Cassação de aposentadoria - virou moda na improbidade - necessidade de adequação, proporcionalidade e limites à incontrolável vontade de "punir".

19/03/2024 às 09:02
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PROCESSO ELETRÔNICO

JMCJ 25652

APELAÇÃO: 1036195-41.2019.8.26.0053

APELANTE: JOMAR LEMES COURA

APELADA: FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Juiz(a) de 1º Grau: Luiza Barros Rozas Verotti

VOTO CONVERGENTE 40851

APELAÇÃO – ANULATÓRIA DE ATO ADMINISTRATIVO – PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR – CASSAÇÃO DA APOSENTADORIA – DESPROPORCIONALIDADE – ADEQUAÇÃO DA SANÇÃO.

Pleito do autor pela anulação de ato administrativo de punição por conduta culposa, imposta em sede de PAD (processo administrativo disciplinar), no qual se determinou a cassação de sua aposentadoria, reservada a faltas graves que ensejassem a demissão se estivesse na ativa.

Sentença de improcedência do pedido.

Rejeição das preliminares de cerceamento de defesa e nulidade da sentença. Houve requerimento conjunto para se aproveitar a prova oral do PAD, significando desistência do autor na oitiva das suas testemunhas, que não compareceram à audiência. Sentença suficientemente fundamentada que justifica a sua conclusão.

Cabimento da revisão do ato administrativo. Conduta culposa imputada que não constituiria falta grave e não justificaria a demissão, menos ainda a cassação da aposentadoria do autor.

Desproporcionalidade flagrante a merecer correção pela razoabilidade e guardar pertinência e proporcionalidade.

Adequação da pena de suspensão convertida em multa, em razão do servidor ter passado para a inatividade (art. 254, § 2º e 259 da Lei 10.261/1968).

Observância da necessidade de tratamento punitivo isonômico do ativo e o inativo, conforme orientação do STF na ADPF 418.

Recurso parcialmente provido para reformar a sentença, com adequação da penalidade para a de multa.

Vistos.

Trata-se de AÇÃO ANULATÓRIA DE ATO ADMINISTRATIVO ajuizada por JOMAR LEMES COURA contra FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO objetivando a anulação de ato administrativo de punição por conduta culposa, imposta em sede de PAD (processo administrativo disciplinar), a qual determinou a cassação de sua aposentadoria (processo 1036195-41.2019.8.26.0053).

A sentença de fls. 1236/1241 julgou improcedente o pedido, nos termos do art. 487, inciso I do CPC. Ante a sucumbência, condenado o autor ao pagamento de custas e despesas processuais, além de honorários advocatícios fixados no percentual mínimo sobre o valor da causa, ressalvada a suspensão da exigibilidade diante da concessão do benefício da justiça gratuita.

Inconformado com o supramencionado decisum, apela a parte autora, com razões recursais às fls. 1246/1262.

Alega o recorrente o seguinte:

  1. a necessidade de manutenção da tutela de urgência, que afastava os efeitos da cassação de sua aposentadoria, revogada pela sentença;

  2. a nulidade da decisão administrativa e da sentença por falta de fundamentação;

  3. a omissão quanto à aplicação dos artigos 80 a 83 da LC nº 180/78 na hipótese dos autos;

no período de substituição, o titular do cargo não pode ser responsabilizado pelos atos de seu substituto;

  1. a falta de treinamento para o exercício de suas funções, de pessoal e o volume de trabalho acumulado conduziu-o a nomear uma substituta legal;

  2. a desídia da Administração Pública ao deixar de disponibilizar pessoal e equipamentos necessários ao exercício das atividades do cargo de Diretor Técnico de Serviço da Fazenda Estadual afasta a culpa do agente;

  3. a inexistência de prova de sua participação em atividades ilícitas, tampouco de obtenção de vantagem financeira decorrentes das irregularidades apuradas;

  4. a estrita observância da LC 180/78;

  5. a falta de razoabilidade e proporcionalidade da pena aplicada na via administrativa;

  6. a aplicação da tese fixada pelo Tema 1199 do STF in casu.

Com contrarrazões (fls. 1291/1305), o recurso foi regularmente processado.

Deferido o efeito suspensivo ao recurso, com o reestabelecimento da tutela de urgência deferida no agravo de instrumento nº 2179249-13.2019.8.26.0000, houve oposição ao julgamento virtual (fls. 1322/1325 e 1332).”.

É o relato do necessário.

VOTO.

Incialmente, devem mesmo ser rejeitadas a preliminares de cerceamento de defesa e nulidade da sentença.

Como constou dos autos e relatório da sentença, a prova oral foi deferida, mas as testemunhas do autor não compareceram e seguiu-se requerimento conjunto para o aproveitamento da prova oral produzida no processo administrativo disciplinar, o que foi deferido (fls. 1184 e fls. 1212/1214).

Quanto à sentença, de fato, havia espaço para uma fundamentação mais ampla. Contudo, apesar de ser sucinta, ela abordou as questões de fato e de direito suscitadas para motivar ser a conduta culposa, a legalidade do processo administrativo e da sanção aplicada, embora não tenha adentrado ao campo da sua adequação e proporcionalidade.

Ainda, sobre a motivação da sentença, deve ser lembrado que o “[...] juiz não tem o dever de rebater todos os argumentos levantados pelas partes ao longo de seus arrazoados: apenas os argumentos relevantes é que devem ser enfrentados.” (Marinoni, Luiz Guilherme; Arenhart, Sérgio Cruz Mitidiero, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 493).

E, analisando a sentença, apesar de não ter mencionado especificamente os arts. 80 a 83 da LC 180/78, o decisum contém fundamentação levando em consideração todas as alegações e provas dos autos.

Passo ao mérito.

Se coubesse revisão do processo administrativo no seu mérito de forma ampla, a prova colhida autorizaria a improcedência da sanção administrativa capital aplicada.
De fato, é quase Kafikiano apenar servidor por conduta culposa por omissão por ato ilegal doloso praticado por terceiro, seu substituto legal, em razão da sua ausência da função de Diretor de Técnico da Divisão Regional de Administração do ABCD-DRA-11.

Ora, se o autor estava ausente, não podia fiscalizar e nem cabia o fazer em sendo substituído por sua substituta legal, ainda mais, com as dificuldades administrativas e logísticas que mencionou na petição inicial e nas razões de apelação, que se mostraram, a meu ver, reais.

Desta forma, houve muita vontade de punir, dissociada da ponderação e proporcionalidade para aplicar a pena de cassação da aposentadoria ao autor. Poderia ter sido aplicada a pena de repreensão, suspensão ou até multa, mas evidencia-se estranho, com ares de abuso de poder a aplicação da pena máxima. Qual seria, então, a pena a ser aplicável à Diretora Substituta Myriam Barbosa? Um exílio para Faixa de Gaza?

Nos termos do Estatuto dos Servidores Públicos do Estado de São Paulo, são penas disciplinares (art. 251): I - repreensão; II - suspensão; III - multa; IV - demissão; V - demissão a bem do serviço público; e VI - cassação de aposentadoria ou disponibilidade. E prevê, ainda, que a pena de cassação da aposentadoria ou disponibilidade em casos de falta grave a ilegalidade na aceitação do cargo ou função púbica, cominada com pena de demissão, além de outras hipóteses que também não se aplicam ao caso (art. 259). 1

Cabe o controle jurisdicional do processo administrativo disciplinar no caso teratológico dos autos, nos termos da recente Súmula 665/2023 do STJ:

Súmula 665. O controle jurisdicional do processo administrativo disciplinar restringe-se ao exame da regularidade do procedimento e da legalidade do ato, à luz dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, não sendo possível incursão no mérito administrativo, ressalvadas as hipóteses de flagrante ilegalidade, teratologia ou manifesta desproporcionalidade da sanção aplicada.

Assim, em face da flagrante desproporcionalidade entre a conduta do autor e a sanção aplicada o presente recurso deve ser parcialmente acolhido.

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Sendo assim, mostra-se necessária a adequação da sanção administrativa ao servidor considerado culpado culposamente.

O STF repetiu na ADPF 418 a constitucionalidade da aplicação da pena de cassação da aposentadoria para os servidores federais, quando apenados por demissão em processo administrativo, mas que, por terem passado à inatividade, essa não mais teria cabimente, havendo necessidade de punir com a cassação da aposentadoria, com o fundamento de manter isonomia ou igualdade de tratamento.

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. ARTS. 127, IV, E 134 DA LEI 8.112/1990. PENALIDADE DISCIPLINAR DE CASSAÇÃO DE APOSENTADORIA OU DISPONIBILIDADE. EMENDAS CONSTITUCIONAIS 3/1993, 20/1998 E 41/2003. PENALIDADE QUE SE COMPATIBILIZA COM O CARÁTER CONTRIBUTIVO E SOLIDÁRIO DO REGIME PRÓPRIO DE PREVIDÊNCIA DOS SERVIDORES. PODER DISCIPLINAR DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. 1. As Emendas Constitucionais 3/1993, 20/1998 e 41/2003 estabeleceram o caráter contributivo e o princípio da solidariedade para o financiamento do regime próprio de previdência dos servidores públicos. Sistemática que demanda atuação colaborativa entre o respectivo ente público, os servidores ativos, os servidores inativos e os pensionistas. 2. A contribuição previdenciária paga pelo servidor público não é um direito representativo de uma relação sinalagmática entre a contribuição e eventual benefício previdenciário futuro. 3. A aplicação da penalidade de cassação de aposentadoria ou disponibilidade é compatível com o caráter contributivo e solidário do regime próprio de previdência dos servidores públicos. Precedentes. 4. A perda do cargo público foi prevista no texto constitucional como uma sanção que integra o poder disciplinar da Administração. É medida extrema aplicável ao servidor que apresentar conduta contrária aos princípios básicos e deveres funcionais que fundamentam a atuação da Administração Pública. 5. A impossibilidade de aplicação de sanção administrativa a servidor aposentado, a quem a penalidade de cassação de aposentadoria se mostra como única sanção à disposição da Administração, resultaria em tratamento diverso entre servidores ativos e inativos, para o sancionamento dos mesmos ilícitos, em prejuízo do princípio isonômico e da moralidade administrativa, e representaria indevida restrição ao poder disciplinar da Administração em relação a servidores aposentados que cometeram faltas graves enquanto em atividade, favorecendo a impunidade. 6. Arguição conhecida e julgada improcedente.

(ADPF 418, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 15-04-2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-105 DIVULG 29-04-2020 PUBLIC 30-04-2020)

Merece ser afastada, como já se disse, a pena de cassação da aposentadoria, pois os fatos concretos, conduta culposa e duvidosa, não poderiam ensejar a pena de demissão ou de cassação da aposentadoria, tendo ocorrido verdadeiro e notório excesso de punição, que talvez esconda alguma dinâmica por trás das cortinas, mas que não cabe no devido processo legal.

O eminente relator entendeu cabível a pena de suspensão de 90 dias se fosse ativo o servidor-autor, por falta grave.

Estando na inatividade e em conformidade ao espírito do STF em guardar a isonomia punitiva para aquele se inativou, comutou em multa na base de multa correspondente monetariamente à suspensão de 90 dias (apenas para fins de contabilização da penalidade), na base de 50% por dia de vencimento utilizado para cálculo de seu provento, nos termos do art. 254, §2º da Lei 10.261/68, que prescreve o seguinte:

Artigo 254 - A pena de suspensão, que não excederá de 90 (noventa) dias, será aplicada em caso de falta grave ou de reincidência.

§ 1º - O funcionário suspenso perderá todas as vantagens e direitos decorrentes do exercício do cargo.

§ 2º - A autoridade que aplicar a pena de suspensão poderá converter essa penalidade em multa, na base de 50% (cinquenta por cento) por dia de vencimento ou remuneração, sendo o funcionário, nesse caso, obrigado a permanecer em serviço.

Assim, no controle da legalidade do processo administrativo, cabe a adequação da pena disciplinar na forma proposta.

Isso posto, voto para dar parcial provimento ao recurso do autor, nos termos da fundamentação, acompanhando o Relator.

Leonel Costa

2º Desembargador


  1. Artigo 259 da Lei Estadual 10.261/1968 - Será aplicada a pena de cassação de aposentadoria ou disponibilidade, se ficar provado que o inativo:

    I - praticou, quando em atividade, falta grave para a qual é cominada nesta lei a pena de demissão ou de demissão a bem do serviço público;

    II - aceitou ilegalmente cargo ou função pública;

    III - aceitou representação de Estado estrangeiro sem prévia autorização do Presidente da República; e

    IV - praticou a usura em qualquer de suas formas.

Sobre o autor
Leonel Costa

Desembargador do TJSP de carreira, ingresso em 1987. Foi Promotor de Justiça do MPSP de carreira e professor universitário de Direito. Graduado pela USP em 1985. LLMM em Direito Público.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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