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Nulidade processual

Nulidade processual

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A anulação de processos importa, não raro, gravame para a Justiça. Às vezes, porém, é mal necessário, por evitar o sacrifício da liberdade e a violação do direito de defesa.

I. A prova do prejuízo é o padrão por que se deve aferir o alcance da alegação de nulidade processual. Dispõe, com efeito, o art. 563 do Código de Processo Penal que “nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”.

Anular, portanto, um ato ou todo o processo, por preterição de formalidade que não influiu na apuração dos fatos ou na decisão da causa, será render exagerado preito de vassalagem à lei e imolar na ara do frívolo curialismo[1].

Ao demais, é matéria sempre de grande repugnância isto de anular processo penal, pois que representa perda irreparável para o Poder Judiciário. Muita vez, contudo, é força decretar-lhe a nulidade (v.g., nos casos de vício de citação).

De outra forma, sacrificar-se-ia o direito de defesa, que é a coluna do templo da Justiça e a lâmpada de seu santuário.

Há, sobre o tema, lição memorável de José Frederico Marques, processualista exímio:

“Muita prudência, portanto, deve guiar o juiz quando tenha de encarar o problema das nulidades no processo penal. Postergar, de maneira categórica, a relevância das formas processuais, para atender tão só ao aspecto teleológico do ato, pode redundar em violação aberta do direito de defesa. É que a observância das formas, na justiça penal, constitui, muitas vezes, o instrumento de que a lei se vale para garantir o jus libertatis contra as coações indevidas e sem justa causa” (Estudos de Direito Processual Penal, 2a. ed., p. 267; Millennium Editora Ltda.).

II. Foi por essa craveira, ajustada à lição da doutrina mais bem recebida e ao magistério tradicional da Jusprudência, que o Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, por sua 15a. Câmara, decretou a nulidade de processo, por vício de citação:

PODER JUDICIÁRIO - Tribunal de Alçada Criminal - Décima Quinta Câmara

“Habeas Corpus” nº 459.240/2- Comarca: São Paulo

Impetrante: Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo (OAB/SP)

Paciente: RMPM

Voto nº 5400

Relator

–  O exame de provas no âmbito do “habeas corpus”, para a verificação da falta de justa causa para a ação penal, tem sido pábulo de tormentosas disputas. Mas, a inteligência que, de presente, prevalece a tal respeito, assim na Doutrina como na Jurisprudência, é a que, embora incompatível o processo de “habeas corpus” com o contraditório ou ampla indagação probatória, tem lugar o exame dos elementos dos
autos, “para avaliar-se da legalidade ou ilegalidade da ação penal” (cf. Rev. Tribs., vol. 491, p. 375; rel. Min. Costa Lima).

– “Exame de provas em habeas corpus é cabível desde que simples, não contraditória e que não deixa alternativa à convicção do julgador” (STF; HC; rel. Min. Clóvis Ramalhete; DJU 18.9.81, p. 9.157).

–  Não se aperfeiçoa a relação jurídico-processual sem a citação válida do réu. É a lição dos patriarcas do Direito: “O princípio e fundamento de toda a ordem jurídica é a citação, de sorte que sem ela se não pode tomar conhecimento de causa alguma” (Alexandre Caetano Gomes, Manual Prático Judicial Civil e Criminal, 1820, p. 3); “A citação é tão essencial que nem o Príncipe a pode dispensar” (Cons. Ramalho, Postilas de Prática, 1872, p. 71).

– “É nula a citação por edital, quando desprezadas as cautelas habituais para apurar o paradeiro do acusado” (Rev. Forense, vol. 161, p. 349).

– É sempre matéria de grande repugnância anular processo penal, pois que representa perda irreparável para o Poder Judiciário. Muita vez, porém, é força decretar-lhe a nulidade, por vício de citação do réu. De outra forma, sacrificar-se-ia o direito de defesa, e este é a coluna do templo da Justiça e a lâmpada de seu santuário!

1. A Ordem dos Advogados do Brasil – Secção de São Paulo, por intermédio do ilustre advogado Dr. Laertes de Macedo Torrens, impetra a este Egrégio Tribunal “Habeas Corpus” em favor da Dra. RMPM, que lhe ponha cobro ao constrangimento ilegal que afirma está a padecer da parte do MM. Juízo de Direito da 6a. Vara Criminal da Comarca da Capital.

Alega a impetrante, em esmerada e substanciosa petição, que a paciente está sendo processada perante aquele douto Juízo, acusada de ter praticado crime de apropriação indébita.

Acrescenta que, recebida a denúncia, a mui digna autoridade judiciária indicada como coatora ordenou a citação da paciente.

Mas — acentua a impetrante —, como o encarregado da diligência certificasse que a paciente se estava ocultando para não ser citada, houve a bem o douto Juízo determinar-lhe a citação por edital, na forma do art. 362 do Código de Processo Penal.

Visto não comparecera à audiência de interrogatório, foi-lhe decretada a revelia.

A ação penal entrou a correr os seus trâmites.

A paciente, assistida da Seccional Paulista da Ordem dos Advogados do Brasil, comparece perante esta augusta Corte de Justiça, com o escopo de obter ordem de “habeas corpus” para conjurar o que denomina constrangimento ilegal.

Tem para si a impetrante que o processo instaurado contra a paciente se acha malferido de nulidade essencial, por defeito de citação. Ajunta que o oficial de justiça não se houvera com toda a diligência e rigor no cumprimento do mandado de citação da paciente.

Argui também de nulo o feito porque o MM. Juízo não mandara incluir no auto de chamamento a possibilidade de outorga da suspensão do processo, nos termos do art. 89 da Lei nº 9.099/95.

À derradeira, assevera que a paciente está sofrendo coação em seu direito deambulatório por falta de justa causa para a “persecutio criminis in judicio”.

Pleiteia, destarte, o trancamento da ação penal por falta de justa causa ou a decretação da nulidade do processo, por vício de citação (fls. 2/10).

O pedido acompanha-se de numerosas cópias de peças processuais e outros documentos de interesse da ação de “habeas corpus”.

A egrégia Vice-Presidência do Tribunal, pelo r. despacho de fl. 70, proferido pelo eminente Juiz Eduardo Pereira deferiu a medida liminar “para suspender o andamento do feito até que a colenda Câmara se pronuncie definitivamente”.

A mui digna autoridade judiciária apontada como coatora prestou as informações do estilo, nas quais esclareceu que a paciente foi denunciada como incursa nas penas do art. 168, § 1º, nº III, do Código Penal.

Informou ainda que, recebida a denúncia e em tramitação o processo, desapareceram os respectivos autos do cartório. Foram, todavia, restaurados, nos termos do art. 541 do Código de Processo Penal.

Narrou ainda a distinta Juíza que a paciente foi procurada em cinco diferentes endereços, e em nenhum deles encontrada; pelo que, em face da informação do meirinho de que se estava ocultando para não ser citada, determinou Sua Excelência que o fosse por éditos.

O não-comparecimento da paciente à audiência de interrogatório implicou-lhe a revelia.

Remata o ofício de informações que os autos se encontram na fase do art. 500 do Código de Processo Penal, aguardando a apresentação de alegações finais pela Defesa (fls. 74/75).

Ao ofício de informações foram acostadas novas cópias de peças processuais (fls. 76/144).

A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em minucioso e abalizado parecer do Dr. Hermann Herschander, reputado expoente de sua Instituição, opina pela concessão parcial da ordem “para determinar-se a suspensão do processo e do lapso prescricional, nos termos do art. 366 do CPP” (fls. 146/154).

O despacho de fl. 160 determinou diligência, cumprida pontualmente pela impetrante (fls. 164/172).

É o relatório.

2. Da denúncia, juntada a estes autos por cópia (fls. 11/12), consta que a paciente, no dia 18 de maio de 2000, no interior do “Banco do Estado de São Paulo S/A”, nesta Capital, apropriara-se indevidamente de coisa alheia móvel, de que tinha a posse em razão de profissão, pertencente à vítima Eleonete Gama dos Santos.

Reza a denúncia que a paciente, advogada de profissão, fora contratada pela vítima para patrocinar-lhe a defesa dos direitos e interesses em ação de consignação em pagamento.

Narra a denúncia ter sido depositada em Juízo, em prol da vítima, a quantia de R$ 183.285,00, que a paciente, na condição de advogada, comparecendo à agência do “Banespa”, munida do mandado de levantamento judicial, transferiu para a conta-corrente do filho (JVPM).

É dos autos ainda que, aos 18 de outubro de 2000, a paciente, em seu escritório, confessara à vítima e a seu contador (Édson de Castro Rodrigues) a prática do ilícito; aduzira, no entanto, que a quantia a ser paga à vítima orçava por R$ 128.541,51.

Ato contínuo, o filho da paciente (JVPM), emitiu cheque daquele valor. A cártula bancária, todavia, foi sustada, sob o argumento de que o negócio não se realizara.

Conclui a peça de introito da ação penal que, em razão do “grande lapso temporal percorrido e do modus operandi, era manifesto que a paciente obrara com o “animus rem sibi habendi”.

Destarte, foi denunciada por infração do art. 168, § 1º, nº III, do Código Penal.

A Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo, impetra agora a este Egrégio Tribunal, ordem de “habeas corpus”, a fim de reparar o injusto gravame que a paciente alega estar sofrendo.

3. Sem embargo dos bons esforços do advogado da impetrante para pôr termo ao litígio, impossível deferir-lhe o pleito de trancamento da ação penal.

Com efeito, no que respeita à alegada falta de justa causa, manifesta lhe é a improcedência.

Mesmo em processo de “habeas corpus”, permite a tradição de nosso Direito o exame de prova, porque antecedente lógico da verificação da existência (ou não) de justa causa para a ação penal.

Doutrina é esta consagrada por acórdãos infinitos de nossos Tribunais, como o persuadem os adiante reproduzidos por suas ementas:

a) “Exame de provas em habeas corpus é cabível desde que simples, não contraditória e que não deixe alternativa à convicção do julgador” (STF; HC; rel. Min. Clóvis Ramalhete; DJU 18.9.81, p. 9.157);

b) “O habeas corpus é o instrumento tutelar da liberdade. No seu exame o Juiz não pode criar obstáculos tais que venham a tornar letra morta a garantia constitucional. Daí que superado o entendimento de, a priori, não se examinar prova. Como, sem vencer esse obstáculo, se poderá afastar o abuso de poder ou ilegalidade da coação? Para se poder concluir sobre a tipicidade ou não do fato é, em certa medida, indispensável examinar a prova em que se baseia a acusação” (Revista do Superior Tribunal de Justiça, vol. 26, p. 95; rel. Min. José Dantas; apud Alberto Silva Franco et alii, Código de Processo Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, 1999, vol. I, pp. 593 e 595).

Exame de matéria de alta indagação (como a que pretende a paciente versar) é, entretanto, vedado no âmbito do “habeas corpus”; só na instância ordinária da dilação probatória tem lugar.

De feito, em razão de seu rito sumaríssimo, na via heroica do “habeas corpus” é defeso proceder a análise de matéria de alta indagação. Isto de haver ou não a paciente obrado com dolo, como se trata de questão que apenas pode ser dirimida na quadra de instrução criminal, não há apreciá-la no raio exíguo do processo de “habeas corpus”.

Trancamento da ação penal por falta de justa causa apenas se admite quando comprovada, ao primeiro súbito de vista, a atipicidade do fato imputado ao réu, ou sua inocência.

Esta, com efeito, é a jurisprudência dominante em nossos Tribunais, em acórdãos notáveis, como o que dou a seguir por sua ementa:

“Somente pode ser reconhecida e afirmada, em sede de habeas corpus, quando os fatos apontados como delituosos são atípicos ou quando a inocência do acusado se manifesta de forma desembuçada, clara, precisa, límpida e incontestável” (Rev. Tribs., vol. 499, p. 488).

4. À derradeira, nossos Tribunais têm decidido, sem quebra, ser inadmissível o trancamento de ação penal por alegada ausência de justa causa, quando se baseia a denúncia em indícios de crime, em tese, e de sua autoria.

Comprovam-no que farte os julgados seguintes:

a) “O trancamento da ação penal, por falta de justa causa, implica reconhecimento de fato atípico, ilegitimidade ad causam ou extinção da punibilidade. Em descrevendo fato amoldável a um tipo legal de crime, havendo, pois, indicação, em tese de delito, inviável encerrar o processo, ou inquérito policial” (STJ; rel. Min. Vicente Cernicchiaro, DJU 14.6.93, p. 11.791);

b) “Não é possível o trancamento de uma ação penal sob a alegação de falta de justa causa, como pretende o recorrente, na via estreita do habeas corpus. É imprescindível a produção de prova na instrução criminal, a fim de se constatar a ocorrência do fato dado como delituoso” (STJ; rel. Min. Pedro Acioli; DJU 25.10.93, p. 22.511; apud Alberto Silva Franco et alii, op. cit., 1999, vol. I, pp. 1.271 e 1.274).

Não evidenciado, à prima face, o constrangimento ilegal que afirma está a sofrer por falta de justa causa, não cabe o trancamento da ação penal.

5. No que tange, porém, ao outro fundamento da impetração — nulidade do processo por vício de citação da paciente —, tenho-o por mui atendível.

Com efeito, os documentos entranhados ultimamente nos autos (fls. 164/173) comprovam que a paciente residia, sem dúvida, na Rua Santo Eufredo (Jardim Guedala). Aí, embora a tivesse procurado para citação, informou o oficial de justiça que estava “o local em reforma” (fl. 94).

Mas, o estar “em reforma” um imóvel e servir a um tempo de residência a seu proprietário não são ideias que se implicam nem excluem.

Era mister, pois, que outras vezes o encarregado retornasse àquele endereço para dar cabal cumprimento à diligência. Tal preterição induziu, inegavelmente, nulidade ao processo.

6. Da importância da citação escreveram graves autores páginas antológicas.

O doutíssimo Conselheiro Ramalho afirmou, com suma autoridade: “A citação é o princípio e o fundamento do juízo”.

Ainda:

“A citação é tão essencial, que nem o Príncipe a pode dispensar” (Postilas Práticas, 1872, 2a. ed., p. 71).

De Alexandre Caetano Gomes temos a lição clássica:

“E já Deus Senhor nosso, no primeiro processo que julgou no mundo, quando quis punir a primeira culpa, usou da citação em Adão delinquente: Ubi es, Adam? (Manual Prático, 1820, p. 4).

E o saudoso José Frederico Marques discorreu do ponto por este feitio:

“Por ser elemento integrante do contraditório e substancial ao exercício do direito de defesa, a citação é tão indispensável que a sua falta não fica sanada sequer com a res judicata. Cabe, assim, habeas corpus contra sentença condenatória proferida em processo onde faltou a citação, por ser ele manifestamente nulo, como o prevê o art. 648, nº VI, do Cód. de Proc. Penal” (Elementos de Direito Processual Penal, 1965, vol. II, p. 176).

Pelo mesmo teor, a jurisprudência do Colendo Supremo Tribunal Federal:

a) “É nula a citação por edital, quando desprezadas as cautelas habituais para apurar o paradeiro do acusado” (Rev. Forense, vol. 161, p. 349);

b) “O oficial de justiça deve procurar o acusado para citá-lo no endereço por este indicado quando foi interrogado. Não o encontrando, deve esgotar todos os meios possíveis para sua localização. E só depois disso é que deve ser declarado, para fins de citação por edital, em lugar incerto e não sabido” (Rev. Tribs., vol. 726, p. 613; rel. Min. Edson Vidigal).

Daqui por que é forçoso decretar a nulidade do processo desde a citação; o que faço com grande repugnância, pois a anulação de processo representa sempre perda irreparável para o Poder Judiciário.

De outra forma, porém, sacrificar-se-ia o direito de defesa, e este é a coluna do templo da Justiça e a lâmpada de seu santuário!

7. Pelo exposto, acolho parcialmente o pedido de “habeas corpus” para conceder à paciente a ordem impetrada, a fim de anular, a partir da citação, o processo a que responde perante o MM. Juízo de Direito da 6a. Vara Criminal da Comarca da Capital (proc. nº 00/098225).

São Paulo, 17 de março de 2004

Carlos Biasotti

Relator


[1]   “O projeto não deixa respiradouro para o frívolo curialismo, que se compraz em espiolhar nulidades. É consagrado o princípio geral de que nenhuma nulidade ocorre se não há prejuízo para a acusação ou a defesa” (Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, nº XVII).


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIASOTTI, Carlos. Nulidade processual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6671, 6 out. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/93698. Acesso em: 20 abr. 2024.