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Usuário tem direito à manutenção de serviço de acesso à Internet

01/03/2002 às 00:00
Leia nesta página:

Provedor de Internet rescindiu unilateralmente contrato com usuário, em virtude do “difícil relacionamento” entre as partes.

Sentença nº__________________

Proc. nº00108393522

3º Juizado Especial Cível

Comarca de Porto Alegre

A.: K.Q.

R.: Via-RS/Procergs

Juiz prolator: Carlos Alberto Etcheverry

Data: 26.12.2001


Vistos.

1. K. Q. , já qualificado, ajuizou a presente ação cominatória contra a Procergs - Companhia de Processamento de Dados do Rio Grande do Sul, narrando que, para desempenho de sua atividade profissional - investimento em bolsa de valores -, tornou-se usuário do serviço de conexão dedicada prestado pela Vírtua e, simultaneamente, do serviço de provimento de acesso à Internet prestado pela ré.

Todos os pagamentos correspondentes a este último contrato encontram-se em dia, mas, ainda assim, a demandada comunicou-lhe, com antecedência de trinta dias, que, vigorando por prazo indeterminado o contrato, não tinha mais interesse em sua continuidade.

Entende que essa medida é completamente ilegal, uma vez que o fornecimento em questão é objeto de oferta pública, não podendo o fornecedor recusar-se a contratar. Pleiteia, portanto, a condenação a requerida a manter a prestação de serviço, tendo sido deferida antecipação de tutela nesse sentido.

Resultou frustrada a tentativa de conciliação.

Contestando o pedido, a ré afirmou que, vigorando o pacto por prazo indeterminado, como é o caso, pode qualquer das partes denunciá-lo mediante pré-aviso, como ocorreu neste caso.

Além disso, não foi possível dar continuidade ao fornecimento em razão das dificuldades de relacionamento com o demandante, fato que motivou a denúncia do contrato.

Não houve a produção de prova testemunhal.

É o relatório.

2. Merece inteira acolhida a postulação apresentada pelo autor.

Em primeiro lugar, ainda que afirme a demandada que meramente exercitou a faculdade de pôr fim a contrato por prazo indeterminado, na verdade o fez motivadamente, como referido de forma expressa tanto nas informações prestadas preliminarmente, quanto na própria contestação:

"O autor trata-se de pessoa de difícil relacionamento, que não controla seus impulsos e, desde o início do contrato vem descarregando sua ira nos técnicos da PROCERGS. Foram esgotadas todas as tentativas de solução amigável, inclusive com reuniões entre as partes. Podemos observar nos inúmeros registros de chamados e contatos (doc. 5) que o Autor extrapolou seus limites, razão, pela qual, a Ré achou por bem rescindir o contrato." (fls. 147/148)

E, como já foi salientado na decisão que deferiu o pedido de antecipação de tutela, "tais motivos tornam ilegítima a denúncia unilateral, a meu ver. O longo relatório apresentado pela autora, embora contenha trechos em que se percebe uma certa aspereza, não constitui, em absoluto, motivo para o rompimento da relação jurídica. Sua leitura, aliás, permite perceber que nem todas as reclamações do consumidor eram infundadas. E também é necessário considerar o contexto em que se desenrolou esse relacionamento: é relativamente nova, no Brasil, a utilização de conexões dedicadas à Internet, não estando os consumidores acostumados a lidar com os riscos proporcionados por hackers e pessoas mal-intencionadas, que tornam necessária a utilização de programas para monitorar e barrar acessos indevidos a suas máquinas. Em tais circunstâncias, parece-me razoável exigir dos fornecedores desse tipo de serviço uma dose adicional de paciência e tolerância." (fl. 110)

Diversa seria a situação, é claro, se imputado ao demandante o descumprimento do contrato, o que não ocorreu.

Por outra razão, ainda - e mais relevante -, impõe-se o acolhimento do pedido formulado pelo autor. Não, certamente, com base no art. 3º, inciso VII, da Lei nº9.472/97, que proíbe a "suspensão de serviço [de telecomunicações] prestado em regime público, salvo por débito diretamente decorrente de sua utilização ou por descumprimento de condições contratuais", pois o provimento de acesso à Internet é uma prestação de serviço de valor adicionado e, por conseguinte, "não constitui serviço de telecomunicações" (idem, art. 61, § 1º).

Ocorre que a prestação objeto do contrato celebrado pelas partes tornou possível, como já referi a fl. 109, "uma nova modalidade de exercício das atividades laborais: o tele-trabalho. Muitas categorias profissionais, hoje em dia, desempenham as tarefas que lhes são cometidas por seus empregadores de suas próprias casas."

É o caso do requerente, que atua incontroversamente como investidor autônomo no mercado financeiro, atividade com a qual provê sua subsistência. Permitir que lhe seja impossibilitado o acesso remoto e instantâneo às bolsas de valores equivale, assim, a impedir o exercício da profissão pela qual optou. O acesso à Internet é, neste caso, um serviço essencial, sob o ponto de vista deste consumidor, pois impede que implemente um dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, que é "o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer". (art. 5º, XIII) Como condição para que seja efetivada a dignidade da pessoa humana, assegura-se a todo cidadão o direito não só de escolher livremente o trabalho, ofício ou profissão através do qual irá se inserir no mundo social, como também o de não sofrer qualquer constrangimento nessa escolha por parte do Estado.

E é direito que pode ser oposto não só ao Estado, como também contra os particulares. Está fora de discussão, atualmente, o fato de que o poder público não é o único inimigo possível dos direitos fundamentais. Como salienta Ingo Wolfgang Sarlet, "(...) cumpre referir que expressivo rol de doutrinadores tem reproduzido a tendência (por sua vez, não completamente imune a críticas) de reconduzir o desenvolvimento da noção de uma vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, ao reconhecimento de sua dimensão jurídico-objetiva, de acordo com a qual os direitos fundamentais exprimem determinados valores que o Estado não apenas deve respeitar, mas também promover e proteger, valores estes que, de outra parte, alcançam uma irradiação por todo o ordenamento jurídico - público e privado -, razão pela qual de há muito os direitos fundamentais deixaram de poder ser conceituados como sendo direitos subjetivos públicos, isto é, de direitos oponíveis pelos seus titulares (particulares) apenas em relação ao Estado."

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No mesmo sentido é a lição de Canotilho:

"(...) A eficácia imediata dos direitos, liberdades e garantias na CRP postula ainda a interpretação aplicadora conforme a Constituição, fundamentalmente conducente a uma interpretação conforme os direitos fundamentais. Isto não significa uma absolutização da eficácia irradiante dos direitos fundamentais com a correspondente capitulação dos princípios da ordem jurídica civil. Significa apenas que as soluções diferenciadas (Hesse) a encontrar não podem hoje desprezar o valor dos direitos, liberdades e garantias como elementos de eficácia conformadora imediata do direito privado. Estas soluções diferenciadas pretendem ter em conta a multiplicidade de relações jurídicas privadas e o diverso conteúdo destas mesmas relações, mas, de modo algum, podem servir para dar cobertura a uma ‘dupla ética no seio da sociedade’ (J. Rivero). Essa ‘dupla ética’ existe quando, por exemplo, se considera como violação da integridade física e moral a exigência de ‘testes de gravidez’ às mulheres que procuram emprego na função pública, e, ao mesmo tempo, se toleram e aceitam esses mesmos testes quando o pedido de emprego é feito a entidades privadas, em nome da ‘produtividade das empresas’e da ‘autonomia contratual e empresarial.’ O mesmo se verifica quando se considera intolerável a pressão dos poderes públicos sobre a liberdade de opinião, e se julga incensurável a pressão do ‘patrão’ sobre o ‘assalariado’, impedindo-o de se exprimir."

Impedir que a cláusula autorizadora da denúncia do contrato produza efeitos é, precisamente, a solução diferenciada que dá eficácia imediata aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.

A demandada pretende chegar ao resultado contrário, sob a alegação de que não presta o serviço em caráter exclusivo. É verdade: outras empresas poderiam fazê-lo. Mas validar o desfazimento do negócio jurídico por tal motivo conduziria a um resultado absurdo, pois de forma alguma seria possível proferir idêntica decisão quando surgisse a mesma demanda entre o autor e o último dos fornecedores disponíveis. E a retirada de eficácia da denúncia, nesse momento, equivaleria a dizer, em substância, que todos os outros podiam ter agido como agiram enquanto fosse possível contar com o último dos prestadores de serviço, conferindo-se ao direito fundamental em questão uma relatividade que beira o jocoso. Ou, formulado de outro modo: pode sempre uma entidade privada negar vigência à norma constitucional, desde que exista, em tese, quem possa ser constrangido a agir de forma diversa...

Isto posto, julgo procedente o pedido para o efeito de determinr à ré que mantenha a prestação de serviço de acesso à Internet ao autor.

Registre-se.

Int.-se.

Porto Alegre, 26 de dezembro de 2001.

Carlos Alberto Etcheverry

Juiz de Direito

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Sobre o autor
Carlos Alberto Etcheverry

desembargador integrante da 13ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, mestre em Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ETCHEVERRY, Carlos Alberto. Usuário tem direito à manutenção de serviço de acesso à Internet. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 55, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/16469. Acesso em: 26 abr. 2024.

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