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Atuação do Ministério Público na proteção do patrimônio cultural imaterial

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O texto estuda o bem cultural imaterial e os instrumentos jurídicos existentes para a sua proteção, de modo a contribuir para o aprimoramento da tutela jurídica deferida ao patrimônio cultural.

Sumário: 1. Introdução. 2. Meio ambiente cultural. 3. Patrimônio cultural 3.1 Patrimônio cultural imaterial. 3.2 Conteúdo material do patrimônio cultural. 4. Competência para a legislação protetiva. 4.1 A União. 4.2 O Estado de Minas Gerais. 4.3 O Município de Belo Horizonte. 5. Atribuições executivas. 6. Formas de proteção. 6.1 O tombamento. 6.2 O Registro documental. 7. Intervenção do Ministério Público. 7.1 identificação de valor cultural. 7.2 estudo de impacto sobre o patrimônio cultural. 7.3 ação civil pública. 8. Conclusões.


1. Introdução

A tarefa de identificar e preservar o patrimônio cultural brasileiro é constitucionalmente imposta ao Poder Público, que para tanto deve receber a colaboração da comunidade. Se o patrimônio cultural é um bem de interesse da coletividade, e a preservação de sua integridade e dos mecanismos para seu acesso são garantias constitucionais expressas, deve-se reconhecer que a comunidade o tem o direito público subjetivo à proteção prometida.

Nestes termos, a atuação protetiva do Ministério Público ao patrimônio cultural é uma obrigação constitucional. Isto significa que, independentemente da atuação dos outros órgãos ou poderes incumbidos da proteção ao patrimônio cultural, o Ministério Público deve promover todas as medidas que estiverem a sua disposição para cumprir sua função institucional.

No âmbito deste apertado estudo, pretende-se refletir sobre as peculiaridades do bem cultural imaterial e dos instrumentos jurídicos de que o Ministério Público dispõe para a sua proteção, de modo a provocar debate que possa contribuir para o aprimoramento da tutela jurídica deferida ao patrimônio cultural.


2. Meio ambiente cultural

Inicialmente, é necessário perceber que o patrimônio cultural integra a noção de meio ambiente e é, nesse sentido, que recebe a tutela constitucional. A constituição federal não conceitua o meio ambiente. Como bem jurídico, antes da edição do texto constitucional, o meio ambiente já possuía definição legal no art. 3°, inciso I, da Lei n° 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a política nacional do meio ambiente. Segundo este dispositivo, meio ambiente é "o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas." Tal definição foi recepcionada pela carta magna de 1988.

Cabe perceber que, segundo a concepção do legislador brasileiro, o meio ambiente não abrange somente o meio ambiente natural (constituído pela fauna, a flora, o solo, a água e o ar atmosférico), mas também, o meio ambiente artificial, o meio ambiente do trabalho e o meio ambiente cultural. [01] Em uma perspectiva ampla que não se resume aos recursos naturais, mas está relacionada também com tudo que quanto permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas [02], o meio ambiente deve ser concebido como "interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida humana." [03] Vale observar que o meio ambiente do trabalho encontra previsão constitucional expressa no inciso VIII de seu art. 200.

No que diz respeito ao meio ambiente cultural, a doutrina consolidou o entendimento segundo o qual:

"A visão holística do meio ambiente leva-nos à consideração de seu caráter social, uma vez definido constitucionalmente como bem de uso comum do povo, caráter ao mesmo tempo histórico, porquanto o meio ambiente resulta das relações do ser humano com o mundo natural no decorrer do tempo.

Esta visão faz-nos incluir no conceito de meio ambiente, além dos ecossistemas naturais, as sucessivas criações do espírito humano que se traduzem nas suas múltiplas obras. Por isso, as modernas políticas ambientais consideram relevante ocupar-se do patrimônio cultural, expresso em realizações significativas que caracterizam, de maneira particular, os assentamentos humanos e as paisagens do seu entorno." [04]

Certamente, o ambiente cultural permite, abriga e, de certa forma, rege a vida dos homens. Não se pode conceber a existência humana fora de um determinado contexto sócio-cultural. Os valores culturais permitem o estabelecimento da identidade do homem com um determinado grupamento social, que o acolhe e lhe permite o desenvolvimento de suas potencialidades. Não foi por outra razão que na Lei 9.605/98 – Lei dos crimes ambientais – consta no capítulo V a seção IV que trata dos crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural.

"O patrimônio cultural de um povo lhe confere identidade e orientação, pressupostos básicos para que se reconheça como comunidade, inspirando valores ligados à pátria, à ética e à solidariedade e estimulando o exercício da cidadania, através de um profundo senso de lugar e de continuidade histórica. Os sentimentos que o patrimônio evoca são transcendentes, ao mesmo tempo em que sua materialidade povoa o cotidiano e referencia fortemente a vida das pessoas." [05]

Por isso, o art. 215 da Constituição Federal dispõe que "o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais." A regra estabelece para o poder público a obrigação, em favor da coletividade, de proteção ao exercício dos direitos culturais e ao acesso às fontes de cultura.


3. Patrimônio cultural

No direito romano, a idéia de "patrimônio" esteve sempre ligada ao conjunto de bens que uma pessoa poderia possuir, dentre os quais se incluía a sua casa, as suas terras, seus escravos e, até mesmo, suas mulheres (que não eram consideradas cidadãs). Fora do "patrimônio" estavam as coisas que não podiam pertencer ao indivíduo, como as ruas, praças e os templos. [06] Esta idéia privatista de patrimônio nos influencia até os dias atuais [07], mas não pode se conciliar com a idéia de cultura.

A cultura pode ser entendida como o conjunto de formas relativamente homogêneas e socialmente aceitas de pensamentos, sentimentos e ações, bem como dos objetos materiais a eles inerentes, que se colocam como peculiares a determinado grupamento social. A cultura possui a característica de ser compartilhada, transmissível e apreendida pelos membros deste grupamento, em um processo denominado socialização. [08] Segundo Darci Ribeiro, cultura é "a herança de uma comunidade humana, representada pelo acervo co-participado de modos padronizados de adaptação à natureza, para o provimento da subsistência; de normas e instituições reguladoras das relações sociais e de corpos de saber, de valores e de crenças com que explicam a experiência, exprimem sua atividade artística e se motivam para a ação." [09] No mesmo sentido, Miguel Reale leciona que a cultura pode ser considerada o patrimônio de espiritualidade constituído pela espécie humana através do tempo, de modo que as ciências culturais não tem como objeto o estudo dos indivíduos ou pessoas, como tais, mas as expressões supraindividuais do espírito humano no processo histórico. [10] Sem dúvidas, não se pode conceber uma cultura individual ou privada: necessariamente a cultura é construção coletiva que se aperfeiçoa pela experiência da espécie humana, no curso de sua história.

O patrimônio cultural, portanto, é construção de um povo. É acervo de símbolos e sentimentos que se transmite pelas gerações. Constitui um direito difuso do povo brasileiro, na medida em que é um direito transindividual, cuja titularidade pertence a um número indeterminado de pessoas ligadas por situação de fato e seu objeto é insuscetível de divisão, nos exatos termos do art. 81, parágrafo único, inciso I, da Lei 8.078/90. [11]

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A Constituição Federal não definiu um conceito jurídico para o patrimônio cultural, mas em seu art. 216 exemplificou bens que constituem o patrimônio cultural brasileiro. Nesse sentido, "constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico."

A previsão constitucional consagra proteção ao pluralismo cultural, na medida em que menciona os bens que sejam portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Não se trata de proteger apenas os bens eruditos ou excepcionais indicados pelas elites sociais, mas aqueles que retratam a diversidade e a riqueza de manifestações que conformam as peculiaridades do povo brasileiro. Com certeza, algumas manifestações culturais são mais elaboradas do que outras. Mas, "a cultura brasileira não é única, não se resume ao eixo Rio- São Paulo nem ao Barroco mineiro e nordestino, mas é aquela que resulta da atuação e interação dinâmica de todos os grupos e classes sociais de todas as regiões." [12] Isto implica na obrigação de preservar uma convivência harmônica entre as mais diversas formas de expressão cultural. Em outras palavras, o poder público deve intervir de modo a impedir que determinadas manifestações culturais, concepções sobre a forma mais adequada de viver, não excluam ou impeçam a manifestação de outras formas ou concepções sobre a maneira mais adequada de se viver em sociedade.

3.1 patrimônio cultural imaterial

De maneira expressa, nossa carta magna esclarece que o patrimônio cultural se refere tanto a bens materiais, como objetos e edificações, quanto imateriais, como as formas de expressão, os modos de viver e as criações do espírito humano. Sob a forma de bens imateriais, o patrimônio cultural compreende "toda a produção cultural de um povo, desde sua expressão musical, até sua memória oral, passando por elementos caracterizadores de sua civilização." [13]

Segundo a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, aprovada pela Unesco em 17 de outubro de 2003, "entende-se por ‘patrimônio cultural imaterial’ as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana". [14]

No Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN tramitam alguns procedimentos administrativos para o registro de bens imateriais. Dentre eles estão o Toque dos Sinos de São João Del Rei/ MG e o Festival Folclórico de Parintins dos Bumbás Garantido e Caprichoso/AM. [15] Tais referências culturais são muito ilustrativas do que se deva entender por bem cultural de natureza imaterial.

A identificação do patrimônio cultural material é mais facilmente realizada pelo poder público. Inúmeros objetos, monumentos e sítios (urbanos e/ou rurais) são protegidos por tombamento e passam a constituir referencias culturais. O patrimônio imaterial, atém mesmo pela dificuldades inerentes à sua natureza, não recebe a mesma atenção.

Para melhor entender o patrimônio imaterial é necessário fazer uma distinção inicial: os bens culturais a que a constituição expressamente se refere como integrantes do patrimônio brasileiro não se confundem com o objeto material que oferece suporte físico para os bens de interesse cultural. Nesse sentido, muito esclarecedora é a explicação da professora Sonia Rabello de Castro:

...O bem jurídico, objeto da proteção, está materializado na coisa, mas não é a coisa em si: é o seu significado simbólico, traduzido pelo valor cultural que ela representa. A partir do surgimento da coisa, passa ela a ter uma presença no mundo fático, podendo ou não vir a ter interesse jurídico. Cabe ao Estado este reconhecimento jurídico. Há, portanto, uma bifurcação na relação jurídica quanto ao objeto – uma enquanto coisa, apropriável, objeto do direito de propriedade; outra, como bem não econômico que, a partir do reconhecimento de seu valor cultural, torna-se de interesse geral. [16]

Com certeza, os direitos são sempre bens incorpóreos. Mas, agora nos interessa perceber os objetos dos direitos. A divisão classificatória de bens que os denomina de materiais ou imateriais (tangíveis ou intangíveis, como diziam os romanos) se refere aos objetos de tais direitos. [17] Os bens culturais imateriais podem estar amparados em suportes físicos. Uma música pode estar na memória das pessoas ou escrita em uma partitura, o conhecimento tradicional pode ser objeto de transmissão oral ou estar escrito em papel, a dança se materializa no corpo físico do artista. O que caracteriza o bem imaterial é a relevância que possui a manifestação do espírito humano em relação ao suporte físico que lhe dê consistência. No bem imaterial o suporte físico não é o mais relevante. Nos importa preservar a beleza e a emoção que o Bumba-meu-boi possa causar nas pessoas e não quem execute esteja, momentaneamente, executando as acrobacias na praça pública.

Mesmo reconhecida a existência de uma patrimônio cultural imaterial a preservar, por sua natureza peculiar, a tarefa constitui grande desafio aos operadores do direito. As mais relevantes formas de expressão do povo brasileiro já estão identificadas ? quais são seus modos de criar, fazer e viver ? como oferecer uma proteção eficaz para o patrimônio cultural imaterial ? A reflexão nos leva a concluir que o trabalho realizado pelo poder público para a preservação do patrimônio imaterial ainda é muito incipiente e exige uma intervenção mais qualificada dos órgão incumbidos da proteção ao patrimônio imaterial, dentre os quais o Ministério Público.

3.2 conteúdo material do patrimônio cultural

Um importante aspecto do patrimônio cultural, muitas vezes esquecido, é constituído pelo patrimônio turístico. [18] Os monumentos artísticos, arqueológicos e históricos, as paisagens notáveis, as manifestações culturais folclóricas ou religiosas possuem a capacidade de proporcionar sensação de prazer e bem estar que, consequentemente, atrai a atenção das pessoas e as motiva para a visitação. As referências turísticas, bem como as representações e sentimentos que a elas são relacionados constituem faceta importante do patrimônio cultural que importa à coletividade preservar.

A reflexão sobre o patrimônio turístico é capaz de nos alertar para o fato de que o patrimônio cultural possui sempre um conteúdo material, que é a efetiva e cotidiana vivência de suas referências pelas comunidades. Não se pode conceber o patrimônio cultural a partir da identificação e das experiências individuais. O bem cultural deve estar inserido em um determinado contexto social, que constitui seu pressuposto sociológico, sendo produzido e aperfeiçoado constantemente pela experiência coletiva. Por isso, o bem cultural recebe reconhecimento e legitimidade da coletividade e não dos pequenos grupos que possam se considerar a elite cultural.

No entanto, ainda é procedente a crítica segundo a qual a preservação do patrimônio cultural no Brasil se deu mais em decorrência de iniciativas da elite intelectual e da Igreja do que de uma consciência coletiva quanto às referências da identidade nacional. [19]


4. Competência para a legislação protetiva

A norma constitucional protetiva do patrimônio cultural inserta no art. 216 é de natureza programática e necessita de regulamentação por legislação infra-constitucional. No entanto, é necessário perceber que a norma constitucional impõe ao Estado o dever de proteção em favor do bem jurídico fundamental meio ambiente, exigindo-lhe a edição de normas infraconstitucionais de direito material e processual que garantam a efetividade da proteção prometida. Nesse sentido, esclarece o Prof. Luiz Henrique Marinoni:

".. .o direito à proteção não exige somente normas de conteúdo material, mas igualmente normas processuais. Isso quer dizer que o direito à proteção dos direitos fundamentais tem como corolário o direito à preordenação das técnicas adequadas à efetividade da tutela jurisdicional, as quais não são mais do que respostas do Estado ao seu dever de proteção." [20]

Segundo o artigo 24, inciso VII, "compete à União, aos estados e ao distrito Federal legislar concorrentemente sobre proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico." A competência concorrente é novidade estabelecida pela Constituição brasileira de 88 e, conforme lição do prof. Raul Machado Horta, "cria outro ordenamento jurídico dentro do Estado Federal, o ordenamento misto, formado pela participação do titular do ordenamento central e dos titulares de ordenamentos parciais." [21]

A repartição da competência legislativa decorre da nova conformação que se deu ao federalismo brasileiro. Com efeito, "o federalismo de hoje é consciente de sua dimensão política e não é visto apenas como uma técnica de convivência de disparidades em uma certa unidade, pelo contrário, sobretudo após a década de sessenta, em razão das severas críticas de que foi e tem sido objeto o welfare state, o federalismo passa a ser visto como instrumento de uma maior efetividade da cidadania, inclusive direta, na medida em que descentraliza o poder e permite uma maior proximidade do cidadão dos pólos de poder, dos centros de decisão." [22] É a consolidação do federalismo vertical ou de cooperação.

A competência concorrente conciliou a participação dos entes federativos na conformação da ordem jurídica e, assim, tornou-se necessário definir as regras da participação da União e dos Estados. Nos parágrafos do artigo 24, o texto constitucional esclarece que no âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais. O que significa que aos Estados-membros coube a regulamentação das particularidades regionais, ou seja, a disposição dos pormenores que atendem às peculiaridades regionais. Expressamente a constituição federal esclarece que a competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados. Nem mesmo a inexistência de norma geral, de competência da União, impede que o Estado-membro estabeleça proteção jurídica ao patrimônio cultural. Novamente a constituição é expressa em afirmar que inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades. Nesse caso, a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, apenas no que lhe for contrário.

Assinala ainda o prof. Machado Horta que "é manifesta a importância desse tipo de legislação em federação continental, como a brasileira, marcada pela diferenciação entre grandes e pequenos Estados, entre Estados industriais em fase de alto desenvolvimento e Estados agrários e de incipiente desenvolvimento industrial, entre Estados exploradores e Estados consumidores.. . A legislação concorrente, não obstante as omissões, alargará o domínio dos poderes reservados aos Estados e certamente abrirá aos Estados um período de atividade legislativa profundamente diverso do período de retraimento dos poderes reservados, no qual viveram os Estados-Membros, em contraste com a plenitude dominadora dos poderes enumerados da Federação." [23]

Os Municípios não foram contemplados na planificação da competência legislativa concorrente, mas a eles também foi imposto o dever de promover a proteção do patrimônio histórico cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual – art. 30, inciso IX da CF/88. Para desempenhar tal função, o inciso II do art. 30 da Constituição Federal dispõe que "compete aos municípios suplementar a legislação federal e a estadual no que couber." Neste diapasão, embora de maneira restrita, deve-se reconhecer que o município possui competência legislativa suplementar e instrumental para a proteção do patrimônio cultural. Tal competência é decorrente da atribuição executiva e encontra-se limitada pela regra do interesse local. [24] Isto significa que os municípios podem e devem editar as normas necessárias aos desenvolvimento de sua atividade protetiva aos bens culturais de interesse local, observadas as regras da legislação federal e estadual.

No contexto da legislação protetiva dos bens que compõem o patrimônio cultural, além da conformação às regras gerais ditadas pela União, há que se observar a abrangência da área de influência da referência cultural a ser identificada. A União, os Estados-membros e os Municípios podem estabelecer regras para o instituto do tombamento, por exemplo. Mas, as regras estaduais não podem alterar o instituto concebido pela União e, por sua vez, as regras municipais não podem contrariar as disposições estaduais que lhes são pertinentes. Por outro lado, para o contexto de atuação de cada ente federativo, a União estabelece regras para a identificação das referências culturais de abrangência nacional, os Estados para a identificação daquelas de abrangência regional e os Municípios para os dados de interesse local. [25]

4.1 a União

No que diz respeito a edição das normas relativas às técnicas processuais que realizem as necessidades protetivas do direito material, a competência é privativa da União para a edição de normas de Direito Processual Civil conforme o disposto no art. 22, inciso I, da CF/88. Em obediência ao seu específico dever de proteção, visando instituir instrumentos jurídicos necessários à tutela do meio ambiente, a União editou a Lei 7.347/85 que regulou o exercício da ação civil pública. Não se pode esquecer a importância do art. 84 da Lei 8.078/90 que, instituindo as tutelas antecipatória específica, inibitória e de afastamento do ilícito no processo coletivo, viabilizou medidas executivas, que prescindem do processo de execução, podem realizar as garantias constitucionais independentemente da vontade do demandado. Estas recentes inovações do processo civil constituem importantes instrumentos para a efetiva realização da tutela do meio ambiente. [26]

No que toca ao direito material, muito importante é a Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente e em seu art. 14, § 1°, estabeleceu a responsabilidade objetiva de reparar e/ou indenizar os danos causados ao meio ambiente. No que diz respeito ao direito penal, a Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, regulamentou a responsabilidade penal da pessoa jurídica e instituiu os crimes ambientais, dentre eles os crimes contra o patrimônio cultural. No que diz respeito aos incentivos financeiros aos projetos culturais, não se pode deixar de citar as Leis 8.313/91 e 8.685/93.

No entanto, não existe Lei Federal que trate especificamente do patrimônio cultural imaterial. Regulamentando diretamente o art. 216 da Constituição Federal, o Decreto Federal n° 3.551, de 4 de agosto de 2000, instituiu o registro de bens culturais de natureza imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, criando também o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial.

O referido Decreto institui o registro de bens culturais de natureza imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro. Segundo o parágrafo 1° de seu art.1°, o registro dos bens imateriais será feito em um dos seguintes livros:

I - Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades;

II - Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social;

III - Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas;

IV - Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas.

Com estes livros não se pretendeu exaurir as possibilidades de registro, pois o parágrafo 3° do mesmo artigo dispõe que outros livros poderão ser abertos para o registro de bens não se enquadrem nos livros definidos no parágrafo 1°.

O processo de registro dos bens culturais em livros se assemelha ao processo de tombamento, mas não produz os efeitos restritivos que são próprios aquele. O registro identifica a referência cultural e, na medida em que contenha informações relativas aos seus dados históricos e características peculiares, permite o acesso das pessoas às informações necessárias ao conhecimento e divulgação da manifestação cultural.

4.2 o Estado de Minas Gerais

Com base na competência concorrente estabelecida, os Estados membros da federação podem e devem produzir legislação capaz de preservar as referências materiais e imateriais que constituem o patrimônio cultural.

No Estado de Minas Gerais, o art 3° da Lei Estadual n° 11.726/94, determina que "constituem patrimônio cultural mineiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, que contenham referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade mineira, entre os quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, tecnológicas e artísticas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados a manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, espeleológico, paleontológico, ecológico e científico. Regulamentando a resposta protetiva ao patrimônio cultural imaterial, o Decreto n° 42.505, de 15 de abril de 2002, instituiu formas de registros de bens culturais de natureza imaterial ou intangível que constituem patrimônio cultural de Minas Gerais. O parágrafo 1° do art. 1° do referido Decreto Estadual reproduz a classificação dos livros imposta pelo Decreto Federal e determina que a inscrição do bem imaterial se dê em livros destinados ao registro dos Saberes, das Celebrações, das Formas de Expressão, ou dos Lugares.

4.3 O Município de Belo Horizonte

O município de Belo Horizonte, no exercício da competência suplementar que lhe foi deferida para viabilizar as atividades de proteção aos bens culturais, editou as Leis Municipais 3.802, de 06 de julho de 1984, e n° 9000, de 29 de dezembro de 2004.

No que diz respeito ao patrimônio imaterial, a Lei 9000/04, em seu artigo 1°, parágrafo 1° determina que "são considerados bens culturais de natureza imaterial: I - os processos de criação, manutenção e transmissão de conhecimento; II - as práticas e as manifestações dos diversos grupo socioculturais que compõem a identidade e a memória do município; III - as condições materiais necessárias ao desenvolvimento dos procedimentos de que tratam os incisos I e II e os produtos de natureza material derivados.

Nos parágrafos 6° e 7° da referida lei consta que os registros dos bens imateriais também deverão ser feitos em livros próprios destinados ao assentamento dos Saberes, das Celebrações, das Formas de Expressão, e dos Lugares, sem prejuízo da abertura de outros livros para o registro de bens que não se enquadrem nos anteriormente mencionados. Segundo disposto no parágrafo 4°, o registro de bens culturais de natureza imaterial é de competência exclusiva do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte, que teve seu regimento interno aprovado pelo Decreto n° 5.531, de 17 de dezembro de 1986.

Sobre o autor
Fernando Antonio Nogueira Galvão da Rocha

juiz civil do Tribunal de Justiça Militar, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Fernando Antonio Nogueira Galvão. Atuação do Ministério Público na proteção do patrimônio cultural imaterial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1472, 13 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10104. Acesso em: 23 nov. 2024.

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