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A apuração da verdade e os poderes instrutórios do juiz

A apuração da verdade e os poderes instrutórios do juiz

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SUMÁRIO:Introdução; I – Considerações iniciais; 1.1 Brevíssimos aspectos sobre a verdade; 1.2 Breves aspectos sobre a figura do juiz; II – A busca da verdade e os poderes instrutórios do juiz penal; 2.1 A busca da verdade; 2.2 Os poderes instrutórios do juiz penal; Conclusão ; Referências bibliográficas


INTRODUÇÃO

            A consciência humana sempre se mostrou incompatível com a dúvida. A a-versão à simples aparência da realidade das coisas foi, inclusive, o fator fundamental que im-pulsionou o homem a produzir ciência, a indagar sobre tudo e todos e procurar a explicação do mundo. O homem anseia, enfim, a verdade [01].

            Exemplo conhecido de todos e útil para demonstrar a inquietação que a ignorância traz ao espírito humano, é o fato de Capitu ter, ou não, traído Bentinho [02]. O resultado pouco importará em nossas vidas. Ainda assim, a incerteza sobre o adultério da personagem fictícia do livro Dom Casmurro, de Machado de Assis, causa furor e perturba a alma.

            No processo penal, instrumento diretamente ligado à liberdade, bem de valor inestimável ao homem, com muito mais razão o anseio e culto à verdade deve ser fomentado e aplaudido.

            Mas como garantir que a justiça considere somente a verdade ao aplicar a norma? O que limita o poder instrutório do juiz? Seria, em algum caso, admitida a dúvida no processo penal, ou o magistrado deve perseguir continuamente a verdade?

            São essas indagações, com o resultado correlato, que tornam o tema interessante, atual e de suma relevância. Conhecendo-se os poderes instrutórios do juiz, os obstáculos para chegar à verdade transmudam-se para o alcance das mãos. Admitir apenas a atividade das partes, carregadas de parcialidade, é venerar a injustiça.

            Diante disso tudo, o tema será tratado em dois capítulos, com a seguinte delimitação e sem qualquer intenção de esgotar o assunto:

            O primeiro capítulo cuidará superficialmente do conceito de verdade, sem adentrar em seus problemas filosóficos, deontológicos ou ontológicos, ponto a merecer trata-mento específico em trabalho futuro. Cuidará, também, da figura do juiz no processo, veiculando apenas os aspectos gerais que interessam ao tema principal.

            O capítulo segundo, por sua vez, tratará da busca da verdade no processo penal tradicional, apresentando alguns aspectos relevantes. Abordará, também, o poder instrutório do juiz na busca da verdade. Ausentes, contudo, estudos a respeito da influência do "adversarial system" e "inquisitorial system", que determinam o comteúdo da participação ativa do juiz, e estudos a respeito da licitude e legitimidade das provas, também por constituírem temas a serem tratados oportunamente.


I. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

            1.1 BREVÍSSIMOS ASPECTOS SOBRE A VERDADE

            Da lição de Pinto Ferreira [03] sobre verdade, que inexoravelmente conduz o lei-tor a uma complexa gama de idéias e conceitos apurados por brilhantes pensadores, sobressai, sem dúvida, o conceito usual de verdade [04]:

            A verdade, no seu sentido mais usual, é a adequação ou conformidade entre o intelecto e a realidade, no sentido de uma interpenetração entre ambos. O intelecto é a inteligência, o entendimento, a razão, o conhecimento intelectual; a realidade é o ser. A adequação é a correspondência (‘correspondentia’) entre o intelecto e o ser; assim, as idéias adequadas exibem com clareza as notas constitutivas do objeto.

            Na mesma seara e igualmente ressaltando que "muitos eruditos destinaram grande parte de seus estudos e pesquisas a tentar responder" [05] o que é verdade, Marco Antônio de Barros [06] ensina que "verdade, do latim ‘veritate’, tem o sentido de exatidão, realidade, conformidade com o real. [...] A verdade, na sua definição comum, é a adequação ou conformidade entre o intelecto e a realidade".

            Logo, a inteligência reproduz fielmente o ser quando imbuída de verdade. É esta, pois, o único caminho para a relação harmônica entre a inteligência e o ser, realidade ou acontecimento.

            Por isso Chaїm Perelman [07] atribui à evidência papel de suma importância na caracterização da verdade. "O que é evidente se impõe como verdadeiro ao nosso pensamento, não passando a evidência do aspecto subjetivo de uma verdade objetiva" [08]; concedendo à evidência papel de garantidora da verdade [09]. Particularmente, aliás, quanto à evidência, ressalta o autor logo à frente [10]:

            A evidência, para cumprir seu papel, deve não só garantir a verdade de seu objeto, mas deve ser, ela própria, incontestável; as dissociações opinião-verdade, aparência-realidade, impressão-objetividade não são concebíveis no que lhe concerne. A evidência, por sua natureza indubitável, se reportará a um saber verdadeiro, que descreve o real tal como é objetivamente.

            A inteligência fica então condiciona à evidência, que, por sua vez, respeita a verdade. Todavia, ressalta-se, verdade não é sinônimo de evidência. Enquanto esta é subjetiva, podendo ser robusta ou frágil, a outra é objetiva, pelo que admite uma única verdade, um único juízo.

            É essa ligação entre evidência-verdade-inteligência que permite ao juiz ob-ter juízo de valor em um processo. Cada parte suscita a evidência que parece robusta a seus olhos, por isso subjetiva [11], ao passo que ao juiz incumbe aquilatar qual evidência apresentada parece-lhe mais consistente. A partir de então, o juiz obtém juízo verdadeiro e pode sentenciar.

            Nem sempre, todavia, o juiz poderá afirmar-se totalmente convencido por uma das evidências apresentas pelas partes. Por este motivo o processo autoriza o juiz a lançar mão de expedientes vários para, por meios próprios, conhecer a verdade e até mesmo resolver a favor do réu quando persistir a dúvida.

            1.2 BREVES ASPECTOS SOBRE A FIGURA DO JUIZ

            A teoria da tripartição dos poderes [12], consagrada no artigo 2º da Constituição Federal, divide o Poder do Estado em outros três; Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário, todos autônomos e responsáveis pelo cumprimento do bem comum [13].

            Ao Poder Judiciário, em particular, compete a função de aplicar o direito ao caso concreto, pacificando os conflitos de interesse e eliminando a insatisfação social.

            Nesse panorama é que se insere a figura do juiz.

            O Estado é abstrato; falta-lhe corpo para concretizar as funções reguladas na Lei Maior. Serve-se do juiz, portanto, para, em seu nome, realizar a função jurisdicional, distribuindo justiça. "Por isso, o Estado sente como essencial o problema da escolha dos juízes – porque sabe que confia a eles um poder terrível que, mal empregado, pode fazer com que a injustiça se torne justa [...]" [14].

            O papel do juiz no processo, sob a ótica publicista atual, é necessariamente ativo, nunca meramente passivo. Ele garante a paz social pela atuação das regras de convivência, incentiva o contraditório, intervém no interesse do mais fraco para garantir a paridade de armas e envida esforços para aplicar a mais pura justiça.

            E porque exerce tão importante e eminente função estatal, afinal, "o Estado tem interesse em que a tutela jurisdicional seja prestada da melhor maneira possível" [15], ocupa o juiz posição de destaque na relação jurídica processual [16] e [17], presidindo o processo [18] e colocando-se "super et inter partes" [19].

            Quanto ao exercício de suas funções, para assegurar total independência e conformidade de pensamento, cercou-se o juiz de prerrogativas [20] e garantias institucionais [21]. Quanto à sua atuação, uma série de poderes e deveres garantem o pleno e ideal exercício da jurisdição.

            Os poderes, no entender de Julio Fabbrini Mirabete, referem-se "à produção da prova (arts. 156, 209, 425 502 etc.), à disciplina (art. 184), de coerção (arts. 201, 21, 218, 203, 286, 448, 450, etc.), relativos à economia processual (arts. 82, 94, 97 etc.) e de nomeação (arts. 32, 33, 149, § 2º, 262, 263 etc.)" [22].

            Os deveres, ensinam Araújo Cintra, Ada Grinover e Dinamarco [23]:

            O juiz tem também deveres no processo. Todos os poderes de que dispõe caracterizam-se como poderes -deveres, uma vez que não lhe são conferidos para a defesa de interesses seus, ou do próprio Estado, mas como instrumento para a prestação de um serviço à comunidade e particularmente aos litigantes. Não só o dever de sentenciar ele tem, mas ainda o de conduzir o processo segundo a ordem legal estabelecida (devido processo legal), propiciando às partes todas as oportunidades de participação a que têm direito e dialogando amplamente com elas mediante despachos e decisões tão prontas quanto possível e motivação das decisões em geral (garantia constitucional do contraditório).

            Logo, os poderes do juiz são também seus deveres, eis que "não são propriamente tidos como meras faculdades colocadas à sua disposição, mas obrigações que o levam a ordenar a execução de atos que propiciem a descoberta da verdade [...]" [24].

            Dessa forma, como sujeito desinteressado, o juiz comanda o processo baseado na lei, devendo agir imparcialmente. Exerce poderes, mas em contrapartida possui deveres.


II. A BUSCA DA VERDADE E OS PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ PENAL

            2.1 A BUSCA DA VERDADE

            Muito se falou outrora em verdade real e verdade formal. Atualmente, todavia, com o reconhecimento do caráter publicista do processo, "não há qualquer razão para continuar sublinhando a distinção entre ‘verdade real’ e ‘verdade formal’, entendendo a primeira própria do processo penal e a segunda típica do processo civil" [25].

            Nesse ponto, ensina Ada Grinover [26]:

            No processo penal ou civil que seja, o juiz só pode buscar uma verdade processual, que nada mais é do que o estágio mais próximo da certeza. E para que chegue a esse estágio, deverá ser dotado de iniciativa instrutória. Por isso mesmo, o termo ‘verdade real’, no processo penal e no processo civil, indica uma verdade subtraída à exclusiva influência que as partes, por seu comportamento processual, queiram exercer sobre ela. E isso vale para os dois processos, em matéria probatória. A diferença que persiste reside na existência, no processo civil, de fatos incontroversos, sobre os quais se admite a prova, resumindo-se a controvérsia a uma questão de direito, enquanto no processo penal tradicional não pode haver convergência das partes sobre os fatos.

            De fato, no processo penal tradicional o juiz não pode ficar adstrito aos fatos incontroversos, para não se subjugar à vontade das partes. Deve, assim, em cumprimento ao poder-dever que lhe é peculiar, especialmente o poder instrutório, ir ao encontro de todos os elementos de convicção – evidências para Perelman [27] – a fim de solidificar em seu espírito a verdade sobre acontecimento em questão.

            Mas não é porque o poder instrutório do juiz transfere a este a iniciativa das partes que o juiz sai da condição de sujeito imparcial [28].

            A iniciativa oficial em matéria probatória não representa empecilho à imparcialidade. Quando o juiz determina que se produza uma prova não requerida ou reinquire testemunha arrolada por uma das partes, ainda não conhece o resultado que essa prova trará ao processo, como tampouco sabe que parte será favorecida por sua produção [29]. "Longe de afetar sua imparcialidade, a iniciativa oficial assegura o verdadeiro equilíbrio e proporciona uma apuração mais completa dos fatos. Ao juiz não importa que vença o autor ou o réu, mas inte-ressa que saia vencedor aquele que tem razão" [30].

            Ainda assim, as normas de direito processual penal possuem mecanismos que impedem que um juiz decida sem sua natural isenção. Particularmente quanto a isto, Mirabete [31] leciona que é justamente "para preservar essa imparcialidade, indispensável à exata aplicação da lei penal" que o Código prevê os casos de suspeição e impedimento.

            Desse modo, não é porque o juiz adota posição ativa no processo penal que necessariamente favorecerá uma das partes. Aliás, é peculiar do juiz que permaneça sempre imbuído de imparcialidade.

            Além do mais, não podemos esquecer que "a omissão da parte na instrução do feito é freqüentemente devida a uma situação de desequilíbrio material, em que preponderam fatores institucionais, econômicos ou culturais" [32]. Conseqüentemente, num processo publicista como o nosso o juiz deve instruir o processo a fim de garantir a paridade de armas.

            De todo modo, esse poder instrutório do juiz não é ilimitado.

            Quanto a isso, Ada Grinover [33] é enfática ao afirmar que "a rigorosa obser-vância do contraditório, a obrigatoriedade de motivação, os limites impostos pela licitude (material) e legitimidade (processual) das provas" são obstáculos intransponíveis à iniciativa oficial.

            A observância do contraditório determina a submissão de todas as provas, inclusive as de ofício, ao crivo das partes. A motivação, por sua vez, exige do juiz que as razões, de fato e de direito, sejam apresentadas. Por fim, a busca da verdade não pode suplantar regras éticas, morais e processuais [34], salvo quando, em observância ao princípio da proporcionalidade, seja justo admitir a mitigação dessas regras.

            Nesse sentido, muito oportuna a lição de Scarance [35] a respeito da íntima relação que processo e Constituição travam entre si:

            O importante é ler as normas processuais à luz dos princípios e das regras constitucionais. É verificar a adequação das leis à letra e ao espírito da Constituição. É vivificar os textos legais à luz da ordem constitucional. É, como já se escreveu, proceder à interpretação da norma em conformidade com a Constituição. E não só em conformidade com sua letra, mas também com seu espírito.

            Além disso, exatamente porque o juiz deve respeitar o contraditório que a busca da verdade necessita também da atuação das partes. Quanto a isto, corrobora Marco Antônio de Barros [36] que é "[...] absolutamente válida e necessária a colaboração das partes. Daí a importância de fundir a verdade sob o crivo do contraditório, visto que o somatório de esforços provenientes de mais de um intelecto contribui para o seu descobrimento".

            Outro ponto que merece atenção é a necessidade dos juízes acompanharem as evoluções e mutações nos conceitos e costumes da própria sociedade em que se insere. Em sua missão, ele deve estar afinado com o tempo, possuir disposição, conhecer e respeitar diferenças sociais e culturais daqueles que atuam no processo [37]. A oitiva de testemunha só será produtiva, por exemplo, se juiz e testemunha falarem a mesma língua.

            Finalmente, a busca da verdade termina quando não há mais fonte de prova a ser explorada. Tal é o que se deduz pelo argumento a contrario da Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, item VII: "Enquanto não estiver averiguada a matéria da acusação ou da defesa, e houver uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá pronunciar o ‘in dubio pro reo’ ou o ‘non liquet [38]’".

            Diante de tudo, fica claro que o juiz jamais poderá recusar-se a decidir. Se seu espírito não concebe opinião segura ao esgotar as fontes de prova, está ele autorizado a abandonar a busca da verdade e decidir a favor do réu. O erro do juiz que absolve é muito menos sentido do que o erro do juiz que condena.

            2.2 OS PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ PENAL

            No item VII da Exposição de Motivos do Código de Processo Penal [39] o juiz é instado a atuar no esclarecimento da verdade, ordenando provas de ofício e recusando o ‘in dubio pro reo’ ou o ‘non liquet’ enquanto houver prova a ser explorada. Tem o juiz, portanto, "grande poder em matéria de prova" [40].

            A delimitação desse poder, contudo, é das mais delicadas [41].

            Seu início se dá com a instauração do processo e seu término com a prolação da sentença. Mesmo quando encerrada a fase instrutória pode o juiz ordenar novas diligências para sanar nulidade ou suprir falta que prejudique a verdade [42].

            Classifica-se, assim, o poder instrutório do juiz em genérico ou específico.

            De forma genérica, o juiz tem liberdade para, por todos os meios que respei-tem o contraditório, a motivação e as regras morais e processuais [43], ordenar a realização de provas, conforme se extrai da inteligência do artigo 156 do Código de Processo Penal [44]. Nesse rumo, Marcos Alexandre Coelho Zilli [45] é da seguinte opinião:

            No exame da legislação processual vigente, o art. 156 sobressai como o dispositivo normativo que fundamenta, em caráter geral, toda e qualquer iniciativa instrutória do julgador. Assim, muito embora recaia o ônus probatório ao sujeito processual parcial responsável pela alegação que se pretende ver provada – prevalente, senão exclusivamente, o órgão acusador por força do princípio constitucional da presunção da inocência –, abriu o legislador processual espaço para que o juiz buscasse, durante a instrução, ou mesmo antes de proferir a sentença, maiores esclarecimentos por ele considerados necessários, senão indispensáveis, para dirimir dúvida emer-gente sobre ponto relevante.

            Mesmo não sendo absoluto, o poder genérico "ao menos libera o julgador da manifestação das partes sobre a oportunidade e conveniência do seu exercício" [46]. Ele, enfim, assegura o exercício dos poderes específicos.

            Estes últimos, por sua vez, quanto à prova oral, autorizam o juiz a ouvir tes-temunhas diversas das indicadas pelas partes, reinquirir as testemunhas já ouvidas e tomar depoimento de pessoas referidas (artigo 209 e § primeiro do Código de Processo Penal). "A-lém disso, é dever do juiz tomar as declarações do ofendido (art. 201 do CPP), realizar açarea-ções (arts. 229 e 230 do CPP) e proceder a novo interrogatório do acusado a todo tempo (art. 196 do CPP)" [47].

            Quanto aos documentos, o artigo 234 do Código de Processo Penal autoriza e prescreve ao juiz que, espontaneamente, determine a sua juntada aos autos se o documento se referir a ponto relevante da acusação ou da defesa. Particularmente a respeito desse ponto, Marco Antônio de Barros ressalva: "Há, porém, uma exceção a essa regra geral, visto que a legislação em vigor não autoriza a apreensão de documento em poder do defensor, salvo quando constituir elemento do corpo de delito (§ 2º do art. 243 do CPP)" [48].

            Quanto aos demais poderes específicos, finaliza esse mesmo autor [49]:

            Essa integração do juiz com o conjunto probatório é também sentida em sede de busca e apreensão, que pode ter por objeto: coisas achadas ou obtidas por meios criminosos; instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos; armas, munições e instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso; objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu; cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu poder quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato; e finalmente a colheita de qualquer elemento de convicção. Por fim, a busca domiciliar ou pessoal pode ser determinada de ofício ou até mesmo ser realizada pessoalmente pelo juiz (arts. 240 e 242 do CPP); e além disso, o juiz pode proceder ao reconhecimento de pessoas e coisas (arts. 226 a 228 do CPP).

            Deve ficar claro, contudo, que o juiz não pode valer-se desses poderes para intentar investigação por mero capricho ou determinar diligência arbitrária [50]. Enfim, como já se disse acima, ele deve respeitar as normas éticas, morais e processuais.

            No exercício de tão eminente função estatal, o juiz deve entregar-se total-mente à colheita da prova. Esta, sem dúvida, é instrumento pelo qual se reproduz a verdade [51], exigência inafastável do processo penal, essencialmente publicista e comprometido com a jus-tiça e a pacificação social.


CONCLUSÕES

            Cada vez mais se exige do magistrado aplicação de efetiva justiça. Alcançar esta, por sua vez, não é tarefa fácil, pois nem sempre, ou melhor, quase nunca a realidade é fi-elmente retratada no processo.

            O juiz, todavia, não pode fraquejar ou esmorecer diante dos obstáculos. De-ve continuar leal ao seu objetivo, a pacificação social, só alcançada com a mais pura verdade ou com o esgotamento das fontes de prova, quando somente então é permitido ao juiz desistir da busca pela verdade para prevalecer a liberdade.

            Munido de seus poderes instrutórios, exigências de fato em razão da condi-ção de magistrado, o juiz deve pautar o exercício da busca pela verdade em todas as regras éticas, morais e ou processuais pré-fixadas, admitindo-se, de qualquer modo, a incidência da proporcionalidade como forma de sopesar os interesses e bens jurídicos em jogo.

            Interessante ressaltar quanto à iniciativa do juiz, que não é apenas porque o magistrado deixa sua condição de sujeito inerte que necessariamente está afetada a sua impar-cialidade. O juiz não tem como saber, de antemão, que parte sairá beneficiada com a produção da prova que determinar. Mesmo assim, o direito processual dispõe de mecanismos para afas-tar do exercício jurisdicional o juiz parcial ou impedido.

            No exercício dos poderes instrutórios, está o juiz protegido por norma gené-rica, conforme artigo 156 do Código de Processo Penal, assim como por normas específicas, as quais garantem a iniciativa do juiz na produção de provas orais, documentais e materiais.

            O juiz só não pode, contudo, sob a proteção dessas normas instrutórias, ne-gar sua finalidade de pacificação social, determinando provas por mero capricho ou de forma arbitrária. Não dever também esquecer que sua posição como juiz existe para dirimir confli-tos, não lhe sendo permitido afastar-se tanto do jurisdicionado, a ponto da sua convivência com este outro no processo tornar-se impraticável.

            Enfim, é a íntima ligação entre todos esses elementos que efetiva a busca da verdade, com a conseqüente aplicação de justiça nos casos submetidos à análise do judiciário.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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            FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. 381 p.

            FERREIRA, Pinto. Verdade. In: FRANÇA, R. Limongi. Enciclopédia Saraiva do Direito. v. 77. São Paulo: Saraiva, 1977. pp. 67 a 84.

            GRINOVER, Ada. In: Revista Forense, v. 347. Rio de Janeiro: Forense, 1999. pp. 3 a 10.

            LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Método, 2004. 477 p.

            MARCATO, Antonio Carlos. Procedimentos especiais. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2004. 466 p.

            MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2001. 784 p.

            PERELMAN, Chaїm; tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. Retóricas. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 417 p.

            ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. 316 p.


NOTAS

            01 Ao expor os motivos porque o homem iniciou a filosofia, Gilberto Cotrim (Fundamentos da filosofia. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 49) ensina: "Primeiro foi o espanto, depois o despertar crítico e a decepção. O homem queria uma explicação para o mundo, uma ordem para o caos. Ele queria, enfim, a verdade. Essa busca da verda-de tornou-o cada vez mais exigente com o conhecimento que adquiria e transmitia. Ambicioso, o homem sentia uma necessidade crescente de entender e explicar tudo de maneira clara, coerente, precisa. Nascia assim a filoso-fia".

            02 ASSIS, Machado. Dom Casmurro. São Paulo: Scipione, 1994. 153 p.

            03 FERREIRA, Pinto. Verdade. In: FRANÇA, R. Limongi. Enciclopédia Saraiva do Direito. v. 77. São Paulo: Saraiva, 1977. pp. 67 a 84.

            04 Ibid., p. 67.

            05 BARROS, Marco Antônio. A busca da verdade no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 13.

            06 Ibid., pp. 14 e 15.

            07 PERELMAN, Chaїm; tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. Retóricas. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

            08 Ibid., p. 360.

            09 Ibid., p. 361.

            10 Ibid., p. 361.

            11 "Ponham dois pintores diante de uma mesma paisagem, um ao lado do outro, cada um com seu cavalete, e voltem uma hora depois para ver o que cada um traçou em sua tela. Verão duas paisagens absolutamente diferen-tes, a ponto de parecer impossível que o modelo tenha sido o mesmo. Dir-se-ia, nesse caso, que um dos dois traiu a verdade?, CALAMANDREI, Piero; Tradução Eduardo Brandão. Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 125.

            12 "A divisão segundo o critério funcional é a célebre ‘separação de Poderes’, que consiste em distinguir três funções estatais, quais sejam, legislação, administração e jurisdição, que devem ser atribuídas a três órgãos autônomos entre si, que as exercerão com exclusividade, foi esboçada pela primeira vez por Aristóteles, na obra ‘Política’, detalhada, posteriormente, por John Locke, no ‘Segundo tratado do governo civil’, que também reconheceu três funções distintas, entre elas a executiva, consistente em aplicar a força pública no interno, para assegurar a ordem e o direito, e a federativa, consistente em manter relações com outros Estados, especialmente por meio de alianças. E, finalmente, consagrada na obra de Montesquieu, ‘O espírito das leis’, a quem devemos a divisão e distribuição clássicas, tornando-se princípio fundamental da organização política liberal e transforman-do-se em dogma pelo art. 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e é prevista no art. 2º da nossa Constituição Federal". MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2001. p. 358.

            13 "Dalmo de Abreu Dallari conceitua o Estado como ‘a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território. Nesse conceito se acham presentes todos os elementos que compõe o Estado, e só esses elementos. A noção de poder está implícita na de soberania, que, no entanto, é referida como característica da própria ordem jurídica. A politicidade do Estado é afirmada na referencia expressa ao bem comum, com a vinculação deste a um certo povo e, finalmente, a territorialidade, limitadora da ação jurídica e política do Estado, está presente na menção a determinado território’ (Elementos da teoria geral do Estado, 23ª ed., p. 118)", LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Método, 2004. p. 38 e 39.

            14 CALAMANDREI, op. cit., p. 11.

            15 GRINOVER, Ada. In: Revista Forense, v. 347. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 7.

            16 "No campo do Direito processual, em especial, reserva-se ao juiz uma posição de superior destaque. Na presi-dência do processo a ele compete autorizar a produção e em seguida colher e valorar as provas apresentadas pe-las partes", BARROS, op. cit., p. 116.

            17 Muito interessante e elucidativo a lição de Calamandrei (op. cit., p. 122) a respeito da posição do juiz no pro-cesso: "Numa galeria de Londres há um famoso quadro do pintor Champaigne, em que o cardeal Richelieu é re-tratado em três poses diferentes: no centro da tela é visto de frente, nos dois lados é retratado de perfil olhando para a figura central. O modelo é um só, mas na tela parecem conversar três pessoas diferentes, a tal ponto é di-ferente a expressão cortante das duas meias faces laterais e, mais ainda, o caráter tranqüilo que resulta, no retrato do centro, da síntese dos dois perfis. Assim é no processo. Os advogados indagam a verdade de perfil, cada um aguçando o olhar por seu lado; somente o juiz, que está sentado no centro, a encara, sereno, de frente".

            18 De igual entendimento, MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. São Paulo : Editora Atlas, 2001. p. 326.

            19 Conforme CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegri-ni. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros Editores, 2001. p. 186.

            20 "Para que o juiz possa desempenhar suas funções com independência, lhe são outorgadas prerrogativas, ou seja, certas garantias, de ordem constitucional: a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de vencimentos". MIRABETE, op. cit., p.328.

            21 Na lição de Pedro Lenza (op. cit., 312), as garantias institucionais "protegem o judiciário como um todo, como instituição. Dividem-se em : a) garantias de autonomia orgânico-administrativa e b) garantias de autonomia financeira".

            22 MIRABETE, op. cit., p.327.

            23 CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, op. cit., p. 294.

            24 BARROS, op. cit., p. 135.

            25 GRINOVER, op. cit., p. 7.

            26 Ibid., p. 7.

            27 Ver item 1.1.

            28 "Imparcialidade é uma qualidade que sempre distingue a pessoa do juiz. Não há falar de processo regular e válido se o julgador não preserva a sua imparcialidade na relação processual. O juiz não pode ser displicente quanto a isso, pois a lei processual não corrobora situação que empane o sentimento de absoluta isenção de inte-resse no resultado da ação", BARROS, op. cit., p. 121.

            29 GRINOVER, op. cit., p 6.

            30 Ibid., p. 6.

            31 MIRABETE, op. cit., p. 326.

            32 GRINOVER, op. cit., p. 5.

            33 GRINOVER, op. cit., p. 6.

            34 "Há uma regra moral intransponível que rege toda a atividade processual, recepcionada de forma explícita pe-las constituições de diversos países. Não são provas as colhidas com infringência a normas ou valores constitu-cionais, nem pode o juiz determinar a produção de provas que vulnerem regras processuais", GRINOVER, op. cit., p. 6.

            35 FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. pp. 16 e 17.

            36 BARROS, op. cit., pp. 286 e 287.

            37 Conforme BARROS, op. cit., p. 116.

            38 Cintra, Dinamarco e Grinover (op. cit., p. 294) com propriedade relacionam o exercício da jurisdição com o "non liquet": "Como a jurisdição é função estatal e o seu exercício dever do Estado, não pode o juiz eximir-se de atuar no processo, desde que tenha sido adequadamente provocado: no direito moderno não se admite que o juiz lave as mãos e pronuncie o ‘non liquet’ diante de uma causa incômoda ou complexa, porque tal conduta importa-ria evidente denegação de justiça e violação da garantia constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicio-nal".

            39 "[...] o juiz deixará de ser um espectador inerte da produção de provas. Sua intervenção na atividade proces-sual é permitida, não somente para dirigir a marcha da ação penal e julgar a final, mas também para ordenar, de ofício, as provas que lhe parecerem úteis as esclarecimento da verdade. Para a indagação desta, não estará sujeito a preclusões. Enquanto não estiver averiguada a matéria da acusação ou da defesa, e houver uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá pronunciar o ‘in dubio pro reo’ ou o ‘non liquet’".

            40 FERNANDES, op. cit., p. 23.

            41 Conforme Marco Antônio de Barros (op. cit., p. 135), "in verbis": "Problema dos mais delicados no tratamen-to da busca da verdade concerne à delimitação dos poderes instrutórios do juiz".

            42 Conforme BARROS, op. cit., pp. 138 e 139.

            43 Ver o que já dissemos no item imediatamente acima a respeito dos limites à busca da verdade.

            44 "Embora a iniciativa da produção das provas pertença às partes, nos termos do art. 156 do CPP, interessadas que são em fornecer elementos pertinentes ao que pleiteiam, permitido está o juiz que, de ofício, determine diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante", TACrimSP, rel. Ferraz Nogueira, JTACrimSP 94/374, apud ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 180.

            45 Ibid., p. 180.

            46 BARROS, op. cit., p. 138.

            47 Ibid., p. 139.

            48 Ibid., p. 139.

            49 Ibid., pp. 139 e 140.

            50 Ibid., p. 124.

            51 Ibid., p. 114. Ressalta, também, que há quem assim não pense e indica: João de Castro Mendes, citando Von Canstein, na obra "Do conceito de prova em processo Civil. Lisboa: Ática, 1961".


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES, Roberto Godoy de Mello. A apuração da verdade e os poderes instrutórios do juiz. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1129, 4 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8737. Acesso em: 16 abr. 2024.