3. Considerações finais.
Após o exposto, ainda cabe um último questionamento: é possível afirmar que a suposta influência do movimento fascista italiano sobre a formação do direito trabalhista brasileiro, caso tenha sido determinante, foi um mal? Entendemos ser inviável responder essa questão sem que se tome como referência a ideologia e a posição política preponderante em cada momento histórico, em cada governo, em cada indivíduo.
Quando analisados os fundamentos antropológicos e filosóficos do poder público, parece inevitável concluir que à condição humana são inerentes o altruísmo limitado e o constante conflito de interesses. [25] Diz-se altruísmo limitado por ser o indivíduo, segundo a concepção de estado de natureza hobbesiano – aquele momento pré-estatal em que nenhum poder público está instituído e os homens são os seus próprios senhores e deuses, sendo famoso o aforismo "o homem é o lobo do homem" [26] –, coagido pela sua natureza a buscar assegurar o seu próprio bem antes de considerar o bem comum ou o bem dos outros. E fala-se em conflito de interesses pelo fato de que os indivíduos vivem uma constante e incessante busca de poder e mais poder (power after power [27]), de modo que, inevitavelmente, os seus interesses irão colidir com os de outro(s) indivíduo(s).
Cabe aqui esta brevíssima retomada do clássico pensamento de Hobbes para demonstrar que a regulação jurídica por parte do Estado é mais do que uma prerrogativa deste: é uma necessidade imposta pelo indivíduo, após considerar sua própria natureza e perceber que um terceiro imparcial deve ser instituído para regrar e pacificar as relações sociais.
O direito sindical brasileiro, antes da legislação elaborada durante o governo Vargas, preenchia muito – ainda que não todos, obviamente – as características do estado de natureza de Hobbes: trabalhadores e empregadores viviam em uma verdadeira "terra de ninguém" onde tenderia sempre a prevalecer a vontade daquele que fosse o mais forte (via de regra, o empregador). Sem a presença de um terceiro agente, imparcial e soberano, os interesses de trabalhadores e empregadores tenderiam a viver em constante conflito, pois é da natureza humana o altruísmo limitado. Assim, a partir de uma leitura antropológica e filosófico-política, a legislação sindical trabalhista de Vargas foi, respectivamente, uma necessidade e obrigação estabelecida in abstracto quando do contrato social.
No que concerne aos apelos por desregulamentação, a experiência internacional não confirma que elas tenham sido adotadas pela maioria dos países desenvolvidos e em desenvolvimento. Pode-se dizer, na verdade, que as reformas foram exceções. Para a maioria dos países, a reorganização da regulação pública ocorreu e continua a ocorrer paulatinamente, de modo limitado e de forma descontínua no tempo. [28]
Não queremos desqualificar a necessidade de reorganização da estrutura sindical brasileira. A questão que se coloca é sobre a estratégia a ser adotada para o encaminhamento do processo. Sugerimos que a estratégia de reorganização, independentemente de qual vier a ser adotada, seja estabelecida segundo fases, que contemplem mudanças pontuais, mas importantes para a emergência futura de uma conformação da representação sindical menos fragmentada e aprofunde as relações democráticas das instituições que organizam as relações de trabalho no Brasil, fazendo com que sejam considerados também fatores provenientes dos âmbitos sociais, políticos, econômicos, culturais e formativo-educacionais no processo de reforma da nossa organização e regulamentação trabalhista, uma vez que este processo afetará direta e indiretamente todos aqueles âmbitos.
Uma reforma com esse grau de comprometimento social e, inclusive, humanístico, não permitiria que no período de um governo se realizasse a reforma sindical ou mesmo na legislação trabalhista. O caminho a ser trilhado é, com certeza, mais longo, mas talvez seja aquele que possa de fato produzir uma realidade, que supere as perversas desigualdades que gravam a sociedade brasileira.
Notas
- GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. RJ: Editora FGV, 2005, p. 239.
- Carocci, Giampiero. Storia del fascismo. Roma: Newton & Compton, 2003, p. 27.
- "O corporativismo é uma doutrina que propugna a organização da coletividade baseada na associação representativa dos interesses e das atividades profissionais (corporações). Propõe, graças à solidariedade orgânica dos interesses concretos e às fórmulas de colaboração que daí podem derivar, a remoção ou neutralização dos elementos de conflito: a concorrência no plano econômico, a luta de classes no plano social, as diferenças ideológicas no plano político." BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Brasília: Ed. UNB, 1995, p. 287.
- De Felice, Renzo. L’Organizzazione dello Stato fascista, 1925-1929. Torino: Einaudi, 1995, pp. 87-102.
- "La Carta del Lavoro fù approvata dal Gran Consiglio del Fascismo il 21-22 aprile 1927. Da un punto di vista formale, la Carta del Lavoro non era un atto giuridico, non era cioè una legge dello Stato. Di fatti l’attuazione dei suoi principi fù rimessa al governo. Essa fù l’atto più importante della politica del regime, quello che lo classificò sotto il profilo sociale. "Sotto il profilo sociale e in particolare del miglioramento delle condizioni di lavoro, la Carta del Lavoro – scrive De Felice – non innovava in realtà gran che. A parte alcune enunciazione piuttosto generiche, varie norme in essa contenute già preesistevano legislativamente, altre erano già allo studio e in clima politico diverso sarebbero quasi certamente già maturate naturalmente, logico portato dello sviluppo sociale di un paesi in trasformazione abbastanza rapida come era l’Italia, e si può dire che lo spirito di compromesso che presiedette a tutta l’elaborazione della Carta del Lavoro le rese, semai, meno incisive. Contrariamente a quanto sbandierato dal fascismo, che parlo di ‘punto di partenza per la costruzione della nuova organizzazione della società italiana’, di ‘Stato di popolo’ e di altre cose del genere nulla vi era di ‘rivoluzionario’ nella Carta del Lavoro". (Grifo nosso) De Rosa, Gabriele, I Partiti politici in Italia, Milano, Minerva Italica, 1978, p. 322.
- Carocci, Giampiero. Op. cit., p. 61.
- Carocci, Giampiero. Op. cit., p. 63.
- Carocci, Giampiero. Op. cit., p. 64.
- Ibidem.
- LEVINE, Robert M. Pai dos pobres? O Brasil e a era de Vargas. SP: Companhia das Letras, 2001, pp.25-26.
- Ibidem, p. 63.
- Ibidem, pp. 100-103.
- Ibidem, p. 91.
- Ibidem, p. 92.
- Ibidem.
- ROMITA, Arion Sayão. O Fascismo no Direito do Trabalho Brasileiro. SP: LTr, 2001, p.19.
- Ibidem, p.19.
- ROMITA, Arion Sayão, Op. cit., p. 108.
- Em entrevista concedida à Juíza Magda Biavaschi para subsidiar sua tese de doutoramento em Economia Aplicada na UNICAMP, obtido em 2005, com o título O Direito do Trabalho no Brasil – 1930/1942: A construção do sujeito de direitos trabalhistas.
- GOMES, Ângela de Castro. Op. cit., p. 249.
- Ibidem.
- Ibidem, p. 250.
- Cfr. Ibidem, p. 255.
- GOMES, Angela de Castro. Op. cit., p. 258.
- Cfr. TEIXEIRA, Anderson V. Estado de nações: Hobbes e as relações internacionais no séc. XXI, Porto Alegre, Fabris Editor, 2007, pp. 38-39.
- HOBBES, Thomas. Do Cidadão. SP: Martins Fontes, 1998, p. 03.
- "..um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder (power after power), que se encerra apenas com a morte." HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 78.
- BIAVASCHI, Magda; e KREIN, José Dari. (org.). As transformações no mundo do trabalho e os direitos dos trabalhadores. SP: LTr, 2006, p. 88.