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O processo como espaço jurídico-discursivo e a contextualização do justo na democraticidade

O processo como espaço jurídico-discursivo e a contextualização do justo na democraticidade

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O processo como espaço jurídico-discursivo e a contextualização do justo na democraticidade


            A concepção do instituto do Processo no contexto do Estado Democrático de Direito diferencia-se, em muito, daquela adotada em outros paradigmas, eis que, embora como os outros, pressuponha pensamento crítico acerca do que lhe é pretérito, exige um rigorismo técnico-científico apto a desbancar determinadas ideologias, o que se dá como conseqüência lógica da busca pela compreensão dos objetivos do Processo na contemporaneidade.

            Há algum tempo, tem-se assistido ao fenômeno denominado "declínio da Teoria da Relação Jurídica". Concebida pelo Direito Italiano e pelas Ordenações do Reino, mas sistematizada por Oskar Von Bülow, em 1868, no seu livro "Teoria dos Pressupostos Processuais e das Exceções Dilatórias", a "Teoria do Processo como Relação Jurídica", que identifica duas espécies de relações entre as partes – uma de ordem material e outra de ordem processual -, através da distinção entre seus sujeitos, objetos e pressupostos, apesar de, ainda, ser a mais largamente adotada, tem sido encarada com reservas por parte da doutrina.

            Na Itália, essas críticas partem de Elio Fazzalari, pela "Teoria da Reabilitação do Procedimento", segundo a qual o instituto do processo há de ser visto como Procedimento realizado em Contraditório; no Brasil, de autores como Aroldo Plínio Gonçalves, por sua obra "Técnica Processual e Teoria do Processo", e Rosemiro Pereira Leal, que, através da "Teoria Neo-Institucionalista", concebe o Processo como uma instituição constitucionalizada.

            As objeções à Teoria da Relação Jurídica se devem, principalmente, ao fato de a mesma ser notadamente calcada em postulados do Estado Liberal, mormente a autonomia da vontade, que inadmite a existência de direitos sem sujeitos, estes, considerados em posições antagônicas.

            Tal concepção, embora se tenha espraiado para todos os ramos do Direito, vem perdendo força, eis que têm surgido situações jurídicas, cujos fundamentos se afastam da clássica idéia reducionista do Direito a meras relações entre sujeitos.

            No Brasil, em meados dos anos 40, na Faculdade do Largo de São Francisco, Liebman deu sua importante contribuição à Processualística Brasileira, iniciando a intitulada "Escola Instrumentalista do Processo" ou "Escola Processual de São Paulo", que embebe as linhas teóricas do Processo como Relação Jurídica.

            Segundo os seguidores desta corrente de pensamento, a natureza pública do Processo, prévia e eminentemente concebido como relação entre sujeitos, dá-se, tão somente, pela posição soberana que o Estado-juiz assume em relação às partes. O instituto do Processo, uma vez presidido por juízes sábios e imbuídos do senso de justiça, seria o meio através do qual a lei material atuaria e solucionar-se-iam as controvérsias, no sentido de se promover a paz social. Assim, em conformidade com os instrumentalistas, a atuação da lei material e a pacificação com justiça seriam os principais escopos do instituto.

            Desde então, doutrina e jurisprudência, no afã de alcançar o conceito de justiça herdado do Instrumentalismo, foram instadas a refletir de forma intensa sobre a efetividade do Processo por um viés teleológico, diferenciando-o do procedimento, que passou a ser definido como uma sucessão de atos.

            Acontece que as críticas, principalmente as advindas de Elio Fazzalari, dispensadas à Escola Instrumentalista, apontam para outra direção, pois o Processo passa a ser concebido como uma das espécies de procedimento, só que dotado de importante diferencial, o Contraditório.

            As perguntas que se fazem, atualmente, são as seguintes: há justiça no procedimento realizado em contraditório, mesmo quando as partes não logram êxito na consecução de seus objetivos, embora estejam acompanhadas dos respectivos patronos, sejam respeitados os princípios constitucionais e se tenham por esgotados todos os meios processuais legais para a aquisição do bem da vida a que visavam? Seriam a pacificação social pela solução das controvérsias e a atuação da lei material, na atualidade, os reais fins do Processo, tal como pretendem os instrumentalistas? Ou a finalidade do Processo se faz atingida pela observância das garantias do due process of law, ainda que, a despeito disso, in concreto, não sejam assegurados os direitos previstos pela lei material?

            Primeiramente, vale dizer que a "Justiça" há de ser perseguida, organizada e distribuída, menos como um ideal - algo cujo ponto máximo, sempre longínquo, é abstratamente considerado - que como um conceito constitucionalmente contextualizado.

            O vislumbre do conceito de Justiça como ponto longínquo, um ideal, pode conduzir-nos a posições extremadas, decorrentes de ideologias autoritárias, que estribadas nos Princípios da Legalidade e da Igualdade, rechaçam a possibilidade de decisões divergentes entre si. Explique-se. Há autores, a exemplo de Wambier (1998), que, para defenderem a tese da constitucionalidade do precedente vinculativo, entendem absurda a Súmula 400 do STF - a qual admite a existência de várias interpretações de texto de lei infraconstitucional -, por conceberem que a observância da isonomia constitucional decorre da unicidade de interpretação. Ou seja, além de, erroneamente, suporem que os órgãos superiores titulam as mais acertadas decisões, querem atribuir a estas o efeito vinculante, pois, equivocadamente, concebem-nas como engendradas por uma tal "melhor interpretação", que, por entenderem ser a única aplicável, seria apta a extirpar as ditas inadmissíveis incongruências entre as decisões. Pensam que, se o Estado é Democrático de Direito, não há tratamento isonômico quando os pretórios têm entendimentos diversos acerca de situações fáticas que eles denominam idênticas. Querem, num passe de mágica, solucionar as más conseqüências advindas do relaxamento do Estado, com medidas abolidoras da legalidade, e, sobretudo, atropelando mandamentos da Constituição democrática, a qual prima pelo devido processo legal como condição sine qua non à lisura do provimento. Como sói acontecer, corrompem o Princípio da Isonomia com compreensões destorcidas, e discutem, de forma não constitucionalmente contextualizada, o atributo da justiça, pois desejam atingi-la de forma atécnica e ajurídica, movidos que estão pela crise da razão.

            A respeitável autora reputa ser, a vinculação, salutar, somente quanto às questões de direito, teses jurídicas, por considerar temerária a sumulação de matéria fática, dado o caráter multifário do plano empírico. A incongruência de seu discurso salta aos olhos, quando ressalta a inaplicabilidade da Súmula de efeito vinculante, no que respeita a matérias acidentárias e de família, que, como é sabido, representam fatias consideráveis da praxe judiciária.

            Ora, se uma das causas da adoção da vinculação é a necessidade de desafogamento dos órgãos do Poder Judiciário, uma vez atestada a não aplicabilidade da vinculação quanto às citadas matérias, não teria o precedente, a nosso ver, expressiva utilidade.

            A contextualização do "justo" na constitucionalidade democrática faz-se, não só por sua atrelação ao modelo de Estado eleito pelo povo soberano, como também pelo questionamento amplo e irrestrito sobre a validade das espécies legislativas – sobretudo das Emendas Constitucionais e Medidas Provisórias -, através do controle difuso da constitucionalidade, bem como do concentrado, cujo rol de legitimados, diga-se de passagem, merece reparos, caso se queira garantir um mínimo de participação popular no poder e melhor se vislumbrar a idéia de Justiça mediante ares de democracia.

            Isso porque o dever de oferecer meios para que o cidadão participe da vida política, através das leis, e da jurídica, através do Processo, de forma que neste possa exercer os seus direitos ao contraditório e à ampla defesa, bem como os demais direitos previstos no ordenamento jurídico, é do Estado.

            De forma que merecem reparos conceituais os léxicos do vernáculo pátrio, os quais definem o Judiciário como "um dos três poderes detentores da soberania, ao qual incumbe distribuir justiça e interpretar a Constituição". A uma, porque a soberania é titularizada pelo povo, e a função judiciária é apenas uma das formas legitimamente eleitas de expressão do seu poder, assim como o são a executiva e a legislativa; a duas, porque a interpretação da Constituição e a aferição da constitucionalidade das leis, atos normativos e administrativos, não hão de ser oficialmente delegadas a uma única função estatal, mas a todas elas e, sobretudo, à sociedade, a qual, no que se refere ao âmbito judiciário, não pode ficar à mercê de um provimento atécnico, em que o julgador, fora dos parâmetros da legalidade, conceda à parte o que mais lhe convém, por pensar que a tutela tem fonte na Jurisdição, e não na Lei.

            O mesmo se diga daqueles que equivalem os termos "Justiça" e "Poder judiciário", ou definem aquela como "a faculdade de julgar segundo o direito e melhor consciência". Sim, porque esperar, do Judiciário, posições messiânicas em relação às questões que afligem a sociedade significa tornar-se refém das crises de suas próprias instituições.

            E é o que comumente tem acontecido. Pensa-se em Justiça, mas a aferem pelos critérios do Welfare state, pois a vinculam à figura daqueles, a quem, arbitrariamente, tem-se delegado a função de promovê-la: os juízes, sobretudo aqueles que se encontram no topo da escala hierárquica judiciária. Estes, falaciosamente considerados os investidos da razão, os iluminados, são, apesar da lei legítima, instados, a todo momento, a cumprir um distorcido conceito de justiça, criado por poucos, mas consentido por muitos, como se nem a tripartição das funções do Estado, nem os conteúdos da constitucionalidade e da legalidade, fossem apanágios da real democracia.

            O senso comum, diga-se de passagem, o corpo social e a maior parte dos juristas, ainda presos ao conceito social de Estado, chega ao ponto de confundir a noção de Judiciário com a de Justiça, como se os homens que lidam com esse poder estatal tivessem o dom de sempre acertar, como se fossem dotados de uma capacidade sobre-humana de decidir sem máculas.

            Diz-se que a vaguidão dos conceitos de "ordem jurídica justa", "paz social", "bem comum", dentre outras terminologias, além do descompasso entre a teoria da relação jurídica – de cunho liberal – e a nova realidade democrática que se veio impondo, levou parte significativa da comunidade jurídica a uma dura reflexão sobre a correção, ou não, de se utilizarem fatores metaprocessuais e conceitos jurídicos indeterminados como sustentáculos dos provimentos.

            Embora não se desprezem as ordens política e social como fatores prévios fundantes do ordenamento jurídico, o qual tem como base a Constituição, diz-se que as mesmas é que devem sofrer a regulamentação pelo plano jurídico, e não o oposto.

            Além disso, as finalidades do Processo e da Lei material diferem-se entre si, porque aquele se garante pelo contraditório amplo entre as partes, no intuito de preparação do provimento. O direito material, por sua vez, é que, uma vez permeado por escopos metajurídicos (na verdade, jurídicos, vez que críveis no âmbito da possibilidade jurídica) e submetido ao contraditório amplo, serve de objeto de aplicação pela jurisdição.

            Os conceitos de Processo e de Jurisdição hão de ser jurídicos, por serem encampados pela Ordem constitucional e regidos por uma ordem normativa que acolhe a participação democrática e igualitária das partes na construção dos provimentos.

            Tem-se, desta forma, que a efetividade do Processo passou a ser encarada como uma decorrência lógica da atuação dos Princípios asseguradores dos direitos procedimentais. A matriz, pela nova concepção, é a legalidade prévia, porque a tutela não nasce na Jurisdição, mas na Lei. Esta é que deve comandar aquela, e não o oposto.

            Então, o Processo, seja o legislativo ou o judiciário, no paradigma democrático, será a oportunidade na qual os envolvidos, em franca e ampla discussão, corrigirão, através da conservação dos direitos procedimentais, e com base na legalidade prévia, as eventuais falhas do Ordenamento Jurídico vigente.

            A lisura do provimento depende de um procedimento pautado na observância dos Princípios gerais do Direito Processual e da Ordem Constitucional, porque o direito material a ser assegurado é o concernente ao devido processo legal, de origem constitucional, cuja efetividade é fruto de sua interligação direta com o procedimento previamente estabelecido em lei não eivada de inconstitucionalidade.

            Exsurge, portanto, o Processo – seja legislativo, seja o judicial -, nesse Tipo Fundamental de Estado, como o espaço jurídico-discursivo destinado à correção permanente da falibilidade do Ordenamento Jurídico vigente [01], a ele se sujeitando o Estado, o qual o instituiu, e que, comprometido com a Justiça democraticamente contextualizada, há de agir em conformidade com o Direito, devendo-se respeito aos Princípios jurídico-processuais e à Ordem Constitucional.

            Diz-se, desta forma, que, para a sobrevivência do Processo, necessário se faz o respeito às Garantias, as quais não se prestam somente ao resguardo do interesse das partes, mas também da segurança jurídica da sociedade.

            Aliás, o que foi acima exposto é bem abordado por Leal (2001), que neste aspecto é claro, quando, no intento de contextualizar o Processo no Estado Democrático de Direito, o qual se calca na soberana vontade popular, constrói sua proposição Neo-Institucionalista, segundo a qual necessária se faz uma maior constitucionalização do Processo, capaz de proporcionar a ampla participação das partes nele envolvidas. Nas lições de Rosemiro:

            A teoria neo-institucionalista do processo não é uma ordem de pensamento acabado. Erige-se como apelo crítico–participativo das partes juridicamente legitimadas à instauração de procedimentos em todos os domínios da jurisdicionalidade. Seriam estes os agentes de efetivação permanente ou de reconstrução ampliativa da cidadania, mediante o exercício de direitos em sua plenitude constitucional, agregando transformações à Sociedade, valendo-se dos princípios do contraditório, ampla defesa e isonomia, para a consecução do projeto jurídico de nivelamento de todos à resolução procedimental dos conflitos de interesse. (LEAL, 2001, pág. 97)

            Ainda em Rosemiro:

            De resto, uma teoria neo-institucionalista tem na constituição a instituição originária de sua possibilidade existencial, todavia a própria constituição, ao se autoproclamar Democrática de Direito, pouco importando o âmbito legiferante de sua elaboração, como é a brasileira de 1988, já se põe sob regência da instituição constitucionalizada do processo (grifo nosso) como pressuposto democratizante e lógico-jurídico regente da realização, recriação e aplicação dos direitos assegurados no discurso constitucional. (LEAL, 2001 pág. 98).

            Sob a nova ótica, não se há de conceber o Processo como instrumento da Jurisdição, porque quem lida com direito é que, uma vez submetido aos ditames da Constituição e da lei dotada de constitucionalidade, modeladora dos procedimentos, deve obrar no sentido do integral cumprimento destes, eis que, como dito, não é a Jurisdição que dita a tutela, e sim a Lei prévia.

            Este o enquadramento da noção de Devido processo legal no Estado Democrático de Direito, a qual supera aquelas inerentes às concepções liberal e social.


Bibliografia

            LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. Primeiros Estudos. 4ª ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Síntese, 2001.

            ____________________. Teoria Processual da Decisão Jurídica. São Paulo: Landy, 2002.

            WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Súmula vinculante: desastre ou solução?. Revista de Processo, [S.l.], nº 98, p. 295, ago. 1998.


Notas

            01 Esta definição de processo utilizada por Rosemiro Pereira Leal em sua Teoria Neo-Institucionalista do Processo.


Autor

  • Zuenir de Oliveira Neves

    Zuenir de Oliveira Neves

    advogado em Nova Lima (MG), pós-graduado em Direito pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (ANAMAGES) em convênio com o UniCentro Newton Paiva (MG), pós-graduando em Direito Processual pelo Centro de Atualização em Direito (CAD) e Universidade Gama Filho (UGF)

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NEVES, Zuenir de Oliveira. O processo como espaço jurídico-discursivo e a contextualização do justo na democraticidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1416, 18 maio 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9899. Acesso em: 19 abr. 2024.