios, que servem para apartar uma espécie da outra.

A natureza onerosa ou gratuita do acordo de vontades, por exemplo, serve para separar, de um lado, a enfiteuse, a concessão de uso e a locação e, de outro, a concessão de uso e o comodato. O prazo de duração do direito, por sua vez, destaca a enfiteuse da concessão de uso, da locação e do comodato, eis que a enfiteuse é perpétua e os outros não. Outrossim, a natureza real ou pessoal do direito, revelada expressa ou tacitamente pelo instrumento contratual ou pela falta de inscrição no registro legalmente exigido, também serve para distinguir a enfiteuse e a concessão de uso (direitos reais) da locação e do comodato (direitos pessoais).

Se, todavia, ainda persistirem dúvidas a respeito da qualificação da avença após a aplicação de tais critérios, o que se admite apenas a título de argumentação, restará ao operador do direito interpretar a vontade das partes contratantes, com fundamento na regra do artigo 112 do Código Civil, para descobrir qual o negócio jurídico celebrado.


VII) CONCLUSÃO

Ante todo o exposto, pode-se concluir que o jus sepulchri, o qual consiste, basicamente, no direito de sepultar e de manter sepultados restos mortais, em se tratando de cemitérios particulares, pode resultar de enfiteuse ou superfície (conforme seja anterior ou posterior ao Código Civil vigente o negócio jurídico que lhe deu origem), concessão de uso (DL 271/67), locação ou comodato, eis que neles se encontra o conteúdo essencial do direito à sepultura (uso de bem imóvel e possibilidade de transmissão mortis causa, que se distinguem quanto à onerosidade, ao prazo de duração e à natureza real ou pessoal do direito, o que deverá ser verificado pelo intérprete no exame de cada caso concreto.


NOTAS

01 "É na natureza jurídica dos institutos que as maiores divergências entre os juristas aparecem" (SILVA, Justino Adriano Farias da. Tratado de direito funerário. t. II. São Paulo: Método, 2.000. p. 17).

02 "Concessão Perpétua de Terrenos de Cemitérios" (RT 252/22, 253/17, 254/3, 255/19, 256/12, 257/43 e 258/59).

03 "Não há, no Brasil, como também na Argentina, legislação específica, em nível federal, disciplinando o regime jurídico dos cemitérios, tanto públicos como privados" (SILVA, Justino Adriano Farias da. Tratado de direito funerário. t. II. São Paulo: Método, 2.000. p. 143).

04 Cf. SILVA, Justino Adriano Farias da. Tratado de direito funerário. t. II. São Paulo: Método, 2.000. p. 144.

05 Cf. RT 255/23.

06 Cf. BESSONE, Darcy. Direitos reais.2. ed. São Paulo: Saraiva, 1.996. p. 276.

07 TEMÍSTOCLES CAVALCANTI, citado por BARBOSA LIMA SOBRINHO em parecer publicado na RDA 52/502, é claro a tal respeito: "O direito das irmandades e associações religiosas de manter cemitérios particulares, pressupõe também uma disciplina legal, mas apenas quanto às medidas de polícia, que não atingem os direitos dominiais". Aliás, lembra JUSTINO ADRIANO FARIAS DA SILVA que a secularização dos cemitérios particulares, por força da Constituição de 1891, não implicou em transferência de propriedade para o Poder Público: "Uma coisa é a proibição da existência de cemitérios privados, e outra é a abolição da propriedade sobre esses cemitérios. O que a Constituição de 1891 fez, foi proibir novos sepultamentos nos cemitérios particulares até então existentes. A idéia de confisco não pode ser nem de longe pensada, porque a própria Constituição o proibia expressamente. Assim, os cemitérios particulares deixam de receber novos corpos, mas permaneceram como lugar dos mortos já anteriormente sepultados, permanecendo sob o domínio do seu anterior titular, mas, evidentemente, sob a fiscalização do poder de polícia do Município. Portanto, a secularização não implicou transferência do domínio do particular para o Poder Público sem contraprestação. O Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão datado de 21 de novembro de 1916, ao julgar controvérsia entre a Fábrica da Parochia de Dois Córregos e a Câmara Municipal dessa cidade, assentou que ‘a secularização dos cemiterios não dá direito às Câmaras Municipais de se apossarem dos que estão em poder das parochias, mesmo que já não se façam nelles quaesquer enterramentos’" (Tratado de direito funerário. t. II. São Paulo: Método, 2.000. p. 327).

08 Cf. SILVA, Justino Adriano Farias da. Tratado de direito funerário. t. II. São Paulo: Método, 2.000. pp. 352 e 400.

09 Cf. SILVA, Justino Adriano Farias da. Tratado de direito funerário. t. II. São Paulo: Método, 2.000. p. 142.

10 A terminologia é de JUSTINO ADRIANO FARIAS DA SILVA (Tratado de direito funerário. t. II. São Paulo: Método, 2.000. p. 95). GARBASSO, citado por FERNANDO HENRIQUE MENDES DE ALMEIDA (RT 253/22), utiliza expressão semelhante (direito de inumar e vir a ser inumado).

11 Tendo em vista que, consoante afirma o autor, após a morte do ser humano o direito-de-ser-sepultado transmuda-se em direito-de-sepultar, posto que transmitido aos familiares do de cujus, entendemos, por idêntica razão (= morto não tem direitos), que depois da inumação não é correto falar-se em direito-de-permanecer-sepultado, mas em direito-de-manter-sepultado, expressão utilizada no texto.

12 Cf. RT 192/231.

13 O direito de uso no jus sepulchri, todavia, não se confunde com o direito real de uso, conforme entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo no julgamento da Apelação nº 42.857 (RT 323/461), o que será demonstrado a seguir. CLÓVIS, aliás, utiliza a expressão "aspecto do uso", provavelmente para ressaltar que não se trata do jus in re aliena previsto nos artigos 742 a 745 do CC/16.

14 Cf. SILVA, Justino Adriano Farias da. Tratado de direito funerário. t. II. São Paulo: Método, 2.000. p. 143.

15 Conforme assevera TITO CARAFFA, citado em parecer por ORLANDO GOMES (RF 152/76), os caracteres externos de dois contratos, freqüentemente, mostram-se semelhantes, o que dificulta, num primeiro momento, a sua diferenciação. Para se ter uma idéia, salienta-se, por exemplo, que a utilização de bem imóvel, por alguém que não seja seu proprietário, pode resultar de enfiteuse, usufruto, uso, habitação, alienação fiduciária, compromisso de compra e venda, locação ou comodato.

16 Cf. GOMES, Orlando. Contratos. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1.998. p. 198.

17 A qualificação do negócio jurídico nada tem a ver com a interpretação da vontade das partes (artigo 112 do CC/2002), conforme demonstrou, de forma clara e irrespondível, o voto proferido pelo Ministro MOREIRA ALVES no Recurso Extraordinário nº 95.230-MS: "Na espécie, não se trata de interpretar o contrato para determinar o sentido e o alcance de suas cláusulas, mas, ao contrário, se trata de confrontar a estrutura do documento em causa com a estrutura do tipo legal – o contrato de sociedade em conta de participação – para verificar-se se aquele apresenta os elementos essenciais deste, ou, em outras palavras, se aquele se enquadra neste tipo legal. Para que isso ocorra, não basta que as partes hajam desejado celebrar um contrato de sociedade em conta de participação, mas é necessário que elas o tenham, efetivamente, celebrado, com a adoção de seus elementos essenciais, e, conseqüentemente, com a observância do tipo descrito na lei" (STF – 2ª Turma – RE nº 95.230-MS – Rel. Min. Moreira Alves – j. 24.11.81 – v.u. – RTJ 108/651). No mesmo sentido, veja-se a lição de ORLANDO GOMES (RF 152/76): "A regra de interpretação dos contratos, condensada no art. 85 do Cód. Civil, é inaplicável quando a intenção das partes se manifesta por forma que contraria a configuração legal da relação jurídica que pretenderam criar".

18 Cf. Tratado de direito funerário. t. II. São Paulo: Método, 2.000. p. 148.

19 Cf. SILVA, Justino Adriano Farias da. Tratado de direito funerário. t. II. São Paulo: Método, 2.000. p. 149.

20 O escopo de garantia encontra-se, ainda, na alienação fiduciária, na qual a propriedade resolúvel de um bem é transmitida para assegurar o pagamento de crédito (MOREIRA ALVES, José Carlos. Da alienação fiduciária em garantia. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1.987. p. 154), igualmente incompatível, portanto, com o direito à sepultura.

21 Cf. SILVA, Justino Adriano Farias da. Tratado de direito funerário. t. II. São Paulo: Método, 2.000. p. 150.

22 Cf. Direito civil – direito das coisas.v. 5. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1.988. p. 316.

23 Cf. BARROS MONTEIRO, Washington de. Curso de direito civil – direito das coisas.v. 3. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 1.994. p. 331.

24 A falta de transcrição, citada por JUSTINO ADRIANO FARIAS DA SILVA (Tratado de direito funerário. t. II. São Paulo: Método, 2.000. p. 151) em desfavor da possibilidade de transferência da propriedade de porções do solo do cemitério, é argumento meramente formal, a exemplo da exigência de instrumento público (artigo 108 do Código Civil), que pode ser afastada na hipótese de o bem ter valor reduzido (inferior a 30 salários mínimos), não sendo determinante, portanto, para demonstrar a incompatibilidade do jus sepulchri com o direito de propriedade, especialmente porque é aplicável, indistintamente, a todos os direitos reais (artigo 1227 do Código Civil) e não apenas à propriedade.

26 A fortiori, não se confunde o jus sepulchri com o direito real do compromissário comprador, que consiste, na lição de ARNOLDO WALD (apud AZEVEDO JR., José Osório de. Compromisso de compra e venda. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1.998. p. 65), no "direito de adquirir a coisa, ou seja, de incluir o imóvel no seu anterior". Se o titular do direito à sepultura, como visto, não chega jamais a adquirir a propriedade de porção do terreno do cemitério, não há como se cogitar, logicamente, que o "jus sepulchri" resulte de negócio jurídico que tem por escopo a transmissão do direito de adquirir a propriedade.

27 Cf. SILVA, Justino Adriano Farias da. Tratado de direito funerário. t. II. São Paulo: Método, 2.000. p. 155.

28 "Sendo de caráter alimentar como se costuma dizer, situação deveras curiosa se configuraria: o titular do direito o teria enquanto vivesse, mas, quando viesse a falecer, extinguir-se-ia o mesmo. Quanto não precisasse, teria o direito; quando precisasse, já não mais teria o direito, tal é a antítese configurada" (SILVA, Justino Adriano Farias da. Tratado de direito funerário. t. II. São Paulo: Método, 2.000.p. 157).

29 Cf. Tratado de direito funerário. t. II. São Paulo: Método, 2.000. p. 156.

30 "Certamente, não deve escapar à mais ligeira atenção de qualquer o seguinte: à c.t.c. antecede na ordem material um fato de nenhum significado para o Direito: a procura, por uma pessoa, que deseja obter do Município um meio hábil de ocupar um solo do cemitério, em caráter perpétuo e exclusivo, ou em caráter exclusivo mas temporário, ali inumando seus mortos e erigindo túmulos" (RT 256/12) – grifos nossos. JUSTINO ADRIANO FARIAS DA SILVA, inclusive, entende que a constituição do jus sepulchri no caso das sepulturas temporárias, decorre de contrato de locação, conforme veremos a seguir. Por tal razão, não concordamos com a afirmação de FERNANDO HENRIQUE MENDES DE ALMEIDA no sentido de que a ausência da perpetuidade "não induziria à continuidade do culto aos mortos" (RT 258/62).

31 Utiliza-se o verbo no passado pois o artigo 2.038 do CC/2002 proibiu a constituição de novas enfiteuses. Não obstante, como as enfiteuses já existentes continuam a subordinar-se ao Código Civil de 1916, optou-se por abordar a sua compatibilidade com o jus sepulchri, ante a possibilidade de que o direito à sepultura tenha se constituído sob tal forma.

32 Ao enfiteuta, na qualidade de titular do "domínio útil", atribui-se a prerrogativa de usar, gozar e dispor do bem, com certas restrições, as quais, em princípio, revelam-se menores do que aquelas a que, na prática, se sujeita o titular do jus sepulchri. O jus fruendi, por exemplo, é assaz restrito, mormente após a inumação. Entendemos, contudo, que a restrição às prerrogativas do enfiteuta não tornam incompatível o direito à sepultura com a enfiteuse, sendo possível argumentar-se, em sentido contrário, que a restrição resulta da finalidade da constituição do direito ou, ainda, de que decorre de limitação do conteúdo do direito, calcada em normas de direito público. A distinção entre limitação e restrição do conteúdo do direito de propriedade, de visualização nem sempre fácil, é de PONTES DE MIRANDA (Tratado de direito privado. t. XVIII. 1. ed. Campinas: Bookseller, 2.002. p. 36).

33 ORLANDO GOMES, em parecer a respeito da distinção entre enfiteuse e locação publicado na RF 152/76, ressalta que "as disposições do Código sobre a enfiteuse são de caráter imperativo", entendimento reafirmado em sua obra a respeito do direito das coisas: "As partes contratantes não gozam da liberdade de estipular cláusulas que discrepem dos preceitos legais relativos aos elementos essenciais à configuração desse direito real" (Direitos reais. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1.998. p. 255).

34 "Se nos déssemos, porventura, à empresa de levantar uma estatística das vezes em que, tratado o assunto que nos ocupa, os escritores aludem a qualquer direito e lhe adicionam a expressão <>, provavelmente chegaríamos à conclusão de que, aí, o índice de freqüência no emprego da expressão é considerável. Entretanto, <> não diz nada. É uma logomaquia. É, em suma, um subterfúgio com que, havendo de procurar-se apontar, num gênero, certo ato que queremos supor-lhe pertença, acabamos não atinando com as diferenças específicas e, por isso, apelamos para tal artifício" (RT 255/19). A lição é de FERNANDO HENRIQUE MENDES DE ALMEIDA. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no julgamento da Apelação Cível nº 592048607, afirmou que o direito à sepultura é "similar" à enfiteuse, sem, contudo, especificar a sua natureza jurídica (TJRS – 2ª Câmara Cível – Apelação Cível nº 592048607 – Rel. Des. Elvio Schuch Pinto – j. 26.08.92).

35 A distinção entre enfiteuse e locação em razão do tempo de duração é ressaltada, sem divergências, pela doutrina (Cf. BARROS MONTEIRO, Washington de. Curso de direito civil. 3. v. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 1.994. p. 275; RODRIGUES, Silvio. Direito civil.v. 5. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1.988. p. 253; SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil. v. IV. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1.999. p. 21).

36 "Art. 679. O contrato de enfiteuse é perpétuo. A enfiteuse por tempo limitado considera-se arrendamento, e como tal se rege".

37 "Antes do Cód. Civil, a confusão entre enfiteuse e arrendamento perdurava no direito pátrio, a despeito da existência de tais regras interpretativas, uma vez que nem estas nem a doutrina proporcionavam seguro critério distintivo" (RF 152/77).

38 Conforme leciona MOREIRA ALVES, a enfiteuse do direito justinianeu resultou da fusão de duas espécies de arrendamento (locação) de bem imóvel: o dos agri vectigales e o do ius emphyteuticum ou ius perpetuum (Direito romano.v. I. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1.992. p. 431). O arrendamento dos agri vectigales era perpétuo ou por longo lapso de tempo e o ius perpetuum era perpétuo. A dificuldade de distinção entre enfiteuse e locação, destarte, guarda relação com o fato de que o direito real teve origem em modalidade de arrendamento perpétuo, que tendeu a desaparecer ao longo do tempo. No Direito Brasileiro, a locação perpétua foi abolida pelo Alvará de 3 de novembro de 1.757, conforme asseveram FERNANDO HENRIQUE MENDES DE ALMEIDA (RT 254/12) e PONTES DE MIRANDA (Tratado de direito privado. t. XVIII. 1. ed. Campinas: Bookseller, 2.002. p. 102), o que foi ratificado pelos artigos 1.188 do Código Civil de 1916 e 565 do Código Civil de 2002 ao estatuirem o caráter temporário da locação.

39 No julgamento da Apelação Cível nº 131.416-4/4-00, a 6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, examinando contrato de "concessão" de jazigo em cemitério particular, equipara a duração por prazo indeterminado à perpetuidade ("Examinando o contrato de concessão do jazigo, dele se verifica que a concessão foi feita por tempo indeterminado, perdurando em caráter perpétuo"), o que, como visto, carece de fundamento jurídico.

40 Cf. RF 152/78.

41 A atualização monetária do foro, prevista no artigo 101, "caput", do DL nº 9.760/46 (c/ redação da Lei nº 7.450/85) não configurava variação.

42 RODRIGUES, Silvio. Direito civil.v. 5. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1.988. p. 179.

43 O valor de Cr$ 50.000,00 (cinqüenta mil cruzeiros), estabelecido pela Lei nº 7.104, de 20.06.83, que alterou a redação do artigo 134, II, do Código Civil revogado, corresponderia, na data de entrada em vigor do Código Civil de 2002, realizando-se a atualização monetária pela Tabela do Tribunal de Justiça de São Paulo, a cerca de R$ 332,95 (trezentos e trinta e dois reais e noventa e cinco centavos).

44 Veja-se, nesse sentido, a lição de FERNANDO HENRIQUE MENDES DE ALMEIDA: "A superfície (direito de edificar em terra alheia) havida como <> é figura que, por igual, inexiste em nosso Direito positivo" (RT 253/24).

45 "O direito de superfície foi revogador da enfiteuse em diversos direitos estrangeiros, como expusemos anteriormente, e agora o é, no novo Código Civil, no Brasil; porém, mantém as até então existentes; apesar de guardar-lhe distinção de grande monta, suspendendo a acessão das benfeitorias ao solo, enquanto perdurar" (BENASSE, Paulo Roberto. Direito de superfície e o novo Código Civil. Campinas: Bookseller, 2.002. p. 131).

46 A superfície, no direito justinianeu, encontrava-se enquadrada entre os jura in re aliena. Não obstante, considerando que o superficiário, com relação ao edifício, tinha "todos os poderes de proprietário" (MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito romano. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1992. p. 434), dispondo de faculdades mais amplas que do que as do enfiteuta em situação análoga, não parece ser despropositado afirmar tratar-se de exceção à regra da acessão.

47 Cf. BENASSE, Paulo Roberto. Direito de superfície e o novo Código Civil. Campinas: Bookseller, 2.002. p. 35-70.

48 A concessão de uso prevista pelo Decreto-Lei nº 271/67 não se confunde com o direito de superfície, eis que não implica na transmissão da propriedade da edificação ou plantação ao concessionário, à míngua de expressa disposição em contrário (CHALHUB, Melhim Namem. "Direito de superfície". Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, São Paulo, RT, v. 14, n. 53, jul./set., 1.990. p. 78 e PINTO, Rosane Abreu Gonzalez. "O direito real de superfície e a sistemática do novo código civil brasileiro". Revista dos Tribunais, São Paulo, RT, v. 89, n. 775, mai., 2.000, p. 86).

49 Por tal razão, é mais apropriado falar em suspensão do princípio da acessão, como defende PAULO ROBERTO BENASSE: "Se fosse permitida em caráter perpétuo, como o é em alguns países, a concessão seria permanente, revogando a acessio, ou seja, o princípio superfícies solo cedit, mas no Brasil ela apenas suspende os efeitos da acessio, até o termo final do contrato ou pela sua revogação, ou seja, neste ato haverá aderência permanente do acessório ao solo, unificando as duas propriedades em apenas uma, a do solo, extinguindo a propriedade superficiária que impedia a aderência permanente ao solo da construção, pela suspensão do princípio basilar do direito mencionado" (Direito de superfície e o novo Código Civil. Campinas: Bookseller, 2.002. p. 75).

50 "Cunha Gonçalves diz que, em todos os cemitérios públicos, as Câmaras municipais concedem a particulares o direito de construir jazigos ou monumentos funerários, como direito superficiário, mencionando ou não expressamente dele tratar-se. A constituição deste contrato é de direito de superfície, porque o solo continua a pertencer ao município; mas o jazigo ou o monumento é propriedade de quem o mandou erigir; e, embora se diga que é uma propriedade sui generis, é certo que é feito em caráter perpétuo, onde a propriedade do solo pertence a um e o da superfície a outro, transmissível hereditariamente e alienável" (BENASSE, Paulo Roberto. Direito de superfície e o novo Código Civil. Campinas: Bookseller, 2.002. p. 88).

51 O direito de superfície com prazo de duração indeterminado não encontra previsão legal no Código Civil vigente, que revogou, ex vi do artigo 2º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil, os artigos 21 a 24 da Lei nº 10.257/2001, razão pela qual entendemos não ser possível a sua constituição, ainda que por aplicação do artigo 7º do Decreto-Lei nº 271/67, diversamente do que entende PAULO ROBERTO BENASSE (Direito de superfície e o novo Código Civil. Campinas: Bookseller, 2.002. p. 105). O ordenamento jurídico português, ex vi do artigo 1.524 do Código Civil daquele país, expressamente permite a constituição do direito de superfície em caráter perpétuo, o que nos parece mais adequado, de lege ferenda, ao jus sepulchri.

52 "Com o término do prazo da propriedade superficiária, cessa o termo final da suspensão da acessão, atribuindo-se, imediatamente, ao proprietário do solo a propriedade da construção ou a plantação neste existente, por decorrência do princípio de que superficies solo cedit" (PINTO, Rosane Abreu Gonzalez. "O direito real de superfície e a sistemática do novo código civil brasileiro". Revista dos Tribunais, São Paulo, RT, v. 89, n. 775, mai., 2.000, p. 88).

53 A lei belga, segundo relata BENASSE, limita a sua duração ao período de 30 (trinta) anos. Na Espanha, segundo o mesmo autor, o prazo máximo é de 50 (cinqüenta) anos (Direito de superfície e o novo Código Civil. Campinas: Bookseller, 2.002. p. 68). JOSÉ GUILHERME BRAGA TEIXEIRA, escrevendo a propósito da Lei n 10.257/2001 e antes da aprovação do Projeto do Novo Código Civil, defendia a limitação ao prazo de 50 (cinqüenta) anos ("O direito de superfície recriado pela Lei 10.257, de 10.07.2001". Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, RT, v. 24, n. 51, jul./dez., 2.001, p. 49).

54 "Embora o jus sepulchri e o próprio sepulcro integrem o patrimônio da alguém, não se admite que sirvam para o auferimento de lucros em atividades comerciais. Não é permitida a mercandia, com o sepulcro ou (menos ainda) com o jus sepulchri. Após a inumação de um cadáver, não é mais de permitir-se a sua alienação, de regra, salvo as hipóteses que veremos adiante, como, por exemplo, para obter-se a extinção de condomínio, etc" (SILVA, Justino Adriano Farias da. Tratado de direito funerário. t. II. São Paulo: Método, 2.000. p. 119).

55 "O imóvel registrado pode sofrer alterações que o aumentem ou diminuam. O aumento resulta ou da união de um prédio a outro, formando um só imóvel, ou da adscrição de um a outro como parte integrante do mesmo. Em qualquer das duas hipóteses, a declaração de vontade do proprietário e a unificação do registro são necessárias. A diminuição decorre do ato de vontade do proprietário pelo qual separa do prédio uma porção constituindo-a imóvel independente. A esse processo dá-se o nome de desmembramento. Há de constar, obviamente, do registro; desdobrando-se a matrícula" (GOMES, Orlando. Direitos reais. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. pp. 136-137).

56 PAULO ROBERTO BENASSE (Direito de superfície e o novo Código Civil. Campinas: Bookseller, 2.002. p. 105) utiliza as expressões canon ou solarium para designar o quantum em dinheiro devido pelo superficiário em caso de pagamento parcelado, originárias da contraprestação devida, respectivamente, pelo enfiteuta e pelo superficiário no direito romano (MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito romano.v. I. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1.992. pp. 424-436).

57 Cf. Direito de superfície e o novo Código Civil. Campinas: Bookseller, 2.002. p. 105.

58 Cf. Direito romano.v. I. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1.992. p. 434.

59 O instituto do comisso, previsto no artigo 692, inciso II, do Código Civil de 1916, tem origem na decadência do direito romano.

60 Cf. "Direito de superfície". Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, São Paulo, RT, v. 14, n. 53, jul./set., 1.990. p. 81.

61 "Entretanto, esse instituto persiste no ius positum brasileiro, porque o novo Diploma (Lei n. 6.766) apenas derrogou aqueles textos que tratavam da matéria, isto é, ficaram substituídas apenas aquelas normas que estariam em contradição com as disposições atuais. Não é o caso, entretanto, da concessão de uso que, sendo matéria geral, fica inalterada e em pleno vigor" (SILVA, Justino Adriano Farias da. Tratado de direito funerário. t. II. São Paulo: Método, 2.000.p. 107).

62 Cf. Tratado de direito funerário. t. II. São Paulo: Método, 2.000.p. 162.

63 Cf. SILVA, Justino Adriano Farias da. Tratado de direito funerário. t. II. São Paulo: Método, 2.000.p. 109.

64 A concessão de uso do DL nº 271/67, portanto, não se confunde com o direito pessoal concedido pelo Estado, a título precário, para utilização de bem público, também denominado concessão. Cf. STJ – 1ª Turma – RESP nº 124.755-DF – Rel. Min. Humberto Gomes de Barros – j. 19.08.97 – v.u.; STJ – 2ª Turma – RESP nº 124.142-DF – Rel. Min. Peçanha Martins – j. 18.12.97 – v.u.

65 SILVIO RODRIGUES (Direito civil.v. 5. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1.988. p. 264), apesar de afirmar que o comodato, em regra, é negócio jurídico intuitu personae, admite a transmissão aos herdeiros dos direitos e obrigações do comodatário, diante da omissão do legislador, de acordo com as particularidades de cada caso. ORLANDO GOMES, por sua vez, assevera que "a morte do comodatário não é causa extintiva, salvo se estipulado que o uso da coisa será estritamente pessoal" (Contratos. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1.998. p. 318), o que nos parece mais acertado, especialmente no caso do "jus sepulchri". No caso do contrato de locação, a solução adotada pelo direito positivo, à primeira vista, parece depender do prazo de duração da avenca (determinado ou indeterminado), eis que o artigo 1.198 do Código Civil dispõe que, morrendo o locatário, a locação por prazo determinado transmite-se aos herdeiros, nada dispondo a respeito da locação por prazo indeterminado, o que levou SERPA LOPES (Curso de direito civil. v. IV. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1.999. p. 91) a defender que a morte constitui modo terminativo de tal espécie de locação. Como lembra ORLANDO GOMES (Contratos. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1.998. p. 275), todavia, "nem para o locador, nem para o locatário, o contrato é instuitu personae, senão contrato impessoal", de tal sorte que não vislumbramos, à míngua de expressa proibição legal, óbice à transmissão da locação por prazo indeterminado aos herdeiros do locatário, de forma análoga ao que prevê o artigo 11, I, da Lei de Locações, mormente porque a disparidade de regime jurídico carece de substrato lógico ou jurídico. Em regra, portanto, entendemos que a morte do locatário não extingue a locação, conforme defende o civilista baiano.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. Natureza jurídica do direito à sepultura em cemitérios particulares. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1122, 28 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8714. Acesso em: 24 abr. 2024.