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Criminologia, direitos humanos e procedimentos epistemológicos.

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Agenda 19/04/2024 às 12:42

CONCLUSÃO

A Criminologia Humanista dos quatro programas de pesquisa desse estudo desenvolveu uma ontologia Crítico-radical. Nesse tipo de ontologia o conceito de crime e criminalidade deixam os limites tradicionais da estadualidade e libertam o criminologista das “servidões das ordens politicamente impostas” (DIAS & ANDRADE, 1997, p. 80). Diferentemente do que propõe a tradição positivista, onde a Criminologia fica restrita ao conceito de crime do Direito Penal, verifica-se que a partir da ontologia Crítico-radical o pesquisador procura conhecer a vítima e os criminosos no plano da transestadualidade, analisando não apenas os crimes, mas também a danosidade social com ênfase nos danos institucionais. A respeito da Criminologia Crítico-radical, Dias & Andrade (1997, p. 80) afirmaram que ao lado do que dispõe a Penalogia nacional, não se estranhará que ao lado do crime clássico (homicídio, violação, ofensas corporais) a Criminologia Radical tenda a privilegiar crimes que afetam o sentimento da Humanidade, como racismo, a desigualdade entre os sexos e todas as formas de discriminação e exploração. Essa forma de abordagem extrajurídica da criminalidade começou com a Criminologia Liberal, principalmente com o especialista Sutherland, em sua teoria do colarinho branco, que observou que além de ser um comportamento proibido pelo Estado o crime apresentaria conteúdo ético-político. Segundo o mesmo especialista, “só um conceito de crime assente no elemento da danosidade social tornaria possível estender o campo da criminologia às práticas ilegais ou imorais do mundo do grande negócio” (DIAS & ANDRADE, 1997, p. 76). Os criminologistas radicais “recusam [...] as definições que apelam para os sentimentos comuns, as expectativas comuns, os sentimentos ou estados fortes da consciência moral; porque todas elas [...] obedecerão a uma perspectiva epistemológica positivista: - a aceitação da realidade social vigente como a única pensável” (DIAS & ANDRADE, 1997, p. 79).

Também ficou evidente nos quatro programas de pesquisa a utilização de uma metodologia institucionalista; através da qual os autores investigaram os processos de rotulação e criminalização considerando especialmente o fato de que os discursos das instituições projetam um mito de isonomia e um mito da regularidade de exercício do poder, restando comprovado que existem vícios estruturais que se confundem com a cultura nacional. Nessa perspectiva crítica, ao invés de perguntarem “por que as pessoas cometem crimes?, os quatro autores perguntaram, implicitamente “quais são os critérios que presidem à seleção e estigmatização de certas pessoas e quais são as consequências desta estigmatização do ponto de vista de uma carreira delinquente” (DIAS & ANDRADE, 1997, p. 160). A metodologia aplicada priorizou as relações institucionais. A esse respeito, Dias & Andrade (1997, p. 160) esclarecem que essa abordagem “se contrapõe ao modelo estático da criminologia tradicional”. E um resultado positivo dessa metodologia é “alargar o elenco de personagens responsáveis pelo crime, elevando as instâncias formais de controle à categoria de fatores criminógenos” (DIAS & ANDRADE, 1997, p. 160).

Outro instrumento marcante da metodologia utilizada pelos quatro programas de pesquisa desse estudo foi o interacionismo simbólico que focalizou a “delinquência secundária”, ou seja, a delinquência que resulta do processo causal desencadeado pela estigmatização. Nesse ponto, é necessário repetir que o interacionismo simbólico não se propõe a resolver a questão da causalidade, e paradoxalmente introduz novas causas (processuais) no debate da delinquência, por exemplo: estigmatização e injustiça.

A interdisciplinaridade entre Direito Penal e Política Criminal também foi aprofundada metodologicamente entre os quatro programas de pesquisa e reforçou a análise axiológica já expressa pelos especialistas Dias & Andrade (1997, p. 112) que alertaram que não é correto “reduzir a Criminologia à categoria de ciência empírica [...]; é todavia, seguro que as proposições políticas emergentes da criminologia terão sempre a medida e a vis que lhes advêm das realizações conseguidas no plano empírico”. Completando esse ponto de vista, os dois autores portugueses lembraram em sentido contrário que a “constelação axiológica” dá impulso à Criminologia para agir e serve também “como fonte onde radica a legitimidade do poder que exprime” (DIAS & ANDRADE, 1997, p. 112). Os mesmos autores concluíram dizendo que “é a partir do que é que a Criminologia avança juízos de dever-ser; e é a partir do que deve ser que a política criminal se propõe a transformar o que é” (DIAS & ANDRADE, 1997, p. 113).

A axiologia política declarada pelos quatro programas de pesquisa foi claramente antipositivista e liberal e nessa direção os pesquisadores procuraram “racionalizar”, humanizar e “eficientizar” as instituições além de refutarem dois mitos institucionais. Conforme dito anteriormente, a Criminologia Crítico-liberal surgiu com Beccaria, na Itália; Bentham, na Inglaterra; e Feuerbach, na Alemanha. No século XVIII, e atualmente através dos neobeccarianismo, ou neogarantismo, os liberais defendem um novo sistema criminal com o reforço da vigilância contra o autoritarismo e a inclusão radical de princípios humanistas no Direito Penal, procurando principalmente superar a justiça de gabinete, o processo inquisitorialista, a prática da tortura, etc. A preocupação essencial dos garantistas é a salvaguarda dos direitos do imputado por meio da atuação de um juiz obediente à Lei, e que julgue o processo de modo imparcial. Na década de 1930, o salto quântico da Criminologia Liberal aconteceu com as teorias do Conflito desenvolvidas pela Escola de Chicago, especialmente agrupadas no termo labeling approach, rejeitando o idealismo penal e desenvolvendo uma postura realista e cética sobre o sistema de justiça criminal. Os liberais da Escola de Chicago contestaram substancialmente o dogma da isonomia; e em seu lugar enfatizaram que existe flagrante irregularidade no exercício do poder associada ao contexto de desigualdades sociais e penais. Os sociólogos do labeling approach, por exemplo, passaram a investigar a formação da identidade desviante, destacando-se em suas análises o “delinquente secundário” devido à reação desse sujeito contra as etiquetas “criminoso” e “doente mental” emitidas arbitrariamente pelo grupo, Estado ou sociedade.

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Reforçando a ideologia liberal, os quatro programas de pesquisa anteriores interligaram os objetos de estudo tradicionais da Criminologia usando como fio condutor a teoria do garantismo ao lado da teoria da violência pública, que juntas animaram a dinâmica dos objetos de estudo e se comportaram por essa razão como duas teorias ontológicas. Especificamente: a teoria do garantismo penal, apesar de marcada pelo ideário iluminista e naturalmente pela pretensão universalista típica dos paradigmas científicos, apresenta no contexto global de violações aos direitos humanos interessante mecanismo de fomento à minimização dos poderes punitivos. Desta maneira, essa teoria visualiza a otimização dos direitos fundamentais desde a perspectiva crítica da dogmática jurídica; sendo assim, ela percebe o sistema normativo como instrumental eminentemente prático que deve ser pensado e desenvolvido para a resistência ao inquisitorialismo nas práticas judiciais e administrativas cotidianas (CARVALHO, 2010, p.127). A teoria da violência pública, ao mesmo tempo, permitiu aos programas de pesquisa analisarem os danos institucionais, acompanhando a perspectiva defendida pelos criminologistas radicais que consideram que há comunidades étnicas, nacionais, religiosas ou raciais que são vítimas; e inversamente há formações políticas que podem ser qualificadas como criminosas (DIAS & ANDRADE, 1990, p. 80). Trilhando essa perspectiva crítica, os criminologistas radicais apontam que o Estado pode ser um criminoso e por isso pode praticar violência pública. Compartilhando essa mesma abordagem que denuncia o potencial criminoso do Estado, Salo de Carvalho (2010, p. 23) afirmou que “a postura comprometida com os direitos e garantias das pessoas pressupõe inexoravelmente a desconfiança do agir dos aparatos punitivos, vista a tendência sempre presente e real do abuso do poder pelos atores que o detêm”.

Fazendo parte da Criminologia Radical os quatro programas de pesquisa desse estudo utilizaram também, exaustivamente, a teoria do labeling approach , considerando, por exemplo, que “a identidade, o self, não é um dado, uma estrutura sobre a qual atuam as causas endógenas e exógenas, mas algo que se vai adquirindo e modelando ao longo do processo de interação entre o sujeito e os outros (DIAS & ANDRADE, 1997, p. 51). Além do mais, o labeling approach usado pelos quatro autores “partiu do princípio de que a deviance não é uma qualidade ontológica da ação, mas, antes, o resultado de uma reação social, e de que o delinquente apenas se distingue do Homem normal devido à estigmatização que sofre” (DIAS & ANDRADE, 1997, p. 49).

Em termos práticos, os quatro programas de pesquisa elaboraram uma crítica radical sobre o maximalismo penal, o que exigiu dos pesquisadores alternativas visando à garantia dos direitos fundamentais. Nesse sentido, os programas de pesquisa: 1- propuseram a redução dos danos decorrentes da punitividade, 2- defenderam as garantias individuais e 3- ressaltaram a “observância dos postulados constitucionais de proporcionalidade, razoabilidade e proibição do excesso (CARVALHO, 2010, p. 153).

No debate político e penalógico dos quatro programas de pesquisa criticou-se intensamente o Direito Penal do Inimigo. Sobre esse direito autoritário, Zaffaroni & Oliveira (2010, p. 117) informam que o autor Jakobs, nos anos de 1990, “pretendeu que a distinção entre um direito penal do cidadão e outro do inimigo deveria ser entendida em chave filosófica”. Nessa perspectiva, “quem assalta o banco para gastar com prostitutas e álcool seria um cidadão; mas quem o faz para solver uma resistência ao Estado seria um inimigo”.

Em desfavor do Direito Penal do Inimigo, a Criminologia Humanista desse estudo alertou sobre o avanço do maximalismo penal anunciando que “qualquer ser humano que seja inadequado à moral punitiva ou à estética criminológica; [...] objetificado pelo estigma periculosista” poderá ter os seus direitos fundamentais violados facilmente pelo Direito e pela Política (CARVALHO, 2010, p. 135).

Finalmente, foi consensual entre os quatro programas de pesquisa o reconhecimento do mesmo contexto institucional envolvendo vítimas e agressores. Nessa direção, ficou patente entre os quatro programas de pesquisa o poder discricionário abusivo da Polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Segundo Dias & Andrade (1997) a Polícia tem livre escolha dos critérios que servem para localizar e enfrentar a criminalidade. Nesse sentido, a Polícia pode pegar carona em estereótipos racistas que ajudam a desenhar o perfil do pré-criminoso, e aborda principalmente pessoas de cor negra, mesmo não havendo indícios de terem praticado algum delito. Também um jovem de cor branca bem-vestido andando em bairro de periferia despertará suspeita, podendo ser no olhar policial usuário ou traficante de drogas. Além disso, a Polícia pode investigar sem nenhuma formalidade o passado da vítima a fim de saber se ela é usuária de drogas, se é conhecida na vizinhança, ou se goza de boa ou má reputação, etc. O dia a dia mostra também que a Polícia tende a ser mais compreensiva e tolerante com aqueles suspeitos que manifestam humildade e respeito pela autoridade policial, ou com aqueles indivíduos que demonstrem vontade de confessar o delito praticado. Em outra situação, jovens que se mostrem arrependidos pela infração cometida, ou que demonstrem medo da punição, e respondem às perguntas, educadamente, dizendo sempre “- sim senhor; não senhor!”, serão encarados como indivíduos recuperáveis; porém, em situação oposta, esse mesmo jovem ou cidadão ao desafiar a autoridade da Polícia pode abalar a autoestima do agente e causar alguma reação violenta da sua parte. Admite-se também que a Polícia precisa “meter a mão na massa”, por isso comete excessos contra o inimigo oculto, pois dispõem muitas vezes de frações de segundos para reagir aos ataques criminosos. Dias & Andrade (1997) consideraram por essas e outras razões que a figura do policial desperta sentimentos contraditórios. Uma parcela da sociedade considera o policial um super-herói, outra parcela o identifica como usurpador de direitos humanos. O Ministério Público possui também poder discricionário. Essa instituição deve dar uma resposta formal às demandas da sociedade, entretanto, seu poder se alargou tanto que é possível verificar a sua intervenção máxima na confissão da culpa, ou na condução de acordos entre as partes, ou na recomendação de certas políticas públicas, ou ainda na condução das delações premiadas que fazem o promotor parecer um juiz atuando fora do Tribunal. No Poder Judiciário, juízes e advogados também desenvolvem critérios próprios na caracterização do criminoso e da vítima. A Criminologia Crítica considera sobre essa situação que mesmo dentro da legalidade existem influências pessoais, estereótipos, ideologias e teorias diversas que aumentam a imprevisibilidade do processo judicial. A esse respeito, é oportuno lembrar Ronald Dworkin, em sua obra “Império do Direito”, que identificou três modos diferentes de produção de uma sentença: convencionalista, pragmatista e integralista. O aspecto mais revelador do poder discricionário do juiz aparece quando os mesmos temas ou fatos são julgados com argumentos substancialmente adversos pelo mesmo juiz, o que comprova a hipótese de que o mesmo tipo penal varia na percepção dos notáveis.

As pesquisas institucionais da Criminologia Crítica mostram nessa direção que existem fatores ideológicos, sexuais, morais, raciais, etc., orientando a aplicação da Lei nos Tribunais, confirmando a existência do mito da isonomia penal.


REFERÊNCIAS

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Sobre o autor
Heraldo Elias Montarroyos

Professor da Faculdade de Direito UNIFESSPA - Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, Marabá.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTARROYOS, Heraldo Elias. Criminologia, direitos humanos e procedimentos epistemológicos.: O pensamento crítico e seus fundamentos programáticos nas teses e dissertações da Faculdade de Direito da USP. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7597, 19 abr. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100689. Acesso em: 22 dez. 2024.

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