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Maltratada língua portuguesa

Maltratada língua portuguesa

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Reflete-se sobre o mau uso da língua portuguesa no meio jurídico, em tempos pós-modernos.

Esta semana caiu na minha mão um artigo jurídico onde o douto escreveu “houveram”[1]. Trata-se de erro crasso, inadmissível, no meu modo de ver, escrever tal palavra, que me recuso a repetir. Demonstra total falta de observância da tão maltratada e bela Língua Portuguesa.

Caso eu me depare com um texto que contenha tal erro, dentre outros bastante comuns, imediatamente deixo a leitura de lado. Não mais existe interesse em dar prosseguimento a uma leitura de texto que não transmite firmeza. É questão muito pessoal; não perco tempo com obras de discutível qualidade redacional.  

Desde os tempos remotos, jamais deixei de ter sobre a mesa de trabalho um Aurélio ou um Houaiss. É questão de formação e de hábito. É regra, ao menos para mim, que já me considero antigo, um verdadeiro ancião.

Ao redigir uma petição, por exemplo, sempre surgem dúvidas e para isso o dicionário invariavelmente está ao meu alcance. Com ele me sinto muito mais seguro ao escrever qualquer texto, seja jurídico ou não. Afinal, estou amparado.

Não é novidade que a Língua Portuguesa é certamente uma das mais complexas do mundo, considerando suas regras de ortografia, conjugações verbais, sintaxe, morfologia e assim por diante. São poucos os que realmente dominam a Língua Pátria[2].

Portanto, há de se escrever de forma correta, inclusive no âmbito jurídico, e, para isso, em tese, caso seria de se utilizar, também, bons dicionários, sob pena de quem escreve passar vexame e perder leitores, por mais que seu texto seja razoável. Ninguém compra obra contendo erros de Português, quero crer.

É muito gratificante ler um artigo jurídico bem escrito, com qualidade redacional e exuberância técnica; é formidável ler obras cujo autor tem vasto repertório. O leitor se sente muito mais tranquilo.

No âmbito do Direito, o profissional precisa (deve) apresentar argumentação jurídica adequada, desenvolver raciocínio lógico, coerente, consoante escorreita linguagem[3]; deve fazer os links imprescindíveis para bem ser compreendido em suas pretensões. Isso é aprendido no curso de Direito.

 Discurso jurídico vazio de conteúdo está fadado ao insucesso; discurso jurídico com erros de Português certamente não é bem recebido por quem tem o dever de ler e acaba até sendo motivo de risos. A linguagem adequada se faz necessária e isso, invariavelmente, passa pelo correto uso da Língua Pátria, hoje tão maltratada por muitos.

O grande problema é que a era pós-moderna exige celeridade em tudo. Não há tempo a perder: importa o agora, o momento; a informação transmitida precisa ser atualíssima, senão deixa de ter validade. Temos pressa, inclusive no momento de escrever uma singela oração; há necessidade de contenção nas palavras, porquanto não cabe perder tempo. A etiqueta digital assim exige; impera o tom coloquial na escrita e, com isso, a Língua Pátria é desconsiderada.

Não raro, os textos são redigidos e imediatamente publicados sem indispensável revisão e aí surgem os erros clássicos, como o aqui citado.

Como bem escreve o insigne professor Albino de Brito Freire:

Mas, no princípio, eram as trevas, a caneta e a máquina de escrever. E, depois...o homem criou o computador. Com um toque de mágica, a tecla aciona um mecanismo fabuloso que opera o milagre de transportar-nos para o mundo maravilhoso da cibernética, um admirável mundo novo cujas fronteiras não têm limites e onde podemos saciar nossa sede de onipotência. Estupendo![4]

Lamentável o tempo atual.

Como já alinhei, vivemos a síndrome do cortar, copiar e colar[5] e, ao que se nos parece, a tendência é escrever cada vez menos, pouco importando se a estrutura da frase está correta, se a acentuação foi conferida e se houve[6] perfeita utilização do tempo verbal.

 Em tempos da era digital, com a popularização de tecnologias e ferramentas ao alcance de significativa parcela da população mundial, tudo foi drasticamente alterado, inclusive a forma de escrever; vivemos outros tempos, difíceis e soturnos; há deficit de linguagem escrita e isso é de fácil constatação, bastando ler conteúdos em redes sociais, por exemplo. A sensação é péssima ao se deparar com um texto capenga.

Como dito, não há tempo a perder na era digital, no tempo da informação; tudo é relativizado; regras gramaticas vão embora com o vento forte do desalento e a correta escrita é de somenos importância nos dias atuais. Tudo é resolvido com o simples clique [ou click? Mais chique] em sítios “especializados”. O leitor menos familiarizado com o tema pesquisado, seja qual for, certamente cai em armadilhas e acredita, invariavelmente no que lê.

Destarte, via de regra, inexistem dicionários físicos nas mesas e prepondera a informação sobre a forma como é redigida; tudo é abreviado, inclusive e, principalmente, nas redes sociais e mensagens eletrônicas; as frases enviadas via aplicativos já estão até prontas, estilo prêt-à-porter. Basta clicar, porquanto, mais confortável.

O que importa, de fato, é transmitir a mensagem, a ideia, mesmo em sede de artigo jurídico, por exemplo. De somenos importância se a palavra ou a oração estão corretas: impera a contenção, o minimalismo na palavra escrita.

Sem embargo de tudo o que foi exposto - mera constatação da sofrida realidade nacional -, sente-se que algo há de mudar, ao menos no que diz respeito ao uso da Língua Portuguesa, tão maltratada em tempos pós-modernos.    


[1] O verbo “haver” é impessoal, não possui sujeito e jamais deve ser flexionado para o plural; somente é utilizado no singular. O correto, então, é “houve”. Escrever “houveram” soa muito mal aos ouvidos. Aliás, o Brasil é o país do modismo. Quem não se lembra do “a nível de...”; “fazer uma colocação” e assim por diante. Os incautos se utilizam de termos que nem sequer sabem se em consonância com a realidade, visando explicitar erudição.

[2] https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2020-07/taxa-cai-levemente-mas-brasil-ainda-tem-11-milhoes-de-analfabetos#:~:text=A%20taxa%20de%20analfabetismo%20no,ainda%2011%20milh%C3%B5es%20de%20analfabetos.

[3] A propósito: ATIENZA, Manuel. Curso de argumentação jurídica. Curitiba: Alteridade, 2017.

[4] Jornal Folha de Londrina, edição de 23/08/1998. https://www.folhadelondrina.com.br/geral/maleficios-do-computador-juridico-93697.html. Acesso: 16/04/2021. Orgulho-me de ter sido aluno do prof. Albino de Brito Freire.

[5] www.migalhas.com.br/depeso/305642/pos-modernidade--o-jurista-e-a-sindrome-do-cortar--copiar-e-colar. Acesso: 16/04/2021.

[6] E não “houvera” como alguns erroneamente escrevem.


Autor

  • Carlos Roberto Claro

    Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLARO, Carlos Roberto. Maltratada língua portuguesa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6501, 19 abr. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/89997. Acesso em: 20 abr. 2024.