Quando o assunto é direitos da personalidade, o campo jurídico é sempre jogado sobre o seu limiar. Um tema também a estes pertinentes, apesar de não tão notórios quanto outros, é a questão do tratamento médico.
Esta temática retoma à cena (mise-en-scène) no palco do Direito Médico é uma possibilidade de tratamento ao câncer, propiciado pela síntese laboratorial da fosfoetanolamina. A forma sintética deste composto químico-orgânico é produzida pelos laboratórios da USP de São Carlos, e é uma promessa de melhora, senão cura, à doença da pós-modernidade.
Após os holofotes midiáticos, o assunto tornou-se mais popular reacendendo a chama de uma discussão em standby. E apesar de não ganhar cena, até mesmo pelos limites do meio, irrompe uma questão: de que tratamento as pessoas têm direito?
É claro que a colocação jurídica do problema do tratamento médico não é nova. Há dois casos em que este tema é bastante debatido, expondo cada qual seus elementos:
- Tratamento médico e escusa de consciência religiosa: pode uma convicção religiosa obstaculizar um tratamento médico? Tradicionalmente os juristas trabalham aqui com um conflito de normas constitucionais (ou além, conflito de princípios). Mas esta zona de enfrentamento não será nosso campo de batalha: primeiro porque não circunscrevo a questão do direito à do discurso, e está é base do viés principiologista. Segundo, mesmo que se creia, não se tratam de princípios diferentes. O direito ao tratamento médico e o direito à crença, são manifestações da livre convicção e autonomia da vontade. A diferença destas está apenas do campo fenomênico – quando o campo é o religioso aparece o segundo, quando ao biopolítico, o primeiro.
Esse enfrentamento via procedimento de ponderação parece incongruente, haja vista que a crença religiosa traz em seu bojo a norma de como regular o corpo (ex. celibato, castidade, sepultamento, aborto etc). Logo, se há uma convicção religiosa ela é também uma questão de tratamento médico. Se há uma disposição, não pode haver outra. Assim se há a necessidade de um tratamento médico recusado peço paciente por sua convicção é esta que deve prevalecer. É absurdo falar em tratamento forçado. E toda problemática penal ou de responsabilidade civil desta decorrente deve prevalecer. A dificuldade maior está nos casos em que o paciente não tem a capacidade de escolher, o que se deve fazer?
1° Regulamentar a questão do “testamento vital”, para que as pessoas, quando conscientes, possam pré-determinar a que procedimentos querem ver submetidas (deste tema falarei em outro capítulo)
2° Para os relativamente capazes, a vontades destes deve prevalecer, a despeito da opinião de seu representante legal. Ainda que a capacidade destes não seja plena, existe aí capacidade de escolha. E esta deve nortear a resposta à dúvida de ação
3° Para os absolutamente incapazes, a ficção do ordenamento não lhes atribui a capacidade de autogestão. Por isso, não há como fazer a opinião destes prevalentes, ainda mais, estas são ainda muito volúveis. Por isso, o que se deve fazer, é submetê-los ao tratamento médico.
Deve-se lembrar aqui que em nenhuma hipótese a opinião de terceiros (pais, tutores etc) deve servir de guia. A escolha ao tratamento médico é personalíssima.
- O segundo clássico ponto de tensão é: qual a amplitude de tratamento médico que uma pessoa tem direito? Faço-me alusão aqui as demandas judiciais que pleiteiam tratamento experimentais, exóticos, de alta complexidade e custo. Adiantando-me aqui, respondo: as pessoas têm direito a um tratamento mediano, convencional e de eficácia reconhecida. Eis o campo dos argumentos.
Primeiramente, quem defende posição similar a minha importa do campo econômico a justificativa. Estes dizem: deve-se atentar para a reserva do possível. Entendo, todavia, que este tipo de argumento é estranho até mesmo para a escola da Análise Econômica do Direito. Há aqui uma confusão dos planos da normatividade e da facticidade, o que não é recomendado nem logicamente inferente.
Assim, se o tratamento convencional básico, recomendado e de eficácia reconhecida for altamente dispendioso financeiramente, deve a administração arcar com seu custo. É um risco suportável pelo Estado, e cabe aos gestores criar condições financeiras e orçamentárias para lidar com estes custos. Porém, se o tratamento é pouco recomendado pela literatura médica, experimental e não passou pelos procedimentos básico de certificação, o custeio desse pelo poder público não deve ser tido como obrigação. A justificativa é que o direito à saúde não abarca o direito à esperança. A esperança é uma crença particular do paciente e não pode ser oponível a terceiros. O direito não se submente à esperança, seus campos são intransponíveis. Não há aqui crueldade ou falta de compaixão, mas o direito não é somente humanitário (aqui em sentido vulgar), mas também envolve um elemento do cálculo.
Mas neste momento reivindico volta um problema mais complexo, que inicia do prelúdio deste texto: a celeuma entorno da fosfoetanolamina sintética.
Primeiramente, não se trata propriamente do direito ao tratamento médico em si, mas o direito a poder ter um tratamento médico. Quem deve oferecer este tratamento e em que medida se deve oferecê-lo? A dita substância não é um produto industrial ou farmacêutico. É uma droga ainda experimental que não pode nem mesmo ser produzida massivamente. Por isso, não há uma seara consumerista envolvida, nem um desvio da finalidade social de indústria farmacêutica. Existe apenas uma possiblidade de eficácia midiaticamente dopada.
A análise do sujeito e de sua situação permite pensar um exemplo, que pode parecer absurdo, mas não é. Imagine um laboratório particular que produz medicamentos pra uso próprio. Um sujeito que tenta criar seu próprio auto tratamento, sem nenhum intuito de fabricar um medicamento. Descobre-se que este pode ter sido eficiente para ele, que se curou da doença. Deveria ele então que fabricar esse medicamento para oferecer aos outros? Haveria alguma possiblidade jurídica de criar-se aí uma obrigação de fazer?
Mutatis mutandi, é isso que ocorre, hoje, com a fosfoetanolamina na USP. Não há como se criar aí um dever de fazer sem ter nenhuma base jurídica para criar tal dever.
Não digno isto como um ato de descrédito à pesquisa. Pelo contrário, até mesmo o progresso econômico depende de que nossas universidades façam mais pesquisas de pontas, que tenham mais verba para aquisição de material de pesquisa, não deixando que nossos dedicados pesquisadores deixem que suas pesquisas sejam assinadas por entidades estrangeiras. Penso inclusive na eficácia do medicamento, não como panaceia, mas como paliativo. (isto o tempo dirá!). Por outro lado, o pedido, hoje, é carente de juridicidade. É forçoso admitir a possibilidade de concessão pela via judicial de fornecimento de um medicamento experimental com o simples embasamento do princípio constitucional do direito à saúde. Uma herança mal resolvida do neoconstitucinalismo faz-no acreditar que o simples apontamento a uma norma constitucional abstrata torna possível uma prestação judicial. E isso não é negar eficácia às normas constitucionais, mas ajusta-las à totalidade do corpo jurídico.