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Relação de causalidade no Direito Penal: uma contribuição

Relação de causalidade no Direito Penal: uma contribuição

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Reza o nosso Código Penal, em seu art. 13, caput: "O resultado de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido". Adotou-se, portanto, no ordenamento penal brasileiro, a Teoria da Equivalência dos Antecedentes Causais, ou Teoria da CONDITIO SINE QUA NON, adaptada, de Stuart Mill, por Von Buri (1), no que tange à relação de causalidade entre os fatos ocorridos e o resultado.

Mas, qual o significado desta teoria? Nas próprias palavras de Von Buri: "não é possível distinguir entre condições essenciais e não essenciais ao resultado, sendo causa do mesmo todas as forças que cooperam para a sua produção, quaisquer que sejam" (2). Assim, são elencados em um mesmo nível de causalidade todos os acontecimentos que mantém relação lógico-naturalística com o resultado. Apelemos para a clareza de Nelson Hungria: "A questão da causalidade é resolvida na órbita exclusiva do elemento material do crime, isto é, no estrito limite da ação ou omissão e o resultado. Em face do art. 11, caput do Código (então) vigente, é sempre integral e solidariamente responsável pelo resultado concreto, do ponto de vista lógico-causal, a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido" (3). Voltando nossa atenção, mais uma vez, à afirmação de Von Buri, não haveria, no que diz respeito à relação de causalidade, diferenças ontológicas entre os diversos fatos ocorridos, isto é, não haveria como diferençar "condições essenciais e não essenciais" (4). É novamente o grande mestre Hungria quem melhor nos coloca a questão: "Nada importa que haja cooperado, com a ação ou omissão, para o advento do resultado, outra força causal (concausa). Nenhuma diferença existe entre causa e concausa, entre causa e condição, entre causa e ocasião" (5).

Então, como regra geral, para descobrir se certo acontecimento é causa de um determinado resultado, basta suprimi-lo mentalmente da linha causal; se chegarmos à conclusão de que o resultado in concreto não teria ocorrido, contrario sensu ao caput do art. 13 de nosso Código, não poderemos considerá-lo causa do resultado (a esta operação mental dá-se o nome de Procedimento Hipotético de Eliminação de Thyren).

Deste primeiro contato com o assunto, seríamos levados a supor, e.g., que em face de um resultado morte por disparo de arma de fogo, tudo aquilo que se coloca em sua linha de desdobramento causal seria considerado causa: a venda da arma, a venda da munição, as diversas fases de produção desses objetos, as fases de confecção dos produtos intermediários (ligas e juntas de ferro e aço), etc., um verdadeiro regressus ad infinitum. Conseqüentemente, estaríamos frente a uma infindável relação de eventos que constituem-se em causas do resultado morte, pois "relacionados ao evento, tal como este ocorreu, foram todas igualmente necessários, embora qualquer delas, sem o concurso das outras, não tivesse sido suficiente" (6) (daí, portanto, esta teoria também ser chamada de Teoria da "conditio sine qua non").

Ressalte-se que, para a análise até aqui elaborada, mantivemo-nos, unicamente, na análise da Causalidade Objetiva (imputatio facti), isto é, na necessária relação fática, entre eventos, para a produção do resultado. Para Hungria: "a teoria em questão é a preferível dentre todas as formuladas sobre a causalidade física, pois serve a uma solução simples e prática do problema" (7). É aqui que se revela o acerto de sua adoção pelo legislador pátrio: a Teoria de Equivalência dos Antecedentes Causais visa, simplesmente, a responder a pergunta formulada em termos de nexo objetivo de causalidade – quais são as causas de determinado resultado? -, não vai além do que o mero encadeamento de acontecimentos.

Voltemos ao grande mestre: "a equivalência dos antecedentes causais é um irrefutável dado de lógica, e nada impede que seja reconhecido na esfera jurídico-penal, desde que se não confundam a causalidade objetiva e a causalidade subjetiva, imputatio facti e a imputatio juris" (8); ou na linguagem simples do Professor Damásio de Jesus: "a teoria da equivalência dos antecedentes, porém, não leva a excessos...o sujeito não responderá por crime em face da ausência de dolo e culpa" (9). Não mais há que se falar em relações puramente causais (objetivas) entre a conduta do agente e o resultado produzido. Dentro da mais moderna teoria sobre a conduta humana, a Teoria Finalista da Ação, desenvolvida por Hans Welzel, temos que: "A ação está constituída pela direção do suceder real, pelo desejado pelo agente, por interposição de componentes determinantes. A ação é uma atividade final humana...A finalidade se baseia em que o homem, consciente dos efeitos causais do acontecimento, pode prever as conseqüências de sua conduta...Conhecendo a teoria da causa e efeito, tem condições de dirigir sua atividade no sentido de produzir determinados efeitos" (10). Em nosso singelo exemplo, apesar da objetiva relação de causalidade entre a venda e produção da arma e o resultado morte, tanto o produtor quanto o comerciante do produto, por não conduzirem-se com dolo ou culpa para a produção do resultado, não viriam a cometer crime algum.


A superveniência de causa relativamente independente

O primeiro parágrafo do art. 13 nos diz que: "a superveniência de causa independente exclui a imputação quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou". Admite, o referido mandamento legal, a interrupção do nexo causal (11) entre a conduta do agente e o resultado, sob determinadas hipótese, quais sejam: a) a causa que produza o resultado seja superveniente à conduta do agente, isto é, ocorra depois de sua ação; b) que a causa superveniente seja relativamente independente da conduta do agente, isto é, mantenha relação com a conduta inaugurada pelo autor; c) que a causa superveniente independente produza o resultado por si só, isto é, seja causa bastante para a produção do resultado. Exemplifiquemos. Tício ministra veneno mortal a Caio, que, socorrido por uma equipe de médicos e enfermeiros, vem a morrer, poucos minutos após a ingestão da substância, em função de acidente sofrido pela ambulância a caminho do hospital. Encontram-se aqui todas as características elencadas acima: a) o acidente com a ambulância que transportava Caio ocorreu após a ingestão do veneno ministrado por Tício (superveniência); b) o acidente não teria acontecido se Caio não tivesse sido envenenado por Tício (independência relativa); c) as lesões causadas pelo acidente foram determinantes para a morte de Caio ("por si só"). Tício responderá pelos fatos que praticou, a saber, tentativa de homicídio.

Não obstante, caso somente aplicássemos o caput do art. 13 ao caso em tela, Tício seria responsável pela morte de Caio uma vez que, eliminando-se o envenenamento, o acidente da ambulância, que provocou a morte de Caio, não teria ocorrido; logo é causa. Neste mesmo caminho, observamos que a conduta de Tício foi dolosa (agiu com intenção de produzir o resultado morte). No entanto, a intenção homicida, materializada por sua conduta de ministrar o veneno e daí resultar a morte de seu desafeto, não se completa em uma linha causal única, direta. Necessitava, o legislador, criar uma diferenciação no tratamento desta "nova" relação causal, uma vez que a linha de desenvolvimento desejada pelo agente "veneno => morte por envenenamento" foi interrompida, e, a partir dela, criou-se um novo curso de acontecimentos (relativamente independente da anterior), "acidente => morte em função das lesões sofridas". Assim, tendo em vista o disposto no §1º do art. 13, muitos autores falam em "abrandamento" ou "temperamento" da Teoria de Equivalência dos Antecedentes Causais (12). Claro está na abordagem feita por grandes penalistas "que as causas preexistentes e concomitantes, quando relativamente independentes não excluem o resultado" (13).

No entanto, mesmo revelando ser esta uma posição minoritária, parte da doutrina considera que o mandamento legal em tela revelaria não uma determinação de "abrandar", exclusivamente, situações em que houvesse superveniência de causa relativamente independentes. Vão além. Afirma-se "que houve uma lacuna involuntária da lei no art. 13, §1º" (14), isto é, quando da existência de causas preexistentes e concomitantes, poderia haver, por interpretação analógica, o mesmo tratamento dado pelo preceito legal, no que diz respeito à interrupção do nexo causal. Vamos a dois exemplos (15): a) Tício atira em Caio, errando os disparos, mas a vítima morre do coração devido a um problema coronário de nascença, pois o susto desencadeou a taquicardia capaz de matar; b) Tício persegue Caio na via pública, atirando contra o mesmo, sendo que Caio vem a ser atropelado enquanto foge, morrendo em decorrência do atropelamento. De acordo com a interpretação dada pelo nosso Código Penal, no primeiro exemplo a causa que por si só produziu a morte de Caio (problema cardíaco) é preexistente à conduta de Tício, que responderá por homicídio doloso; note-se que o resultado "morte de Caio" decorre diretamente da conduta de Tício, isto é, Caio só vem a falecer por ação direta de Tício, pois são os disparos da arma que lhe causam o distúrbio cardíaco. No segundo caso, a causa que por si só produziu o resultado - atropelamento - é superveniente à conduta de Tício, ela poderia não ter ocorrido e Caio teria sido morto pelos disparos causados por Tício ou, se tivesse conseguido escapar, estaria vivo! Logo, estamos diante de uma hipótese de incidência do §1º do art. 13, onde Tício responderá pelo atos praticados, isto é, tentativa de homicídio.

Sustentam os defensores da tese de utilização da interpretação analógica in bonam partem, que este "benefício" seria concedido nos "casos em que o agente desconhecesse a concausa preexistente ou concomitante provocadora do resultado..(pois)...em outras situações estaríamos gerando certa injustiça" (16). Voltemos aos exemplos. Quando Tício, no primeiro exemplo, com necandi animo, atira em Caio, quer, efetivamente, a sua morte; presentes estão os requisitos do dolo, a consciência de sua conduta e sua significação e a vontade de produzir o resultado. Inicia os atos de execução do crime (possui consciência da relação causal entre sua conduta "atirar" e o resultado "morte") e, efetivamente, vem a produzir o resultado, muito embora não da forma que pretendia; seria razoável exigir-lhe que se tivesse conduzido de acordo com a norma jurídica vigente (NÃO MATAR), além de possuir plena consciência da ilicitude de sua ação. Não há que se falar em injustiça quando de sua tipificação como homicídio doloso, pois presentes estão todos os requisitos/elementos que caracterizam assim a conduta e atestam sua culpabilidade. Já no segundo exemplo, suprida in mente o acidente fatal (atropelamento), estaríamos diante de um número infindável de hipóteses que poderiam ter acontecido (a fuga de Caio, o seu atropelamento não ter resultado em sua morte, sua morte em função dos disparos realizados), porém, subsiste a tentativa de homicídio praticada por Tício, este é um fato da realidade, não uma outra hipótese! Há, então, uma clara diferença entre um e outro fato, exigindo-se do legislador pátrio tratamentos distintos, no tocante às condutas, pelo ordenamento jurídico.

Vejamos outros exemplos: a) Tício, mesmo sabendo ser Caio cardiopata, tendo certeza de que sua conduta não virá a provocar sua morte, aplica, em Caio, um terrível susto, vindo este a falecer vítima de um infarto fulminante; b) Tício, não sabendo ser Caio cardiopata, ministra-lhe remédio para descongestionar-lhe as vias respiratórias, porém acelera-lhe o batimento cardíaco e Caio vem a sofrer um infarto fulminante; c) Tício, sabendo ser Caio cardiopata e desejando o resultado morte, o expõe, deliberadamente, a situação da alta tensão emocional (criada por ele mesmo, Tício), vindo Caio a sofrer um infarto fulminante. Para cada uma dessas situações, teríamos uma situação jurídico-penal distinta para Tício. No primeiro exemplo, a conduta de Tício poderia ser tipificada como homicídio culposo; no segundo caso, não haverá crime; na terceira hipótese, haveria homicídio doloso.

Note-se que em todas as soluções apresentadas, o simples estabelecimento do nexo de causalidade entre a conduta de Tício e o resultado "morte de Caio" não são suficientes para resolvermos o problema. Há de se analisar, como estabelece a doutrina, os demais elementos do fato típico (além do nexo de causalidade e do resultado morte). Cabe ainda analisarmos se a conduta humana é dolosa ou culposa e, também, a subsunção do fato à norma penal incriminadora - tipicidade. Voltemos aos nossos exemplos: no primeiro caso, Tício agiu com culpa consciente (o agente esperava levianamente que o resultado não ocorresse); no segundo não houve dolo nem culpa na conduta de Tício, sendo, portanto, o fato atípico; na terceira houve dolo, com consciência e voluntariedade no preparo da situação que causou o resultado morte.

Não restam dúvidas que soluções apoiadas exclusivamente no estabelecimento de um nexo de causalidade objetivo entre conduta e resultado e na simples existência do próprio resultado, que são características necessárias, mas não suficientes, para se construir o fato típico, cometem grave erro no que diz respeito a sua formação completa. Dada a superação da Teoria Causal da conduta humana e da Responsabilidade Penal Objetiva, não poderíamos aceitar, em nenhuma das três hipóteses acima colocadas, o mesmo desfecho jurídico-penal para Tício. Outrossim, além do fato típico, também a antijuridicidade e a culpabilidade (e, para alguns autores, também a punibilidade) são requisitos para a existência do crime, estendendo-se, então, a análise para conceitos como a ilicitude do fato e sua reprovabilidade social. Não há, como querem alguns autores, que "o agente do delito, que praticou a conduta superveniente menos grave, responda pelo resultado mais grave, mesmo que este seja indesejado" (17). Tal conclusão não se sustenta.


Notas

  1. Conforme citado por Nelson Hungria, em seu Comentários ao Código Penal, Vol. I, Tomo II. Editora Forense, 5ª edição. 1978. Rio de Janeiro. Página 65.
  2. Damásio de Jesus, citando Heleno Cláudio Fragoso ("Conduta Punível"). Direito Penal, 1º Volume - Parte Geral. Editora Saraiva. 20ª edição. 1997. São Paulo. Página 248, nota de pé de página n.º 1.
  3. Hungria, Nelson, ob. cit. página 65.
  4. Algumas teorias explicativas do nexo de causalidade diferenciavam causa e condição, ou estabeleciam certa distinção no tocante a sua eficiência para a produção do resultado (Teoria da Causalidade Adequada e Teoria de Eficiência).
  5. Ob. cit. página 65.
  6. Hungria, Nelson, ob. cit. página 65.
  7. Ob. cit. Página 66.
  8. Hungria, Nelson ob. cit. página 66 (grifo nosso).
  9. Ob. cit. Página 251.
  10. Jesus, Damásio de, ob. cit. página 232.

  11. Para alguns autores (Damásio, 1997) não há interrupção do nexo de causalidade, mas apenas uma nova linha de desdobramento físico da ação, autônoma em relação àquela iniciada pelo agente.

  12. Neste sentido, Nelson Hungria, ob. cit., página 68.

  13. Jesus, Damásio de, ob. cit. página 256.

  14. Mesquita Júnior, Sídio Rosa de. Relação de Causalidade no Direito Penal. Texto concluído em julho de 1999, publicado no site "www.jus.com.br" (grifo nosso).

  15. Exemplos propostos pelo Professor Mesquita Júnior.

  16. Mesquita Júnior, Sídio Rosa de, ob. cit. (grifo nosso).

  17. Mesquita Júnior, Sídio Rosa de, ob. cit.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PARANHOS, Bruno dos Santos. Relação de causalidade no Direito Penal: uma contribuição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 45, 1 set. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/960. Acesso em: 25 abr. 2024.