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O conceito de Direito

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Agenda 01/07/2000 às 00:00

7. O MODO DE CONCEBER O DIREITO EM DIVERSAS CORRENTES FILOSÓFICAS

Conforme já foi exposto, são inúmeros os fatores que contribuem para dificultar o alcance de um conceito universal do Direito, dentre eles a diversidade de perspectivas de enfoque a partir das quais se contempla o fenômeno jurídico. Pois bem, essas diferentes perspectivas de concepção do Direito deram ensejo ao estabelecimento, durante séculos, de polêmicas entre aqueles que, de forma unilateral e reducionista, pretendem oferecer uma concepção geral do Direito em função de algum de seus componentes.

Apesar de serem muitas as doutrinas que se ocuparam e ocupam do tema em exame, podem elas ser reduzidas nos três grupos seguintes:

7.1. Doutrinas de orientação sociologista ou realista

Estas doutrinas circunscrevem o Direito às ações humanas tendentes à sua criação ou aplicação. Dentre elas, pode-se citar: a) a Escola Histórica, que concebe Direito como o espírito popular (este é sua força criadora); b) a Jurisprudência de Interesses, que reduz o Direito aos interesses sociais que o inspiram a cuja garantia serve; c) a Escola do Direito Livre, o Realismo Americano e o Escandinavo etc., que pretendem ver como Direito apenas no caráter criador das sentenças judiciais. Todas essas concepções - sociologistas ou realistas - têm como elemento comum a circunstância de privilegiar a consideração do Direito eficaz, enquanto dotado de vigência social comprovada através de sua relevância nos comportamentos reais dos homens, que constituem o chamado "Direito Vivo" (Ehrlich). 13

7.2 Positivismo Jurídico

Para esta doutrina, o Direito se identifica com as normas ou sistemas normativos, enquanto regras postas por quem detenha o poder em uma determinada sociedade e trata de impô-las coativamente nesse âmbito. Por essa perspectiva, o traço caracterizador do Direito é a nota de sua validade. Uma norma é jurídica se, e somente se, cumpre os requisitos procedimentais previstos no próprio sistema normativo para a produção de normas.

Integram o Positivismo Jurídico, dentre outras, as Teorias do Cepticismo e do Realismo Empírico; o Positivismo Ideológico, o Formalismo Jurídico e o Positivismo Metodológico ou Conceitual.

Segundo o Cepticismo (já visto particularmente no item "4", retro, dada sua íntima relação com o tema em exame), o Direito é comando arbitrário, inteiramente relativo, privado de autoridade intrínseca. Essa concepção está tratada aqui porque, para muitos juristas, essa tese - segundo a qual não existem princípios morais e de justiça universalmente válidos e cognoscíveis por meios racionais e objetivos - se identifica com o positivismo14.

Enfim, pela doutrina céptica, qualquer que seja a forma que ela assuma (concebendo que o Direito carece de fundamento intrínseco, ou que consiste em um comando arbitrário etc.), o seu significado é sempre negativo. Os seus partidários recusam-se a aceitar um critério universal e absoluto de justiça superior ao fato do Direito positivo.

Não é muito diferente a concepção realista, cuja doutrina, aparentemente oposta à céptica, desta na verdade se aproxima. O cepticismo e o realismo, independentemente dos pressupostos de que partem, possuem o mesmo significado. HOBBES, que se pode dizer realista, tende para uma construção positiva, afirmando que só o Estado pode determinar o justo e o injusto, e que o Direito começa só com o Estado. No mesmo sentido se orienta a doutrina de KIRCHMANN, considerado uma das mais típicas expressões do realismo. Para as doutrinas realistas, portanto, o fundamento do Direito é o sentimento do respeito e acatamento da autoridade constituída. Não admitem esses pensadores a existência de um ideal de justiça válido em si e por si. Por isso, igualmente rejeitam a possibilidade de o indivíduo contrapor as suas especulações racionalistas aos critérios da autoridade constituída.

Por sua vez, a corrente, que Alf Ross chama de "pseudopositivismo" e que recebeu de Norberto Bobbio15 a denominação de "Positivismo Ideológico", concebe o Direito como conjunto de regras impostas pelo poder que exerce o monopólio da força de uma determinada sociedade. Esse Direito, com sua própria existência, independentemente do valor moral de suas regras, serve para a obtenção de certos fins desejáveis como a ordem, a paz, a certeza e, em geral, a justiça legal.

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Para o positivismo ideológico, o Direito positivo, tão-só pelo fato de ser positivo, isto é, a emanação da vontade dominante, é justo; ou seja, o critério para julgar a justiça ou injustiça das leis coincide perfeitamente com o que se adota para julgar sua validade ou invalidade. Pretende esse positivismo que os juízes assumam uma posição moralmente neutra e que se limitem a decidir segundo o direito vigente.

Já em consonância com o "Formalismo Jurídico", o Direito está composto exclusiva ou predominantemente por preceitos legislativos, ou seja, por normas promulgadas explícita e deliberadamente por órgãos centralizados, e não, por exemplo, por normas consuetudinárias ou jurisprudenciais. Pressupõe tal corrente que a ordem jurídica é um sistema autosuficiente para prover a solução unívoca para qualquer caso concebível. Assim, o Direito consistiria somente em leis.

Finalmente, o "Positivismo Metodológico" ou "Conceitual". Trata-se aqui do tipo de positivismo defendido por autores como Bentham, Austin, Hart, Ross, Kelsen, Bobbio e outros, de acordo com o qual o conceito de Direito não deve caracterizar-se segundo propriedades valorativas, mas sim tomando em conta propriedades descritivas.

Para citar exemplos, veja-se Austin, Hart (ambos considerados por alguns como fundadores da moderna Teoria Geral do Direito inglesa) e Kelsen. Para todos eles, o Direito se reduz a ordens (normas). John Austin concebe o Direito em normas baseadas em ameaça, normas jurídicas consistentes em ordens (comands) emanadas do soberano; e Hart, posteriormente, adere ao seu positivismo, mas não admite a redução regras de toda sorte a um só tipo (as emanadas do soberano). Para Hart, o sistema que formam as regras jurídicas é identificado sobre a base de certos usos ou práticas sociais. Kelsen, por outro lado, vê a norma como um juízo hipotético que expressa o enlace específico (imputação) de uma situação de fato condicionante com uma conseqüência condicionada.

7.3. Teorias Jusnaturalistas

Os que são desta vertente polarizam sua visão do Direito nos valores que o fundamentam ou o legitimam e a cuja consecução se deve encaminhar. O valor da justiça (entendido em um sentido amplo que, a teor das tendências doutrinais ou das circunstâncias, expressará as exigências do ethos social, do bem comum ou dos direitos humanos) constitui, para essa corrente, o norte de toda regra jurídica e o parâmetro para aferir sua correção.

Dentro dessa corrente se inserem várias vertentes: a Teoria do Teologismo, o Jusnaturalismo Racionalista, a Teoria do Historicismo (também conhecida como Realismo Empírico) e a Teoria da Natureza das Coisas.

A Teoria do Teologismo procurou encontrar o fundamento intrínseco do Direito por via diferente: recorreu à idéia da divindade, da qual derivariam imediatamente os princípios do bom e do justo, que deviam ser aceitos mediante a Revelação. O fundamento do Direito teria, portanto, caráter sagrado e, por isso, estaria subtraído a quaisquer controvérsias. O Direito seria, enfim, o Direito revelado. Por tal concepção, na sua versão originária, o próprio Estado teria uma autoridade derivada do querer divino e, por isso, também possuiria caráter sagrado.

Cuidadosamente, para não se debater contra a fé religiosa, o espírito crítico tratou logo de distinguir da Religião tanto a Filosofia como a Ciência, a fim de lhes assegurar a independência. O mesmo se deu no terreno da Filosofia do Direito, sendo dignas de destaque as palavras de GRÓCIO, na sua obra De iure belli ac pacis, de 1625, afirmando que "O Direito natural existiria ainda que Deus não existisse". É claro que Grócio fez tal afirmação depois de uma prévia reprovação explícita do ateísmo, de molde a evidenciar que não se propunha a combater a fé religiosa, mas tão-só dar ao Direito fundamento exclusivamente racional, independente das premissas teológicas. Grócio visava a construir um sistema de Direito internacional de normas aplicáveis aos diversos Estados e não fazia sentido basear esse Direito na religião, que, na sua época, era motivo de lutas e discórdias especialmente entre católicos e protestantes.

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O Jusnaturalismo Racionalista se originou no movimento iluminista e se estendeu pela Europa nos séculos XVII e XVIII, tendo sido exposto por filósofos como SPINOZA, PUFENDORF, WOLFF e KANT. De acordo com esta concepção, o Direito natural não deriva dos mandatos de Deus, mas sim da natureza ou estrutura da razão humana. Os juristas do racionalismo formularam detalhados sistemas de Direito natural, cujas normas básicas, das quais se inferiam logicamente as restantes, constituiam supostos axiomas autoevidentes para a razão humana, comparáveis aos axiomas dos sistemas matemáticos. Os pressupostos e métodos dessa corrente influíram na configuração da chamada "dogmática jurídica", que é a modalidade da ciência do Direito que prevalece nos países de tradição continental européia.

A Teoria do Historicismo se distingue em três correntes: a política, dos filósofos da restauração (De Bonald, De Maistre, Haller e outros); a filosófica (Schelling a Hegel); e a jurídica, que ficou conhecida como Escola Histórica, representada por Savigny, Puchta, Hugo e outros. O historicismo encara o fundamento do Direito na sua qualidade de fato ou processo coletivo, como produto da vida social.

Por fim, de acordo com a Teoria da Natureza das Coisas, que foi defendida por RADBRUCH, DIETZE, MAIHOFER, WELZEL e outros, certos aspectos da realidade possuem força normativa e constituem uma fonte de Direito à qual deve adequar-se o Direito positivo. Trata-se de uma reação mais recente contra o positivismo, para um retorno ao jusnaturalismo. Gustavo Radbruch propõe a "natureza das coisas" como fundamento da "progressiva transformação de uma relação vital em uma relação jurídica, e de uma relação jurídica em uma instituição jurídica." Esta instituição jurídica que deriva não do Direito positivo, mas sim dos fatos da natureza, dos costumes, tradições ou usos ou das relações vitais, é uma espécie de "tipo ideal" que se obtém "mediante a tipificação e a idealização da individualidade da relação vital que se considera." Esta "natureza das coisas" não é diretamente uma fonte do Direito, mas sim "atenua" a tensão entre o ser e o dever ser, estabelece um limite ao legislador enquanto este não pode obrigar a ninguém a algo de cumprimento impossível além de cumprir um importente papel supletório nos casos de lacunas da regulação jurídica. 16


8. COMO ENFRENTAR O PROBLEMA RELATIVO À DIFICULDADE DE CONCEITUAR O DIREITO

O próprio Herbert Hart, em livro totalmente dedicado ao tema ora debatido - aliás, intitulado especialmente de "O Conceito de Direito" -, num certo trecho17, afirma o seguinte:

"Em vários pontos deste livro encontrará o leitor discussões de casos de fronteira em que os teorizadores do direito sentiram dúvidas na aplicação da expressão ‘direito’ ou ‘sistema jurídico’, mas a resolução sugerida para tais dúvidas, que também encontrará aqui, constitui apenas uma preocupação secundária do livro. Porque o seu objetivo não é fornecer uma definição do direito, no sentido de uma regra por referência à qual pode ser testada a correção do uso da palavra; é antes de fazer avançar a teoria jurídica, facultando uma análise melhorada da estrutura definitiva de um sistema jurídico interno e fornecendo uma melhor compreensão das semelhanças e diferenças entre o direito, a coerção e a moral, enquanto tipos de fenômenos sociais. O conjunto de elementos identificados no decurso da discussão crítica dos próximos três capítulos e descritos em detalhe nos capítulos V e VI serve este propósito através de formas que são demonstradas no resto do livro. É por esta razão que são tratados como os elementos centrais no conceito de direito e de primeira importância na sua dilucidação." (Destaques inexistentes no original).

Tal como Hart, muitos outros autores escreveram livros ou dedicaram capítulos de obras suas ao tema "Conceito de Direito" (ou quid ius?), mas, como ele, não se debruçaram na luta desvairada por encontrar uma definição única que abranja toda e qualquer manifestação do fenômeno jurídico. Significa essa postura uma manifestação de que já é tranqüila a compreensão de que o fenômeno do Direito não pode ser sintetizado em um conceito reduzido, válido para todos os tempos, para todos os lugares e para todas as manifestações de tal fenômeno.

Indagar um conceito de Direito implicará, sempre, em buscar compreender muitas questões às quais o tema inarredavelmente conduz e verificar a relação que elas guardam entre si. Quando muito, se poderá identificar e reduzir as inúmeras questões recorrentes a um mínimo dentre elas (às de incidência mais freqüente), em direção às quais o exame do tema sempre conduz, a fim de que se possa estudá-las particularmente. Estudar tais questões passa a ser o mesmo que estudar o conceito de Direito.

O mesmo Hart18, por exemplo, sustenta que "a especulação sobre a natureza do direito tem uma história longa e complicada; todavia, vista em retrospectiva, é nítido que se centrou quase continuamente sobre alguns pontos principais (...)", que são, segundo o referido autor, "aspectos do direito que parecem naturalmente dar origem a incompreensões em todos os tempos, de tal forma que a confusão e uma necessidade conseqüente de maior clareza acerca deles podem coexistir mesmo nos homens avisados, dotados de firme maestria e conhecimento do direito."

Em outro trecho, o mesmo autor19 aponta três das principais questões que, sempre surgindo juntas, aparecem com se fossem um autêntico pedido de definição do Direito: 1ª) Como difere o direito de ordens baseadas em ameaças? 2ª) Como difere a obrigação jurídica da obrigação moral e como está relacionada com esta? 3ª) O que são regras e em que medida é o direito uma questão de regras?

Portanto, perseguir um conceito de Direito equivale exatamente a procurar resposta para questões como essas, referidas por Hart.

Logo, a postura recomendável diante de um conceito tão variável como o de Direito, parece que é aquela sugerida por muitos autores, e bem expressada por Santiago Nino20, de aceitar que há certas razões de peso em favor de várias das posições adotadas a respeito da definição de "direito" e que eleger alguma destas posições não implica tomar partido por uma questão filosófica profunda, mas sim por uma mera questão verbal.

Uma controvérsia sobre o significado que tem ou que se deve dar a certa palavra não representa - uma vez identificada como tal - nenhum obstáculo para o progresso das idéias. Mesmo que as partes não se ponham de acordo, elas podem entender-se perfeitamente se procurarem distinguir cuidadosamente o significado diferente que pretendem dar à palavra mencionada e se procurarem traduzir da linguagem da sua corrente, para a linguagem da outra corrente, o significado daquilo a que se referem.

Desse modo, ao se pretender reportar ao Direito como lei, o melhor é que se use a locução Direito Positivo; ao referir-se ao Direito como Revelação, convém expressar Direito Natural de Origem Divina; desejando mencionar o Direito no seu sentido de faculdade, o ideal é que se use a locução Direito Subjetivo; e assim por diante.

Sobre o autor
Marco Aurélio Lustosa Caminha

Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região. Ex-Procurador Regional do Trabalho. Professor Associado de Direito na Universidade Federal do Piauí. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (Buenos Aires, Argentina). Doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMINHA, Marco Aurélio Lustosa. O conceito de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. -1096, 1 jul. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1. Acesso em: 16 nov. 2024.

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