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Da competência penal na Justiça do Trabalho

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III. DA INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO E DA DECLARAÇÃO PARCIAL DE NULIDADE SEM REDUÇÃO DE TEXTO: DESCABIMENTO. «PROCEDURAL DUE PROCESS» E GARANTIA DO JUIZ NATURAL (CARÁTER PRINCIPIOLÓGICO)

O pedido deduzido na ADIn n. 3684/2006 visa a uma declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto ("Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung"), como resultado de uma interpretação conforme à Constituição ("verfassungskonforme Auslegung"). Na verdade, tais figuras não se confundem. Como pondera BRUN-OTTO BRYDE,

A semelhança de efeitos dos dois instrumentos não altera a fundamental diferença existente entre eles. Eles somente poderiam ser identificados se se considerasse a interpretação conforme à Constituição não como regra normal de hermenêutica, mas como um expediente destinado a preservar "leis inconstitucionais". Não se tem dúvida, outrossim, de que a Corte Constitucional utiliza, muitas vezes, a interpretação conforme à Constituição com esse desiderato. É certo, também, que nesses casos, mais adequada seria a pronúncia da declaração de nulidade parcial sem redução de texto. Se utilizada corretamente, a interpretação conforme à Constituição nada mais é do que interpretação da lei (Gesetzesauslegung), uma vez que qualquer intérprete está obrigado a interpretar a lei segundo as decisões fundamentais da Constituição [grifos nossos]. [35]

3.2. Tal é o caso dos autos. A rigor, o Parquet não pretende obter uma interpretação conforme à Constituição ? que, na acepção técnica, importaria em obter uma única interpretação do artigo 114, I, conforme à Constituição (declarando, por conseqüência, a incompatibilidade de todas as outras interpretações possíveis) ?, mas uma declaração parcial de nulidade sem redução de texto. Nessa última, os órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública ficam proibidos de perfilhar determinadas interpretações, sem prejuízo de todas as demais; já na interpretação conforme à Constituição, o Poder Judiciário e a Administração Pública estão proibidos de veicular toda e qualquer interpretação diversa daquela declarada pelo STF [36]. Como a preambular da ADIn n. 3684/2006 não apresenta um conceito ontológico exauriente para a locução "ações oriundas da relação de trabalho" (artigo 114, I), limitando-se a repelir a tese da competência penal residual, está claro que a hipótese não pode ser de interpretação conforme à Constituição ("stricto sensu").

3.3. A interpretação conforme à Constituição encontraria, de resto, limites na expressão literal do texto normativo ("Wortlaut"), em face da primazia e da presunção de constitucionalidade dos atos do legislador democrático (o que inclui, "in casu", as emendas constitucionais) [37]. Com efeito, não somente os propósitos perseguidos pelo legislador, mas também a letra do enunciado normativo impõe limites ao controle de constitucionalidade via interpretação conforme. Isso porque "o princípio da interpretação conforme a Constituição não contém [...] uma delegação ao Tribunal para que proceda à melhoria ou ao aperfeiçoamento da lei". [38] Ora, a considerar os termos dos tópicos 2.7 e 2.8 (supra), uma interpretação conforme que recusasse competência penal estrita à Justiça do Trabalho importaria em redução do texto do artigo 114, IV, da CRFB, comprometendo sua expressão literal. E esse limite não pode ser transposto pela "verfassungskonforme Auslegung", como outrora decidiu o Excelso Pretório (ADIn n. 1.417/87-DF [39]).

3.4. Por outro lado, tampouco a declaração parcial de nulidade sem redução de texto se afigura correta, mercê da norma constitucional evocada pelo Exmo. Procurador-Geral da República para justificar a medida. O princípio do juiz natural (artigo 5º, LIII, da CRFB), assim como o correlato princípio do promotor natural, são corolários do "procedural due process" (= devido processo legal formal [40]), insculpido no artigo 5º, LIV, da CRFB [41].

3.5. É que a garantia do devido processo legal formal, como em geral toda norma de direito fundamental, tem natureza própria de princípio jurídico [42]. À diferença das regras, que são proposições normativas aplicáveis em regime de "all-or-nothing", os princípios são normogenéticos e contêm carga valorativa, fundamento ético ou decisão política relevante que indicam uma direção a seguir [43]. Por isso, ALEXY os define como mandados de otimização, que

ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. [...] estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferente grau e que a medida devida de seu cumprimento não só depende das possibilidades reais, senão também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos. [44]

3.6. Nesse encalço, se o devido processo legal e os seus consectários imediatos (imparcialidade, contraditório, juiz natural, etc.) têm natureza de princípios, não se pode pretender excluir "prima facie" uma alternativa hermenêutica que, por um lado, não encontra objeções expressas no texto constitucional e, por outro, tende a convergir para a realização de dois princípios conexos tão importantes como o princípio material da eficiência administrativa (artigo 37, caput, in fine, da CRFB) ? dada a maior capilaridade dos órgãos da Justiça do Trabalho no interior do país e a ótima interação do binômio oralidade/celeridade nos processos judiciais correspondentes ? e o princípio hermenêutico da máxima efetividade ? pelo qual "a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe conceda" [45] (o que significa, neste caso, potencializar o respeito e a satisfação dos direitos sociais "stricto sensu", em face da sensibilidade epidérmica do juiz laboral para o trato das questões relativas ao trabalho humano e, bem assim, dos contundentes efeitos de prevenção negativa geral e especial que a aplicação efetiva da legislação penal-trabalhista deverá produzir nas comunidades laborais dominadas pela sensação de anomia).

3.7. A cláusula do devido processo legal deve ser interpretada numa perspectiva pós-positivista, sensível ao programa normativo (i.e., à Constituição e às leis) e ao domínio normativo (i.e., à realidade social) [46]. Daí porque não se pode tolher com efeitos "erga omnes" uma interpretação que, se não tem assento em texto constitucional expresso, tampouco contraria proibição literal. Mais do que isso, admitindo-se a ascendência axiológica do princípio da valorização do trabalho humano (artigos 1º, IV, 1ª parte, e 170, caput, da CRFB) como fundamento maior da própria instituição da Justiça do Trabalho, será forçoso reconhecer a eficácia interpretativa desse princípio em matéria penal estrita, autorizando que

o intérprete faça a opção, dentre as possíveis exegeses para o caso, por aquela que realiza melhor o efeito pretendido pelo princípio constitucional pertinente [grifos nossos]. [47]

3.8. Seguramente não há, nesse campo, interpretação mais adequada para a (re)valorização do trabalho humano que a exegese que acomete à Justiça do Trabalho a competência para o processo e o julgamento dos crimes contra a organização do trabalho de afetação individual. Tal competência dispensa a literalidade, pois se trata de competência penal residual (que, a exemplo da exercida pela Justiça Estadual Comum, pode exsurgir implícita no texto constitucional). E tampouco o elemento genético-histórico evocado no item n. 23 da ADIn n. 3684/2006 (rejeição, no Senado, nas emendas e destaques que pretendiam positivar a competência criminal da Justiça do Trabalho) tem o condão de repelir essa linha interpretativa: como se sabe, a norma desprega-se do legislador no momento em que entra em vigor, deixando de ser um repositório formal das vontades históricas do corpo legiferante. Do contrário, não haveria ensejos para a interpretação histórico-evolutiva e textos normativos como o Código Civil de 1916, o Código Penal de 1940 (com Parte Geral de 1984) ou a Consolidação das Leis do Trabalho de 1943 não comportariam sobrevida dão extensa. Ou, no escólio de DINIZ DANTAS (com fundamento em DWORKIN),

Não existe algo como o significado objetivo, entendido como atribuição de sentido definitivo. Do ângulo da "teoria subjetiva", embora seja importante a investigação dos motivos e circunstância que impulsionaram a sua criação [das disposições legislativas], "a intenção do autor", quando se torna um método, implica as convicções do intérprete. [...] A interpretação é por natureza o informe de um propósito: propõe uma maneira de ver aquilo que se está interpretando ? no caso do Direito, uma prática social argumentativa que se enuncia em textos ? como se isso fosse o produto da decisão de buscar um conjunto de temas, visões ou propósitos [...] [grifos nossos]. [48]

Em síntese: a despeito dos trabalhos prévios, das motivações e dos materiais legislativos que cercaram as primícias da EC n. 45/2004, após a sua edição há que buscar, em primeiro lugar, a "mens legis" (e não, mecanicamente, a "mens legislatoris").

3.9. Por tudo isso, é indene de dúvidas que a cláusula do devido processo legal ou os princípios do juiz natural e do promotor natural não impõem e nem poderiam impor, ao artigo 114, I, IV e/ou IX da CRFB, interpretação conforme ou declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto. No primeiro caso, chegar-se-ia a um engessamento impraticável do conteúdo de princípios que, por definição, atuam no sistema jurídico como mandados de otimização com caráter "prima facie". Cingi-los a um único conteúdo seria conspurcar-lhes a natureza mesma de princípio. No segundo caso, recusar toda e qualquer competência penal à Justiça do Trabalho ? sobre aviltar, à vista do artigo 114, IV, a expressão literal do texto como limite jurídico-funcional da interpretação constitucional "in genere" (HESSE) ? seria referendar sem mais a tradição do Judiciário brasileiro e romper com o paradigma da Reforma do Judiciário (competências "a parte objecti"), fazendo tábula rasa de princípios como o da eficiência administrativa, o da máxima efetividade (dos direitos sociais "stricto sensu") e a própria eficácia interpretativa do princípio da valorização do trabalho humano.

3.10. Deve-se confiar ao sistema judiciário brasileiro e à sua jurisprudência a consolidação do alcance e do conteúdo das normas de competência do artigo 114, I, IV e IX da CRFB. Como outrora pontificou o Min. MOREIRA ALVES (noutro contexto),

Quando declaro que uma interpretação é razoável, nem por isso estou declarando que outra interpretação, sobre o mesmo dispositivo, também não possa ser razoável. A razoabilidade de uma não implica, necessariamente, a desarrazoabilidade da outra. [49]

Assim também há de ser agora. Se a interpretação conforme e/ou a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto houvesse sido aplicada nas origens dos debates judiciais em torno da competência da Justiça do Trabalho para o processo e o julgamento de ações rescisórias (Enunciado n. 144 do C.TST [50]) ou para as ações de indenização por danos morais e materiais decorrentes de acidentes de trabalho (artigo 114, VI, da CRFB; Conflito de Competência n. 7.204-1/MG, rel. Min. Ayres Britto), a jurisprudência nacional não teria evoluído e tais matérias não estariam aduzidas em definitivo à competência material dos juízes do Trabalho. Que a História judiciária recente sirva-nos, pois, de lição.

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IV. CONCLUSÕES

À guisa de conclusão, passo de imediato à apreciação dos quesitos formulados alhures, para respondê-los nos seguintes termos.

(a) Sim, a Justiça do Trabalho detém competência penal estrita sob a égide da Emenda Constitucional n. 45/2004. Detém-na, por expressa letra constitucional, para uma típica ação penal liberatória (o "habeas corpus", do inciso IV do artigo 114, que é ação penal popular constitucional); e, por interpretação construtiva de fundo histórico-sistemático, para as ações penais condenatórias diretamente «oriundas da relação de trabalho» (artigo 114, I).

(b) Não. A Constituição não veda expressamente o exercício da competência penal-trabalhista pelos órgãos da Justiça do Trabalho (o que significa que, pela aplicação "a contrario" do princípio da conformidade funcional, não se exige do Tribunal constitucional uma interpretação manietadora). Também não a atribui expressamente ? mas tampouco a atribui aos órgãos das Justiças estaduais, que, todavia, exercem-na desde a aurora do Estado brasileiro independente. Por outro lado, as garantias do devido processo, do juiz natural e do promotor natural têm caráter principiológico, tal como os outros direitos fundamentais expressos ou adscritos à Carta de 1988. Tais garantias devem ser concretizadas segundo os princípios de interpretação constitucional, entre os quais o da unidade da Constituição, o da máxima efetividade, o da "justeza" ou conformidade funcional e o da força normativa da Constituição; devem, ainda, convergir para outros princípios materiais da Constituição, como o princípio da eficiência administrativa (artigo 37, caput, in fine) e o princípio da valorização do trabalho humano (artigos 1º, IV, 1ª parte, e 170, caput). Reconhecer a competência penal estrita da Justiça do Trabalho atende melhor àqueles princípios hermenêuticos e, a médio e longo prazos, otimiza a realização desses últimos.

(c) Não, em termos. A declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, tal como pedida na ADIn n. 3684/2006, importaria em retirar obliquamente a eficácia do artigo 114, IV, da CRFB, no que atine ao "habeas corpus". Paradoxalmente, traria redução de texto, justamente onde não se suscitam dúvidas quaisquer de constitucionalidade. De outra parte, engessaria a legítima construção jurisprudencial das instâncias de base, romperia com o padrão ideológico da Reforma do Judiciário (competências "a parte objecti") e aviltaria a natureza mesma dos princípios evocados na ação, por enquadrar indevidamente a cláusula do devido processo legal, com prejuízo do seu caráter de mandado de otimização "prima facie". Já quanto à interpretação conforme à Constituição, por tudo quanto se expôs, se o artigo 114, I, da CRFB de algum modo a desafia, será para, ao contrário, referendar a competência penal estrita da Justiça Obreira, inclusive quanto a certa gama de ações penais condenatórias.

É, s.m.j., o que me parece.

GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO

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Sobre o autor
Guilherme Guimarães Feliciano

Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Doutor pela Universidade de São Paulo e pela Universidade de Lisboa. Vice-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELICIANO, Guilherme Guimarães. Da competência penal na Justiça do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1010, 7 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/16676. Acesso em: 23 abr. 2024.

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