Ação a declaração de nulidade de um dos critérios de avaliação da redação do Exame Nacional do Ensino Médio de 2017

Ação a declaração de nulidade - ENEM de 2017

10/10/2017 às 13:16
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Ação à declaração de nulidade de um dos critérios de avaliação da redação do Exame Nacional do Ensino Médio.

Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz Federal da 00 vara da seção judiciária do Estado de MT

(Nome do candidato), (nacionalidade), (estado civil), (ocupação), (documento de identidade), (CPF), (endereço residencial com CEP), vem, respeitosamente, por seu advogado (doc. 01), ajuizar a presente ação declaratória de nulidade de cláusula editalícia cumulada com pedido condenatório de obrigação de não fazer, com pedido de tutela de urgência, contra o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP, autarquia federal vinculada ao Ministério da Educação, com endereço no SIG Quadra 04 lote 327 - Zona Industrial CEP: 70610-908, Brasília - DF, pelos motivos que passa a expor:


OBJETO DA AÇÃO

01. Pede-se nesta ação a declaração de nulidade de um dos critérios de avaliação da redação do Exame Nacional do Ensino Médio de 2017 ‒ a saber, o que prevê a atribuição de nota zero às redações que desrespeitem os “direitos humanos” ‒; e, como consequência, a condenação do INEP a se abster de aplicar esse critério na correção da redação que vier a ser elaborada pelo autor na próxima edição do Enem (2017).


LEGITIMIDADE

02. Como se vê do anexo comprovante (doc. 02), o autor está inscrito no processo seletivo do Enem/2017, possuindo, assim, legitimidade para questionar a validade do citado critério de avaliação.

03. O INEP, por sua vez, como entidade responsável pela edição e aplicação das regras do certame (Edital nº 13, de 07/04/2017 - doc. 03), é parte legítima para figurar no pólo passivo da demanda.


INTRODUÇÃO

04. O principal objetivo do Enem, como se sabe, é servir de mecanismo de seleção para o preenchimento de vagas em instituições de ensino superior, conforme previsto nos itens 1.9 e 18.3, do Edital nº 13, de 07/04/2017, do INEP:

“1.9 Facultar-se-á a utilização dos resultados individuais do Enem como mecanismo de acesso à Educação Superior ou em processos

de seleção nos diferentes setores do mundo do trabalho.

1.8 Os resultados do Enem deverão possibilitar:

1.8.3 a utilização do Exame como mecanismo único, alternativo ou complementar para acesso à educação superior, especialmente a ofertada pelas Instituições Federais de Educação Superior;”

05. O exame é constituído de 4 (quatro) provas objetivas de múltipla escolha e uma redação em língua portuguesa.

06. A redação consiste num texto dissertativo-argumentativo em prosa, no qual o participante deve desenvolver, a partir de uma situação-problema e de subsídios oferecidos, uma reflexão sobre um tema de ordem política, social ou cultural. O texto produzido será avaliado em função das seguintes competências ou critérios:

Competência 1: Demonstrar domínio da modalidade escrita formal da Língua Portuguesa.

Competência 2: Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo em prosa.

Competência 3: Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista.

Competência 4: Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação.

Competência 5: Elaborar proposta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos humanos.

07. A cada uma dessas competências é atribuída por dois corretores, de forma independente, uma nota entre 0 (zero) e 200 (duzentos) pontos, e a soma desses pontos compõe a nota total de cada corretor, que pode chegar a 1000 (mil) pontos. A nota final do participante será a média aritmética das notas totais atribuídas pelos dois corretores. Segundo o item 14.9.4 do edital ‒ que fixa o critério de avaliação impugnado nesta ação ‒, será atribuída nota zero à redação que “desrespeite os direitos humanos”.

08. Em 2016, o INEP publicou um manual intitulado “Redação no Enem 2016 - Cartilha do Participante” , onde prestou, a respeito dos requisitos acima, os seguintes esclarecimentos (sem negrito no original):

“O texto dissertativo-argumentativo é um texto que se organiza na defesa de um ponto de vista sobre determinado assunto. É fundamentado com argumentos, para influenciar a opinião do leitor ou ouvinte, tentando convencê-lo de que a ideia defendida está correta. É preciso, portanto, expor e explicar ideias. Daí sua dupla natureza: é argumentativo porque defende uma tese, uma opinião, e é dissertativo porque são utilizadas explicações para justificá-la.

(...)

O terceiro aspecto a ser avaliado em seu texto é a forma como você, em seu texto, seleciona, relaciona, organiza e interpreta informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa do ponto de vista defendido como tese. É preciso elaborar um texto que apresente, claramente, uma ideia a ser defendida e argumentos que justifiquem a posição assumida por você em relação à temática da proposta de redação.

(...)

O quinto aspecto a ser avaliado em seu texto é a apresentação de proposta de intervenção para o problema abordado. Por isso, a sua redação, além de apresentar uma tese sobre o tema, apoiada em argumentos consistentes, deve oferecer uma proposta de intervenção na vida social. Essa proposta deve considerar os pontos abordados na argumentação. A proposta deve manter um vínculo direto com a tese desenvolvida no texto e demonstrar coerência com os argumentos utilizados, já que expressa a sua visão, como autor, das possíveis soluções para a questão discutida. (...) [A proposta deve] refletir os conhecimentos de mundo de quem a redige, de modo que a coerência da argumentação será um dos aspectos decisivos no processo de avaliação. É necessário respeitar os direitos humanos, não romper com valores como cidadania, liberdade, solidariedade e diversidade cultural.”

09. Extraem-se do edital e de sua interpretação por parte do INEP as seguintes conclusões:

a) diversamente do que ocorre, v.g., nos concursos para ingresso nas carreiras do Ministério Público ou da Magistratura ‒ em que o candidato, ao redigir uma “denúncia” ou uma “sentença”, é obrigado a simular o exercício da função pública postulada ‒, na redação do Enem, o participante é chamado a se expressar como indivíduo, não como agente do Estado;

b) nessa condição, ele deve apresentar e defender a sua posição, o seu ponto de vista, a sua visão, em suma, a sua “opinião” sobre o problema proposto; mas,

c) se essa opinião desrespeitar os assim chamados “direitos humanos” ‒ ver-se-á que não é disso que efetivamente se trata ‒, sua redação será anulada.

10. Ou seja, o participante poderá ser punido, privado de um direito, por expressar determinada opinião.


FUNDAMENTO DA AÇÃO

11. Entende o autor que, ao fazer tal exigência de respeito aos “direitos humanos” (com aspas), o próprio INEP desrespeita os direitos humanos propriamente ditos, uma vez que as liberdades de pensamento e opinião, além de garantidas pela Constituição Federal, estão previstas na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH, arts. XVIII e XIX).

12. De fato, condicionar o acesso de um candidato ao ensino superior a que ele defenda ou não defenda determinado ponto de vista sobre o que quer que seja configura, sem sombra de dúvida, uma forma acintosa de cerceamento àquelas liberdades, o que afronta a garantia prevista no art. 5º, VIII, da Constituição:

“VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;”

13. Graças a essa garantia constitucional , ninguém em nosso país pode ser obrigado a professar ou não professar determinado credo religioso, político-ideológico ou filosófico para usufruir de um direito; ninguém é obrigado a dizer o que não pensa para poder entrar numa universidade.

14. O art. 208, V, da Constituição , estabelece, em sintonia com o art. 5º, VIII, que o acesso aos níveis mais elevados do ensino será obtido “segundo a capacidade de cada um”, e não segundo a crença religiosa ou a convicção filosófica ou política de cada um.

15. O dever assumido pelo Estado brasileiro de promover os direitos humanos não autoriza o Poder Público ‒ no caso, os funcionários do INEP ‒ a impedir que indivíduos cujas convicções religiosas, políticas ou filosóficas estejam em desacordo com disposições da DUDH ou da própria legislação brasileira sobre direitos humanos possam usufruir do direito de ingressar numa instituição de ensino superior, segundo a sua capacidade.

16. Por ser inviolável, como diz a Constituição, a liberdade de consciência e de crença não permite que os direitos humanos ‒ nem mesmo os direitos humanos propriamente ditos, isto é, aqueles reconhecidos por lei ou tratado internacional com força de lei no território nacional ‒ sejam transformados em “religião” do Estado laico, e os indivíduos obrigados a professá-la, contra suas próprias convicções, para poder usufruir dos seus direitos. Os indivíduos podem ser punidos por desobedecer a lei; não por dela discordarem.

17. Assim, o que se apresenta como avanço no sentido da consolidação de uma “cultura dos direitos humanos” é, na verdade, uma afronta à liberdade de pensamento e opinião de milhões de brasileiros, e, nesse sentido, uma patente violação aos próprios direitos humanos.

18. O problema do Enem, todavia, é ainda mais grave, já que nem mesmo se trata no edital do respeito à legislação brasileira relativa aos direitos humanos.

19. Com efeito, embora estabeleça que a proposta de intervenção deve respeitar “os direitos humanos” e que será atribuída nota zero à redação que “desrespeite os direitos humanos” (item 14.9.4 do edital), o INEP não exige dos candidatos e dos corretores qualquer familiaridade com a por vezes complexa legislação relativa aos direitos humanos. Ou seja: não se trata, no edital, do respeito a essa legislação.

20. Ora, na falta de um referencial objetivo, que só poderia ser dado pelas normas legais que os definem, o que se compreende por “direitos humanos” no contexto do Enem? O que é que os estudantes devem respeitar para que sua redação não seja anulada? Que parâmetros devem ser adotados pelos corretores para avaliar as propostas de intervenção para o problema abordado?

21. Percebendo a inquietação produzida por esses questionamentos, o INEP decidiu utilizar a já referida cartilha do participante para tornar pública a seguinte interpretação do edital:

“É necessário respeitar os direitos humanos, não romper com valores como cidadania, liberdade, solidariedade e diversidade cultural.”

22. Essa interpretação, todavia, pouco ou nada acrescenta em objetividade ao que já consta do edital. Exceto num aspecto: reforça nos participantes a certeza de que, para o Enem, respeitar “os direitos humanos” significa respeitar o “politicamente correto”, que nada mais é do que um simulacro ideológico dos direitos humanos propriamente ditos.

23. É essa, de fato, a mensagem captada, com indiferente pragmatismo, por professores e especialistas cujas análises e “dicas” orientam os participantes do Enem:

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“(...) Fique muito atento a estas últimas palavras: respeite os direitos humanos. Pode não parecer, mas o que é e o que não é um direito humano, bem como o respeito a esse (s) direito (s) pode, muitas vezes, ter cunho subjetivo. Por via das dúvidas, não exponha opiniões muito radicais e opte por ser politicamente correto.”

* * *

“Um dos princípios mais relevantes dos que norteiam as questões do ENEM é o que se convencionou chamar de politicamente correto. Assim como nas redações o ENEM pede que os argumentos do candidato no texto respeitem os direitos humanos e valores como cidadania, liberdade, diversidade cultural e solidariedade, também nas questões apresentadas isso ressalta. Assim, se você tiver dúvidas na hora de responder a uma questão, procure a opção que mais se aproxima desses princípios.”

* * *

“(...) tudo que seja generoso, solidário e politicamente correto é de acordo com os Direitos Humanos. (...) é muito importante para o corretor que você tenha uma visão de mundo civilizada e que tenha, principalmente, em mente que os Direitos Humanos são algo já inerentes à nossa sociedade e que devem ser respeitados (ainda que você não concorde com alguns direitos garantidos).

* * *

Os temas das redações das últimas edições do Enem têm privilegiado preocupações humanísticas, cobrando do candidato uma postura que não fira os direitos humanos, por isso pense bem na hora de fazer a redação, pois é sempre bom ser politicamente correto, às vezes sua opinião pode ser preconceituosa ou racista e isso não lhe ajuda em nada.

* * *

Não se esqueça de que o Enem segue a linha do “politicamente correto”, então caso a sua opinião desvie um pouco disto, é melhor deixá-la de lado na redação;

* * *

Na redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o aluno que desrespeitar os direitos humanos em seus argumentos e proposta de intervenção terá seu texto zerado pelo corretor da prova. Fazer comentários politicamente incorretos e desrespeitosos também pode prejudicar o resultado final do exame.

* * *

Portanto, mesmo que você tenha opiniões mais polêmicas, com um tom intolerante, guarde-as para você e tente ser razoável na escrita da redação, respeitando a diversidade.

* * *

A redação é uma prova com grande peso no Enem. Por este motivo é muito importante ir bem nela. O Enem quer que você construa uma boa argumentação, com caráter ético e de defesa de direitos humanos. Tome cuidado com idéias preconceituosas, radicalismo ou piadas politicamente incorretas, (...).

24. “Não exponha opiniões muito radicais”; “é muito importante para o corretor que você tenha uma visão de mundo civilizada”; “às vezes sua opinião pode ser preconceituosa ou racista e isso não lhe ajuda em nada”; “caso a sua opinião desvie um pouco [do politicamente correto], é melhor deixá-la de lado”; “Fazer comentários politicamente incorretos e desrespeitosos também pode prejudicar”; “mesmo que você tenha opiniões mais polêmicas, com um tom intolerante, guarde-as para você”; “Tome cuidado com ideias preconceituosas...”: nisso consiste o “respeito aos direitos humanos” do Enem. São conselhos que revelam o caráter espúrio da imposição estabelecida pela regra editalícia. E, no entanto, os estudantes os escutam e os seguem, porque sabem que é exatamente assim que devem agir para não correr o risco de ferir a sensibilidade dos corretores e perder a chance de ingressar numa universidade ou conseguir um emprego (lembrando que os resultados do Enem também são utilizados “em processos de seleção nos diferentes setores do mundo do trabalho”).

25. Sob a aparência de “respeito aos direitos humanos”, o INEP está impondo aos estudantes uma censura prévia “do bem”. Diante da ameaça de zerar na prova de redação ‒ a mais importante do Enem ‒, os participantes se veem forçados a abjurar de suas crenças e convicções.

26. A frustração vem à tona nas redes sociais :

“Infelizmente quem presta vestibular não tem o direito de se expressar. Deve se submeter à polícia do politicamente correto, a polícia do pensamento, sob pena de cometer o crime [de] pensar e ser perseguido pelo Ministério da Verdade, como na obra de Orwell, 1984.”

* * *

“Quando estou escrevendo a redação sinto que estou sendo torturado psicologicamente. Uma sensação desesperadora.”

* * *

“Se tivesse feito a redação de acordo com minha crença e consciência teria tirado #ZERO! Tentei, de todas as formas, quase vomitando, dizer o que queriam ouvir. Mas, desta forma, a redação careceu de coerência e brilho.”

* * *

“Infelizmente já tive que fazer isso certa vez. Emitir juízo [em desacordo] com meus princípios, por orientação dos próprios professores de técnica de redação. A doutrinação não dá trégua nem na hora de uma avaliação.”

* * *

“Escrevi muita coisa que eu não concordava simplesmente porque era exigência da prova. Queria falar o que pensava mas, se fizesse isso, tiraria uma nota horrível na redação. Considero isso como uma chantagem contra os estudantes.”

27. Poucos souberam expressar tão bem a repulsa devida a essa indignidade como o psicólogo e educador argentino Pablo Doberti, ao comentar uma entrevista da estudante que obteve a nota máxima na redação do Enem por dois anos consecutivos :

“No Brasil, existe o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio). E o ENEM se transformou em um grande juiz dos resultados educativos escolares. Por isso, o grande determinador dos modelos educativos. Estamos diante de um problema.

Marina Rubini foi quem obteve a nota máxima do país durante dois anos seguidos em "redação" no ENEM. Hoje, tem 20 anos, estuda Medicina (era previsível) e trabalha, em paralelo, dando ‘dicas’ aos alunos sobre como obter boas notas na prova. Foi entrevistada pela VEJA (29/10/2014, página 46).

À pergunta: ‘O que é que ninguém deve jamais escrever em uma redação’?, ela responde ‒ aparentemente com segurança e comodidade ‒ o que segue:

‘Frases ou palavras que possam ferir alguém. Em um tema como 'cotas raciais' - assunto de maior importância no Brasil - sugiro que ninguém diga que os que têm direito a vagas por condição racial «se aproveitam dessas vagas». Outro segredo: manter sempre em mente a questão dos direitos humanos, porque gera sensibilidade. Eu sou católica e contra a legalização do aborto, mas, em uma redação, não escreveria nunca o que a Bíblia diz. Diria que a lei define o marco…’.

E ninguém se escandaliza.

A garota está nos mostrando ‒ de uma maneira quase obscena, ainda que involuntária e ingênua ‒ que no ENEM se ganha mentindo, impostando, fazendo-se passar por outra pessoa, negando-nos em nossa condição de sujeitos com identidade e opinião. E não acontece nada. Dizem em nossa cara que o sistema escolar adora escutar o politicamente correto e premia quem o propaga e que não lhe importa nem um pouco supor que os alunos estão se autocensurando, limitando, idiotizando, estereotipando e demais ‘andos’ para nos satisfazer.

E no final creem nisso, claro. E dão aulas disso, e declaram aos quatros ventos em um meio de comunicação de massa. É indignante. É denegridor.

Estamos validando coletivamente um modelo perverso e idiota que está nos devorando. Já me aconteceu outras vezes, em outros contatos, e aqui volto a confirmar: até os próprios alunos, alienados sobre o que os está matando, tornam-se vis defensores do modelo que os destrói. Apaixonam-se pelos seus algozes, outra vez. E até divulgam e engrandecem o feito. Estamos diante de um problema silenciado há muito tempo.”

28. Como se vê, a ameaça que pende sobre a cabeça do autor e de cada um dos milhões de participantes do Enem/2017 não é a de ter sua redação anulada por expressar uma opinião eventualmente contrária aos direitos humanos propriamente ditos ‒ o que já seria inaceitável à vista dos arts. 5º, IV, VI e VIII, 206, III, e 208, V, da Constituição Federal, como se demonstrou ‒, mas a de tê-la anulada, e ser privado do direito de ingressar numa universidade segundo a sua capacidade, por expressar uma opinião que venha a ser tida pelos corretores da sua prova como

● “radical”

● “incivilizada”

● “preconceituosa”

● “racista”

● “desrespeitosa”

● “polêmica”

● “intolerante” ou...

● “politicamente incorreta”.

29. Por mais bem escrita e até mesmo conforme aos direitos humanos propriamente ditos, a redação pode vir a ser anulada se o participante tiver a má sorte de expressar uma opinião que os corretores considerem ser contrária a “valores como cidadania, liberdade, solidariedade e diversidade cultural”, conforme as diretrizes traçadas pelo INEP. Ou seja, não bastasse o altíssimo grau de subjetividade envolvido na compreensão desses conceitos, a lista do INEP ainda permite a inclusão de outros, a depender da sensibilidade e da imaginação dos corretores.

30. No reino do arbítrio, a única garantia oferecida aos participantes do Enem é a promessa de que sua redação será avaliada por dois corretores, de forma independente, ou três, em caso de discrepância de notas (item 14.8 do edital). O que significa somente que a pena pelo delito de opinião será aplicada por uma junta, em vez de por um juiz singular.

31. Ao outorgar esse poder sem parâmetro, esse cheque em branco assinado para ser preenchido segundo a subjetividade e a visão de mundo de cada corretor, o INEP desrespeita, também, o princípio constitucional da impessoalidade (art. 37, caput) ‒ aplicável na espécie, uma vez que o trabalho de correção das provas é atividade exercida no âmbito da administração pública ‒ e o da neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado, na medida em que confere a indivíduos investidos de função pública o poder de atuar segundo suas próprias concepções e preferências políticas, ideológicas, morais e religiosas.

32. O argumento de que a regra editalícia visaria a prevenir a ocorrência de “discursos de ódio”, além de não ser suficiente para afastar a ofensa ao art. 5º, VIII, da CF ‒ segundo o qual “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política” ‒, torna patente a censura prévia e a consequente violação ao art. 5º, IX, da Lei Maior:

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

33. Seja como for, as redações do Enem não se destinam à publicação em veículos de comunicação de massa. Portanto, se o objetivo do INEP é prevenir os efeitos socialmente indesejáveis de possíveis “discursos de ódio” ‒ o que quer que isto signifique ‒, basta proibir seus funcionários de dar publicidade a esses discursos. Ao investir na censura por meio da intimidação, a autarquia deixa claro que seu objetivo é outro: impor aos participantes do Enem uma determinada pauta de valores politicamente corretos.

34. No Enem de 2015, por exemplo, quase 6 milhões de estudantes tiveram de escrever uma redação sobre o tema “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”; e é de supor-se que muitos candidatos tenham ficado temerosos de expressar seu pensamento a respeito. E com razão. Basta imaginar o possível desfecho das seguintes situações:

● a candidata A, feminista, sustenta, em sua redação, que a proibição do aborto seria uma forma de violência contra as mulheres; e apresenta como proposta de intervenção a completa descriminalização dessa prática;

● o candidato B, muçulmano, relativiza o problema da violência contra as mulheres; identifica, entre suas causas, o comportamento eventualmente inadequado das próprias mulheres; e propõe como solução a mudança desse comportamento.

35. Como teriam sido corrigidas essas redações? Se o Enem exigisse o respeito à legislação relativa aos direitos humanos, a redação da candidata A deveria ter recebido zero, pois a Convenção Americana sobre Direitos Humanos estabelece que o direito à vida deve ser protegido pela lei “desde o momento da concepção"(art. 4º, 1). Mas, dada a sinonímia de facto entre os “direitos humanos” do Enem e os padrões de julgamento e comportamento ditados pelo “politicamente correto”, não só esse resultado não teria ocorrido, como quem provavelmente teria levado zero, por haver apresentado uma visão “radical”, “incivilizada”, “preconceituosa”, “desrespeitosa”, “polêmica”, “intolerante” e “politicamente incorreta” seria o candidato B, embora sua proposta de intervenção não desrespeite a legislação relativa aos direitos humanos.

36. Ora, de acordo com o art. 5º, VIII, da Constituição, nenhum dos candidatos poderia ser punido ou beneficiado por possuir ou expressar sua opinião. Insista-se: ninguém é obrigado a dizer o que não pensa para poder entrar numa universidade. O exemplo demonstra, em todo caso, que, além de ferir a liberdade de consciência e de crença dos candidatos, a exigência do INEP, na prática, transforma a prova de redação do Enem num imenso filtro ideológico de acesso ao ensino superior.


TUTELA DE URGÊNCIA

37. A aplicação das provas do Enem/2017 está marcada para os próximos dias 5 e 12 de novembro, sendo, pois, iminente o risco de constrangimento à liberdade de opinião do autor.

38. A menos que lhe seja assegurado o direito de expressar livremente a sua opinião sobre o problema proposto na redação, o autor poderá se sentir forçado a dizer o que não pensa para não ser privado do direito de ingressar na universidade, o que viola o artigo 5º, VIII, da Constituição.

39. Assim, uma vez demonstrados o fumus boni juris e o periculum in mora, requer o autor seja deferida tutela de urgência ‒ isto é, a antecipação liminar dos efeitos da tutela final (o reconhecimento da nulidade da citada regra editalícia) ‒ que deve consistir na determinação de que o INEP se abstenha de anular a redação do autor por suposto desrespeito aos “direitos humanos”, bem como de avaliá-la com base em tal critério.

40. É certo que o cumprimento da tutela de urgência, caso venha a ser deferida, somente poderá ser exigido no momento imediatamente anterior à divulgação dos resultados, já que as provas dos participantes não são identificadas. Ao elaborar a redação, todavia, o autor precisa ter a segurança de que não será prejudicado por exercer sua liberdade de expressão, ou seja, de que não será “privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”.


PEDIDO

40. Ante o exposto, requer o autor:

a) a citação do INEP na pessoa do seu representante legal para contestar a presente ação;

b) a procedência da ação para os seguintes fins:

i) ser declarada, no item 14.9.4 do Edital nº 13, de 07/04/2017, do INEP, a nulidade da expressão “bem como que desrespeite os direitos humanos, que será considerada ‘Anulada’”;

ii) ser o INEP condenado a abster-se de anular a redação do autor por suposto desrespeito aos “direitos humanos”, bem como de avaliá-la com base em tal critério;

iii) ser o INEP condenado ao pagamento das verbas de sucumbência.

41. Dá à causa o valor de R$ 1.000,00 (mil reais).

FONTE: ESCOLA SEM PARTIDO

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Sobre a autora
Maysa Martimiano

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