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Filhos de Coimbra.

Uma história do ensino jurídico brasileiro

Filhos de Coimbra. Uma história do ensino jurídico brasileiro

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RESUMO: Descreve-se a situação do ensino jurídico no Brasil desde o Período Colonial até a primeira metade do Século XX.


1. Introdução

O presente artigo é uma adaptação de trecho do Trabalho de Conclusão do Curso de Direito realizado pelo Autor, com a fantástica orientação da professora Dra. Marlene Kempfer Bassoli, trabalho intitulado "Ensino Jurídico e Realidade Social: questão histórica, problema contemporâneo, Realismo Jurídico como solução".

Juízes, promotores, advogados, procuradores, enfim, todos os operários do direito possuem uma coisa em comum, todos tiveram que passar pelos bancos das Faculdades de Direito. Daí a grandíssima importância destas instituições que influenciam diretamente na formação do pensamento daqueles que constroem o universo jurídico Este artigo tem como objeto exatamente o ensino jurídico. Ele é a base de tudo, por isso devemos compreendê-lo, principalmente sob o ângulo histórico, que tanto nos revelar sobre a nossa própria realidade. Para tanto, um corte temporal deve ser realizado, um ponto na linha do tempo deve ser escolhido como marco inicial do estudo, caso contrário, a análise histórica seria inviável.

Interessa aqui o marco inicial de 1822, ano em que foi declarada a independência política do Brasil, momento em que este passa a ser um Estado soberano. Embora só a partir da independência seja apropriado falar de um ensino jurídico brasileiro, é importante tecer alguns comentários sobre elementos do período colonial.


2. O Período Colonial e a Força de Coimbra

Não havia instituições de ensino jurídico no Brasil Colonial, a condição de submissão não permitiria situação diferente. Ou será que não? A primeira universidade do continente latino americano foi fundada:

"[...] em 1538, na Ilha de São Domingos, justamente onde Colombo desembarcou [...] Em 1553 foi inaugurada a Universidade do México, com as Faculdades de Filosofia, Cânones/Direito, Teologia. Depois surgiram as Universidades de São Marcos (Peru), de São Felipe (Chile) e Córdoba (Argentina)."

(OLIVIO, Luis Carlos Cancellier. "Origens históricas do ensino jurídico brasileiro". In: RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Ensino jurídico: para que(m)?, p. 54)

Percebe-se a diferença entre a política de Portugal e a da Espanha. Pode-se justificar a diferença alegando que enquanto a Espanha possuía uma população de 9 milhões de habitantes e inúmeras universidades, Portugal possuía apenas 1,5 milhão de habitantes e a Universidade de Coimbra (posteriormente seria fundada a Universidade de Évora), isso impossibilitaria a adoção de um modelo similar ao espanhol. De qualquer forma: "Em 1822, quando da independência brasileira, existiam 26 Universidades na América espanhola, enquanto que em nosso território não havia nenhum estabelecimento de ensino superior" (OLIVIO, Luis Carlos Cancellier. In: RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Op. cit., p. 54).

Não obstante a falta de instituições de ensino e a organização judiciária que contemplava vários cargos para leigos, ingressar em uma carreira pública, a magistratura, por exemplo, só era possível se o candidato tivesse a devida instrução jurídica, sempre realizada na Universidade de Coimbra (WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil, p. 65) Durante o período colonial, exatamente entre 1577 e 1822, Coimbra formou 2.464 estudantes oriundos do Brasil (ENCICLOPÉDIA BARSA, Vol. 5, 1989, p. 391). Não há como negar a influência desta instituição portuguesa na gênese do Direito Brasileiro.

A origem da Universidade de Coimbra, que não é diferente das demais universidades de seu tempo, está ligada à Igreja Católica. Em 9 de agosto de 1290, a bula papal de Nicolau IV sanciona a fundação da Universidade de Coimbra (OLIVIO, Luis Carlos Cancellier. In: RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Op. cit., p. 52). Inicialmente os estudos jurídicos serão dedicados ao Direito Romano e ao Direito Canônico Interessante questionar, admitindo uma estrutura clássica de ensino em que temos professores e alunos, de onde provinham os professores de Coimbra? A história marca a Universidade Italiana de Bolonha, fundada na segunda metade do século XI, como a primeira instituição de ensino jurídico. Ela foi responsável por fornecer os primeiros professores das universidades desta época, inclusive os de Coimbra (OLIVIO, Luis Carlos Cancellier. In: RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Op. cit., p. 49).

A Escola de Bolonha destaca-se pelo método da glosa Segundo a doutrina:

"A pesquisa sobre os critérios adotados pelos glosadores, ao longo do século XII e XIII, nos revela que o trabalho desenvolvido por esses juristas foi culto permanente à vontade do legislador. Ao levarem a cabo a interpretação do Direito Romano, contido no Corpus Juris Civilis, os glosadores limitavam-se ao texto."

(NADER, Paulo, Introdução ao Estudo do Direito, p.259)

A Espanha também influenciou os primórdios de Coimbra através da Universidade de Salamanca (fundada em 1215) e do documento conhecido como Siete Partidas¸ obra destinada ao ensino do Direito (OLIVIO, Luis Carlos Cancellier. In: RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Op. cit., p. 52) Esta influência diminuirá a partir do século XIV.

A Igreja Católica não foi responsável apenas pela fundação da Universidade de Coimbra, mas também por todo o seu desenvolvimento. O controle da instituição era dos eclesiásticos. Por séculos é a Companhia de Jesus, ordem religiosa fundada em 1540 por Inácio de Loiola, que determinará os caminhos de Coimbra (GALDINO, Flávio. "A Ordem dos Advogados do Brasil na Reforma do Ensino Jurídico". In: Ensino Jurídico OAB: 170 anos de cursos jurídicos no Brasil, p. 158). Caracteristicamente a Igreja mantinha uma posição conservadora, defendendo o status quo e negando outras vertentes de pensamento. Coimbra não fugirá destas características. As mudanças sociais produzirão poucos efeitos em sua vida, tanto que Coimbra não será influenciada pela "[...] ruptura do culto oficial da Igreja Católica com a Reforma Protestante foi um desses abalos que produziu sérios efeitos sobre o sistema educacional ocidental, em face da marcante doutrina de Martinho Lutero" (BITTAR, Eduardo C. B., Direito e Ensino Jurídico: Legislação Educacional, p. 57). Portugal era o reduto da resistência às mudanças, principalmente quando estas correspondiam a um enfraquecimento da Igreja.

Cabe ressaltar a relevância da Companhia de Jesus no Brasil Colônia. Uma das realizações dos jesuítas foi o desenvolvimento de centros educacionais. Embora nenhum tenha alcançado o status de universidade, alguns dizem que o Colégio da Bahia (Salvador foi capital da colônia até 1763, quando o Rio de Janeiro assumiu esta posição) possuía plenas condições de assim ser considerado (OLIVIO, Luis Carlos Cancellier. In: RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Op. cit., p. 55). Os jesuítas supriam a demanda por ensino:

"[...] desempenharam um papel ideológico e burocrático de maior relevância na colônia e os seus colégios cumpriam uma tríplice função, assim definida por CUNHA: a) de um lado, formar padres para a atividade missionária; b) de outro, formar quadros para o aparelho repressivo, como oficiais de justiça, da fazenda e da administração; c) por fim, ilustrar a classe dominante local, fossem os filhos dos proprietários de terra e de minas, fossem os filhos dos mercadores metropolitanos aqui residentes."

(OLIVIO, Luis Carlos Cancellier. In: RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Op. cit., p. 56)

Destaque-se como o ensino jurídico realizado em Portugal fortalecia a submissão da Colônia à Metrópole:

"Em Coimbra, a formação em Direito era um processo de socialização destinado a criar um senso de lealdade e obediência ao rei. É bastante significativo que, durante os trezentos anos em que o Brasil foi colônia de Portugal, Coimbra fosse a única Faculdade de Direito dentro do império português. Todos os magistrados do império, tivesse ele nascido nas colônias ou no continente, passavam pelo currículo daquela escola e bebiam seu conhecimento em Direito e na arte de governar naquela fonte."

(OLIVIO, Luis Carlos Cancellier. In: RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Op. cit., p. 56)

Não há como negar a alienação que este modelo proporcionava aos bacharéis. Eles estudavam anos em Portugal, assimilavam toda a ideologia de lá, e depois vinham ao Brasil, aplicar o que aprenderam em Lisboa em uma realidade que desconheciam.

Algumas décadas antes do fim da dominação portuguesa sobre o Brasil, Coimbra sofreu uma drástica revitalização proporcionada pelo Marquês de Pombal, na época, primeiro ministro de D. José I. Marquês de Pombal é uma figura importantíssima na história de Portugal, foi ele o primeiro a combater a influência conservadora da Igreja Católica no Estado português, sendo considerado um déspota esclarecido pelos historiadores.

A chamada Reforma Pombalina ocorreu em 1770/1772 com a retirada do controle da Universidade de Coimbra das mãos da Companhia de Jesus (OLIVIO, Luis Carlos Cancellier. In: RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Op. cit., p. 53). O Marquês de Pombal, que estudara Direito em Coimbra, tinha como objetivo modernizá-lo, inclusive o seu ensino, abandonando as tradições medievais e aproximando Coimbra das escolas jurídicas européias ligadas ao iluminismo. Curricularmente:

"[...] introduziu as cadeiras de Direito Natural Público Universal e das Gentes, voltada para o ensino das inovações doutrinárias e legislativas da Europa da época; a cadeira de História Civil dos Povos; a cadeira de Direito Romano e Português e, por fim, a cadeira de Direito Pátrio, servida por um compendio, as Insituitiones iuris civilis lusitani, de Pascoal José de Melo Freire."

(OLIVIO, Luis Carlos Cancellier. In: RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Op. cit., p. 54)

O rompimento com a Igreja permitiu que Coimbra abrisse-se ao pensamento europeu, porém trouxe poucos resultados para a aproximação do estudante de Direito à realidade social brasileira. Eles continuaram sendo formados por portugueses que viam no Brasil uma mera colônia de exploração. Os problemas sociais brasileiros só importavam na medida em que repercutissem economicamente na Metrópole.


3. O Império e a Formação do Estado

Vem a independência. Em 1822, o antes príncipe Dom Pedro I, filho de Dom João VI, torna-se o imperador de uma nova nação, surge o Estado soberano do Brasil. A história conta que o processo de emancipação brasileiro foi muito mais tranqüilo do que o ocorrido nas colônias espanholas. Em contraste, enquanto estas adotaram, em sua maioria, regimes republicanos, no Brasil prevaleceu a monarquia (FAUSTO, Boris, História Concisa do Brasil, p. 78).

Deve-se indagar o porquê da criação dos Cursos de Direito antes de analisar a estruturação deles Os pesquisadores são unânimes em afirmar que a função dos Cursos de Direito era suprir as necessidades de um Estado independente que precisava de um corpo burocrático e uma identidade de pensamento. Aprofundando a assertiva:

"A implantação dos dois primeiros cursos de Direito no Brasil, em 1827, um em São Paulo e outro em Recife (transferido de Olinda, em 1854), refletiu a exigência de uma elite, sucessora da dominação colonial, que buscava concretizar a independência político-cultural, recompondo, ideologicamente, a estrutura de poder e preparando uma nova camada burocrático-administrativa, setor que assumiria a responsabilidade de gerenciar o país."

(WOLKMER, Antonio Carlos. Op. cit., p. 80)

As Faculdades de Direito são implantadas para a manutenção do status quo, adotando a mesma política de Coimbra. Era preciso preservar as instituições portuguesas, as desigualdades, mas agora com um caráter nacional. O poder deveria ser fortalecido:

"Por sua vez, a formação de uma elite homogênea, educada na Faculdade de Coimbra e, a seguir, nas faculdades de Olinda-Recife e São Paulo, com uma concepção hierárquica e conservadora, favoreceu a implementação de uma política cujo objetivo era o da construção de um Império centralizado."

(FAUSTO, Boris, Op. cit., p. 100)

Ainda sobre o tema:

"A burocracia estatal demandava profissionais, e desejava tê-los preparados dentro de uma cultura ideologicamente controlada, cujas origens fossem seguramente determinadas, e cujas inspirações fossem necessariamente convenientes e proporcionais à docilidade esperada do bacharel em Direito."

(BITTAR, Eduardo C. B., Op. cit., p. 68)

Embora a capital do Império na época fosse o Rio de Janeiro, e por isso a cidade fora cogitada como local para a implantação do Curso de Direito, inclusive existindo um Decreto de 9 de janeiro de 1825 dispondo de tal forma, outros interesses fizeram com que, em 11 de agosto de 1827, uma lei criasse os Cursos de Direito na cidade de São Paulo e Olinda (BITTAR, Eduardo C. B., Op. cit., p. 63). Em São Paulo foi aproveitada a estrutura do Colégio Franciscano, estabelecimento mantido pelos jesuítas que ficava no Largo São Francisco; em Olinda os monges beneditinos cederam o Mosteiro de São Bento de Olinda. Os cursos teriam duração de 5 anos, contendo disciplinas como: Direito Natural, Direito Público, Direito Pátrio Civil, Direito Pátrio Criminal com a theoria do Processo Criminal, etc.

Destaque-se que o tempo diferenciou a Escola de Recife e a de São Paulo:

"O intento do Grupo do Recife foi tratar o fenômeno jurídico a partir de uma pluralidade temática, reforçada por leituras naturalistas, biologistas, cientificistas, históricas e sociológicas, apoiando-se fortemente num somatório de tendências que resultavam basicamente no evolucionismo e no monismo, sem desconsiderar a crítica sistemática a certas formulações jusnaturalistas e espiritualistas [...] Já a Academia de São Paulo, cenário privilegiado do bacharelismo liberal e da oligarquia agrária paulista, trilhou na direção da reflexão e da militância política, no jornalismo e na ‘ilustração’ artística e literária."

(WOLKMER, Antonio Carlos. Op. cit., p. 82-83)

Com o fortalecimento do sudeste e o declínio do nordeste, houve uma mudança no centro de decisões do país. Posteriormente é interessante analisar como o pensamento jurídico nacional que possuía duas vertentes acabou sendo direcionado quase exclusivamente a São Paulo.

Para entender a estruturação dos cursos de Direito, tanto em Recife quanto em São Paulo, é preciso descobrir quem seriam os doutores responsáveis por transmitir o conhecimento. Os chamados "lentes" adotaram uma posição metodológica similar a de Coimbra, colocando em primeiro lugar no raciocínio jurídico o princípio da autoridade (GALDINO, Flávio. In: Ensino Jurídico OAB: 170 anos de cursos jurídicos no Brasil, p. 159), ou seja, a validade de um conhecimento dependia exclusivamente da importância de seu defensor, sempre o professor, e não das razões que o justificariam.

O texto legal (Lei de 11 de agosto de 1827), que criou os cursos de Direito, sintetiza duas características importantes dos docentes: 1) a vinculação deles ao Estado pois deveriam ater-se às "doutrinas que estejam de accôrdo com o systema jurado pela nação", e principalmente, 2) a condição de proprietários do saber, "o Governo nomeará nove Lentes proprietário [...] Os Lentes farão escolha dos compêndios da sua profissão, ou os arranjarão, não existindo já feitos [...]". Sobre este personagem do ensino jurídico:

"Não se pode deixar de chamar a atenção para o divórcio entre os reclamos mais imediatos das camadas populares do campo e das cidades e o proselitismo acrítico dos profissionais da lei que, valendo-se de um intelectualismo alienígeno, inspirados em princípios advindos da cultura inglesa, francesa ou alemã, ocultavam, sob o manto da neutralidade e da moderação política, a institucionalidade de um espaço marcado por privilégios econômicos e profundas desigualdades sociais."

(WOLKMER, Antonio Carlos. Op. cit., p. 99-100)

Em uma relação de ensino não se tem apenas professores, então é preciso analisar os alunos da época: "[...] ao fim do império mais da metade dos jovens alunos oriundos das grandes famílias proprietárias de terras e escravos" ocupavam os cursos de Direito (OLIVIO, Luis Carlos Cancellier. In: RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Op. cit., p. 58). Ressalta-se que o ensino era gratuito, o que leva a pensar que:

"Estava, pois, iniciado um processo que tem desde então caracterizado o Estado nacional: o da socialização das despesas da camada social eventualmente dirigente. Sob o manto diáfano dos ideais liberais, o embrião de um processo de concentração de renda pela intermediação do aparelho estatal."

(FALCÃO, Joaquim Arruda Apud GALDINO, Flávio. In: Ensino Jurídico OAB: 170 anos de cursos jurídicos no Brasil, p. 159)

O perfil fica bem definido, integram os bancos das salas de aula os filhos de nobres famílias da elite brasileira (BITTAR, Eduardo C. B., Op. cit., p. 68)

Revelados todos estes elementos dos dois primeiros Cursos de Direito do Brasil, Recife e São Paulo, embora eles possuam diferenças, elas não impedem que se comente o pensamento jurídico predominante na época.

O primeiro trabalho jusfilosófico desenvolvido no Brasil é creditado ao poeta inconfidente Tomás Antônio Gonzaga (século XVIII), intitulado Tratado de Direito Natural, que tem por base as idéias jusnaturalistas (WOLKMER, Antonio Carlos. Op. cit., p. 125). Esta informação revela a corrente dominante durante o Império, qual seja, a do jusnaturalismo (OLIVIO, Luis Carlos Cancellier. In: RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Op. cit., p. 60). Esta corrente vê o Direito como o que é justo, pois seria de sua natureza a justiça (BOBBIO, Norberto, Teoria da Norma Jurídica, p. 56). Se inicialmente tal posição parece a ideal, ela esconde vários aspectos conflitantes, como ressalta o grande filósofo italiano:

"Para Kant (e em geral para todos os jusnaturalistas modernos) a liberdade era natural; mas, para Aristóteles, era natural a escravidão. Para Locke, era natural a propriedade individual, mas para todos os utopistas socialistas, de Campanella a Winstanley e a Morelly, a instituição mais adequada à natureza humana era a comunhão de bens."

(BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 56)

Esta indefinição quanto ao que seria natural e ao que seria justo permite que esta corrente jusfilosófica legitime tanto revolucionários quanto conservadores (NADER, Paulo. Op. cit., p. 363).

É o que se vê historicamente, enquanto na França os iluministas vão apoiar-se no Direito Natural para derrubar o poder Absolutista através da Revolução Francesa (1789), no Brasil ele será utilizado para sedimentar as diferenças e as instituições lusitanas que interessavam à monarquia recém estabelecida. Portanto, pode-se dizer que no Brasil os fatores reais de poder fizeram com que o jusnaturalismo se inclinasse ao conservadorismo. Os pensadores também destacam o ecletismo como característica da filosofia jurídica entre 1840-1880 (WOLKMER, Antonio Carlos. Op. cit., p. 126-127). Ele busca unir em um sistema o que era verdadeiro em todos os sistemas, refletindo o mito brasileiro da imparcialidade

Com todas estas características o ensino jurídico do período não permitiu que o estudante analisasse as questões sociais brasileiras, teorias estrangeiras e divagações metafísicas apoderavam-se de seu pensamento.


4. A República e o Dogma Positivista

A República compreende um período significativo da história Brasileira, tem início em 1889 e, após ter passado por momentos democráticos e de intensa ditadura, perdura até hoje. Não interessam aqui fatos que adentrem por demais à contemporaneidade, pois eles desnaturariam a característica de uma analise histórica, por isso será dedicado maior estudo à primeira metade do século XX.

Os historiadores não são unânimes em apontar os fatores relevantes para o fim da monarquia. De qualquer forma: "Duas forças, de características muito diversas, devem ser ressaltadas em primeiro lugar: o Exército e um setor expressivo da burguesia cafeeira de São Paulo, organizada politicamente no PRP" (FAUSTO, Boris, Op. cit., p. 132). Embora o novo regime comece com militares no poder, Marechal Deodoro da Fonseca, na conhecida República da Espada (1889 - 1894), é a oligarquia cafeeira que dominará o Estado, sofrendo um abalo apenas no final da chamada República Velha (1894 - 1930).

Quais foram as modificações que o regime republicano trouxe às Faculdades de Direito tradicionalmente tão ligadas ao Estado? Em 14 de novembro de 1890, através do Decreto nº 1036A, tem-se a supressão da disciplina de Direito Eclesiástico tanto do Curso Jurídico de Recife quanto do de São Paulo, reflexo do rompimento oficial com a Igreja. Lembre-se que durante a monarquia a própria Constituição de 1824 reconhecia os laços do Brasil com a Igreja Católica.

Apesar de adotar o federalismo, na República continuou prevalecendo a política centralizadora quanto ao ensino jurídico (BITTAR, Eduardo C. B., Op. cit., p. 68). Em 1º de fevereiro de 1896, durante a presidência de Prudente de Moraes, passa a vigorar o Decreto nº 2.226 que aprova o Estatuto das Faculdades de Direito da República, trazendo várias disposições sobre o modelo a ser adotado por todas as Faculdades, independente de qual região integrassem. As Faculdades de Recife e São Paulo continuam sendo os pólos difusores do pensamento jurídico da época, porém, em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia, Ceará e em outros estados os cursos de Direito começam a se desenvolver, principalmente após a virada do século:

"O ensino livre propiciou a criação de muitas escolas de Direito e o conseqüente aumento do número de matrículas e de bacharéis, mas não alterou a mentalidade reinante no ensino jurídico, mantidas as deficiências do Império."

(GALDINO, Flávio. In: Ensino Jurídico OAB: 170 anos de cursos jurídicos no Brasil, p. 160)

O começo do século XX marca o declínio da Escola de Recife (WOLKMER, Antonio Carlos. Op. cit., p. 132). Sem dúvida, o Código Civil de 1916, fruto não só do ilustre Clóvis Beviláqua, aluno da Faculdade de Recife, demonstra a importância que sua Escola possuía na época, importância que foi perdendo-se, deixando com que São Paulo obtivesse certa hegemonia no quadro nacional:

"Nos começos do século, entretanto, o abandono da filosofia pela sociologia, de parte de Sílvio Romero e Artur Orlando, ou pelo Direito, no caso de Clóvis Beviláqua, marcariam o declínio e o desaparecimento da Escola do Recife como corrente filosófica."

(PAIM, Antonio Apud WOLKMER, Antonio Carlos. Op. cit., p. 129)

Além das questões internas, o fator econômico também contribuiu para o declínio de Recife. Boris Fausto afirma que já em 1870 estava consolidada a tendência ao desenvolvimento do Centro-Sul, quanto a São Paulo:

"[...] a cidade, que se convertia no centro de negócios cafeeiros e atraía cada vez mais imigrantes, começara uma arrancada de longo alcance, crescendo a uma taxa geométrica anual de 3% entre 1872 e 1886 e de 8% entre 1886 e 1890."

(FAUSTO, Boris, Op. cit., p. 135)

Em relação às outras repercussões da República no ensino jurídico, não houve alteração no corpo discente, mantendo-se o perfil existente no período imperial. O mesmo serve para os professores, que não perderam as características já traçadas: "A República Velha mantém o status da formação jurídica retórica e literária (não técnica), descompromissado com a realidade social e a transformação do país" (GALDINO, Flávio. In: Ensino Jurídico OAB: 170 anos de cursos jurídicos no Brasil, p. 160). Algumas alterações ocorreram em virtude do Decreto nº 2226, destacando-se mudanças na grade curricular.

O ensino superior sofre mudanças significativas na década de 30 com a promulgação do Estatuto das Universidades, (Decreto nº 19.851 de 14 de abril de 1931), no entanto, "não opera efeitos relevantes no ensino jurídico quase hermeticamente fechado às mudanças substantivas" (GALDINO, Flávio. In: Ensino Jurídico OAB: 170 anos de cursos jurídicos no Brasil, p. 160). Assim, o que se vê com a República é a propagação de tudo aquilo que já existia no Império, com pequenas alterações superficiais.

No que pese esta dificuldade de renovação no ensino jurídico:

"No quadro filosófico, até aqui descrito, deve-se mencionar que o interior da formação social foi afetado profundamente na virada do século XIX para o início do século XX, por transformações decorrentes da modificação sócio-político (monarquia-república), do deslocamento no domínio da correlação de forças (senhores de engenho-oligarquia cafeeira agroexportadoras) e das novas estruturas jurídico-políticas, edificadas a partir da implantação do espírito positivista-republicano e da construção de uma ordem liberal burguesa."

(WOLKMER, Antonio Carlos. Op. cit., p. 128)

Esta é a principal transformação nas Faculdades de Direito, a corrente filosófica foi modificada, abandonou-se o jusnaturalismo e passou-se a professar o juspositivismo. Não foi só o Direito que cedeu a nova tendência, a doutrina comtiana se propagou por vários setores, não se restringindo apenas ao Brasil, alcançando amplamente a América Latina (FAUSTO, Boris, Op. cit., p. 130).

Para que não se perca o sentido desta nova doutrina, cabe aqui, citar um breve comentário sobre ela: "O positivismo jurídico, fiel aos princípios do positivismo filosófico, rejeita todos os elementos de abstração na área do Direito, a começar pela idéia de Direito Natural, por julgá-la metafísica e anticientífica" (NADER, Paulo. Op. cit., p. 370).

Em um primeiro momento:

"[...] é razoável aludir que, diante do conservadorismo projetado pelo jusnaturalismo tomista-escolástico, a nova proposição jurídica delineada pelo positivismo (tanto em sua vertente do monismo evolucionista, quanto na do sociologismo naturalista) representava uma forma de pensamento mais adequada às novas condições econômicas advindas das transformações trazidas pela República."

(WOLKMER, Antonio Carlos. Op. cit., p. 130)

Enfim, o positivismo significava renovação, fim dos dogmas ultrapassados que atravancavam o desenvolvimento nacional.

Esta postura filosófica sofre um abalo após a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945). No Brasil, o reflexo disto é a fomentação do Culturalismo Jurídico, defendido principalmente pelo professor Miguel Reale:

"O Culturalismo Jusfilosófico, que teve grande impulso no Brasil após a Segunda Grande Guerra, inspirando-se em Kant e considerando-se herdeiro de Tobias Barreto, busca reorientar as diversas tradições filosóficas nacionais rumo a uma interlocução centrada nos valores, na pluralidade e no mundo da cultura."

(WOLKMER, Antonio Carlos. Op. cit., p. 136)

Além disso, o próprio ensino jurídico é criticado nesta mesma época pelo professor San Tiago Dantas, em:

"[...] sua nova didática, coloca em segundo plano o estudo sistemático e descritivo dos institutos, e propõe a substituição das aulas expositivas pelo case system, estudos de casos orientados para a formação do raciocínio jurídico, voltando os olhos dos que trabalham o Direito para as relações sociais."

(GALDINO, Flávio. In: Ensino Jurídico OAB: 170 anos de cursos jurídicos no Brasil, p. 161)

Têm-se várias ofensivas na tentativa de oxigenar o Direito, e o seu ensino. Estas tentativas continuarão na outra metade do século XX, o que proporcionará uma ou outra alteração superficial, que, no entanto, não reformulará as bases do ensino jurídico.


5. Conclusão.

Quem segue uma visão dialética de mundo sabe que todos os elementos estão interligados. Somos hoje o reflexo de tudo aquilo que já foi. Olhando o passado do ensino jurídico acabamos tendo muito mais medo do que orgulho. Será que suas mazelas diluíram-se com o tempo, ou elas ainda estão em todos nós? Como se livrar de toda esta carga genética viciada? Aqui buscamos um racionalista, René Descartes, que sempre de tudo duvidou, e que disse: "[...] considerando que todos os pensamentos que temos quando acordados também nos podem ocorrer quando dormimos, sem que nenhum seja então verdadeiro, resolvi fingir que todas as coisas que haviam entrado em meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos" (DESCARTES, René, Discurso do Método, p. 38).. questione e critique, este é o caminho...


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITTAR, Eduardo C. B. Direito e ensino jurídico: legislação educacional. São Paulo: Atlas, 2001.

BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. 2. ed. Bauru, SP: EDIPRO, 2003.

DESCARTES, René, Discurso do Método, São Paulo: Martins Fontes, 1996.

ENCICLOPÉDIA BARSA, Vol. 5, São Paulo: Encyclopaedia Britannica, 1989.

FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 2002.

NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Conselho Federal. Ensino Jurídico OAB: 170 anos de cursos jurídicos no Brasil. Brasília, 1997.

RODRIGUES, Horácio Wanderlei (ORG). Ensino jurídico: para que(m)?. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2000.

WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RUZON, Bruno Ponich. Filhos de Coimbra. Uma história do ensino jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1201, 15 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9039. Acesso em: 17 abr. 2024.