3. Liberdade de expressão e proselitismo religioso.
Elival da Silva Ramos, no artigo já indicado, redigido na vigência da Constituição anterior, argumentava que a liberdade de proselitismo religioso e de ministrar ensinamentos religiosos recebeu agasalho constitucional de modo indireto, ao se assegurar a liberdade de manifestação do pensamento[27]. Em sentido convergente, a Corte Européia de Direitos Humanos entendeu que a pregação está protegida pela cláusula que garante a todos a livre manifestação das idéias religiosas (art. 9º da Convenção Européia de Direitos Humanos). Para o Estado requerido, a conduta do requerente violara a liberdade de consciência religiosa da esposa do religioso ortodoxo; o voto majoritário da Corte, todavia, asseverou que não fora provado nenhum abuso da liberdade de manifestação naquele caso concreto.
O paradigma citado è bastante apropriado para definir os contornos da liberdade de proselitismo religioso em nosso sistema constitucional. De fato, o direito está garantido prima facie[28] pela norma que assegura a todos a livre manifestação do pensamento, sendo apenas vedado o anonimato (CR, art. 5, IV), e também pela norma contida no art. 220 da Constituição (A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição). O direito ao proselitismo religioso assegura, em primeiro lugar, a proteção do indivíduo em face de ingerências indevidas do Estado (função de defesa, liberdade negativa). Isto significa que os poderes públicos não estão autorizados a cercear indevidamente esse direito. Significa, também, que a Constituição permite ao indivíduo e às igrejas fazerem, livremente, pregações e catequeses (função de defesa, liberdade positiva).
Em segundo lugar, o direito em exame impõe ao Estado o dever de assegurar a todos, igualmente, o exercício do proselitismo religioso (função de não-discriminação), não sendo obviamente permitido aos poderes públicos autorizar a pregação religiosa de uma religião e proibir a catequese feita pelas demais[29].
4. Religiões e meios de comunicação de massa
Como é sabido, o acesso ao rádio e à TV é naturalmente limitado às faixas de freqüência de transmissão (AM, FM, VHF, UHF), de modo que esses dois principais meios de comunicação de massa não são acessíveis a todos aqueles que queiram divulgar suas idéias[30]. Nos termos do art. 223 da Constituição, cabe ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal, competindo, por sua vez, ao Congresso Nacional ratificar ou não o ato de outorga. Pois bem. Como dissemos no início deste artigo, apenas algumas poucas igrejas em sua maioria neopentecostais - foram agraciadas pelo Estado brasileiro com concessões públicas de rádio e TV. Essas agremiações, porque possuem uma audiência de milhões de espectadores, arrebanham muitos fiéis e aumentam a cada dia sua influência na sociedade, elegendo, inclusive, numerosos representantes no Congresso Nacional. Algumas delas, no intuito de conseguir mais adeptos, também usam o espaço televisivo e radiofônico de que dispõem para desqualificar outras religiões minoritárias.
Em recente artigo sobre o fundamentalismo, Marilena Chauí apresenta uma explicação filosófica para essas disputas e questiona a capacidade das grandes religiões monoteístas judaísmo, cristianismo e islamismo de conviverem em um ambiente democrático[31].
Já fizemos referência à intervenção repressiva do Estado, em algumas hipóteses de abuso da liberdade de proselitismo religioso. O art. 208 do Código Penal sanciona aquele que escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa ou vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso; o art. 20 da Lei 7.716/89, por sua vez, pune a conduta de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de religião. Penso, porém, que a proteção estatal, nesse caso, não pode estar adstrita à repressão penal, pois os tipos incriminadores citados não abrangem todas as hipóteses de abuso da liberdade de manifestação das idéias religiosas, e, ademais, há inúmeras dificuldades no emprego do direito penal como instrumento de promoção dos direitos humanos, sobretudo quando se trata de direitos de reduzido grau de eficácia social, como parece ser o caso[32], seja ele econômico ou religioso. Em outras palavras, são deveres de um Estado democrático velar para que os meios de comunicação de massa não sejam objeto de monopólio ou oligopólio, e garantir, o mais amplamente possível, o pluralismo de idéias, fundamento maior da República brasileira (art. 1º, inciso V, da Constituição).
Além disso, como vimos, uma das funções primordiais dos direitos fundamentais é a função de não-discriminação, pela qual é dever do Estado assegurar que todos os seus cidadãos sejam tratados como fundamentalmente iguais no gozo dos direitos e garantias declarados na Constituição. Ora, se o proselitismo religioso é garantido, prima facie, por nosso sistema jurídico, não haveria um dever estatal de corrigir a desigualdade de fato no exercício dessa liberdade, protegendo os grupos minoritários que não dispõem de canais de rádio e TV para realizar suas pregações? Creio que a grande dificuldade neste assunto está em definir como os poderes públicos poderiam intervir sem que houvesse a ofensa ao princípio da laicidade do Estado brasileiro. A própria Constituição já estabelece duas importantes regras de colisão, em seu artigo 19, inciso I, a saber: a) o Estado brasileiro não pode subvencionar, ainda que de forma indireta, nenhuma organização religiosa que pretenda divulgar suas catequeses; b) também não está ele autorizado a manter com as igrejas relações de dependência ou aliança que tenham por objeto a comunicação de idéias religiosas.
A primeira delas seria o Estado brasileiro assegurar, a todas as igrejas que manifestarem interesse, o pleno acesso aos meios de comunicação de massa, por meio da concessão de canais ou, ao menos, do espaço disponível nas redes públicas de rádio e TV. Conquanto o propósito seja meritório, a medida apresenta inúmeras dificuldades para ser executada. Com efeito, seria possível que todas as organizações religiosas existentes no Brasil mesmo as menores seitas tivessem acesso aos canais de rádio e TV? Como distribuir o tempo de acesso entre elas? E se alguma organização não possuísse os recursos materiais necessários à gravação e à transmissão dos programas? Poderia o Estado financiá-las?
A segunda possibilidade seria vedar, por completo, a pregação religiosa nos canais de rádio e televisão do país. Inequivocamente a medida asseguraria uma igualdade maior entre as múltiplas igrejas e seitas, na medida em que eliminaria o fator que privilegia as organizações religiosas presenteadas com concessões públicas de telecomunicações. Poder-se-ia, é claro, argumentar que a proibição em questão feriria o núcleo essencial[33] do proselitismo religioso, ou seja, que a restrição aventada importaria na aniquilação do próprio direito de comunicação das idéias religiosas. Não me parece que assim seja, pois existem inúmeras outras formas de divulgação das idéias religiosas, e por certo nenhuma igreja possui o direito público subjetivo de propagar suas doutrinas nos meios de comunicação de massa.
A proibição do proselitismo religioso nos canais de rádio e TV, contudo, parece contrariar dois outros requisitos que, segundo a doutrina constitucional contemporânea[34], devem ser levados em conta sempre que houver a necessidade de restrição a direitos fundamentais: a máxima da necessidade (Erforderlichkeit) e a proporcionalidade em sentido estrito. Ora, se considerarmos que as finalidades desejadas com a intervenção estatal são assegurar condições igualitárias mínimas no exercício do direito ao proselitismo religioso e promover o pluralismo de idéias no âmbito dos meios de comunicação de massa, não me parece necessário, nem proporcional, proibir, por completo, a pregação religiosa nas rádios e TVs do país; outras medidas estatais de natureza administrativa, legislativa e também judicial poderiam ser executadas com o escopo de atingir essas mesmas finalidades[35].
E, caso uma determinada igreja utilize o rádio ou a televisão para ofender ou desrespeitar outros credos, deverá a emissora responsável pela transmissão sofrer as sanções previstas no Regulamento dos Serviços de Radiodifusão[36] (Decreto Presidencial n.° 52.795/63), podendo, até mesmo, perder a concessão outorgada no caso de reincidência, nos termos do disposto no art. 223, § 4º, da Constituição, e no art 133 do Regulamento. De lege ferenda, seria de grande relevância a edição de emenda constitucional ampliando o direito de antena também para organizações da sociedade civil[37]. Limito-me, por isso, a apresentar alguns dosargumentos lá abordados[38].
Em nosso sistema jurídico, quando a informação ou opinião causar dano a direito individual, o direito de resposta será exercido pela própria pessoa ou pelos legitimados indicados no art. 29, § 1 o, a e b, da Lei 5.250/67.
Ocorre que a ofensa ou a divulgação de um fato inverídico pode causar, também, lesão a direitos ou interesses metaindividuais[39]. É o que acontece quando uma determinada transmissão ofende uma crença religiosa, pois esta crença è compartilhada por um número indeterminado de pessoas, ligadas pela mesma circunstância fática, qual seja, a convicção em um conjunto de preceitos doutrinários e a obediência aos ritos e práticas próprios desta doutrina. A propósito, Barbosa Moreira observa que o interesse em defender-se de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221 enquadra-se com justeza no conceito de interesse difuso.
Com efeito: em primeiro lugar, ele se caracteriza, à evidência, como transindividual, já que não pertence de modo singularizado, a qualquer dos membros da comunidade, senão a um conjunto indeterminado e, ao menos para fins práticos, indeterminável de seres humanos. Tais seres ligam-se uns aos outros pela mera circunstância de fato de possuírem aparelhos de televisão ou, na respectiva falta, costumarem valer-se do aparelho do amigo, do vizinho, do namorado, do clube, do bar da esquina ou do salão de barbeiro. E ninguém hesitará em qualificar de indivisível o objeto de semelhante interesse, no sentido de que cada canal, num dado momento, transmite a todos a mesma e única imagem, nem se concebe modificação que se dirija só ao leitor destas linhas ou ao rabiscador delas[40].
O exercício regular do direito de resposta coletivo não constitui, evidentemente, censura aos meios de comunicação, pois a faculdade decorre de norma constitucional expressa[41]. A emissora de rádio ou TV não está impedida de expressar, livremente, suas idéias. Se tais idéias, porém, atingirem a liberdade religiosa ou outros direitos metaindividuais, os legitimados indicados no art. 5 o da Lei 7.347/85 e art. 82 da Lei 8.078/90 poderão postular a retificação ou a resposta, nos termos do procedimento previsto nos arts. 29 a 36 da Lei de Imprensa (Lei 5.250/67).
No mais, o direito de resposta coletivo é a restrição constitucional que menos onera a liberdade de comunicação social. Parece-nos admissível, também, no caso de ofensas às liberdades religiosas, o ajuizamento de ação coletiva de indenização, postulando a condenação da emissora por danos patrimoniais e morais causados à coletividade, com fundamento no art. 5, inciso V, c.c. os arts. 220, §§ 1 o e 3, II, e 221, inciso IV, todos da Constituição.
Em geral, a Constituição brasileira de 1988 não permitiu ao Estado impedir uma informação ou idéia de circular, ainda que essa informação ou idéia afronte direitos fundamentais; assim, o Poder Judiciário não estaria autorizado a impedir liminarmente uma determinada transmissão na qual haja ofensas a religiões ou crenças.
5. Conclusão
Procurei, aqui, examinar de que forma o Estado poderia proteger as liberdades religiosas contra transmissões televisivas ou radiofônicas abusivas. Partindo da constatação de que os meios de comunicação de massa são um poderosíssimo instrumento de manipulação do imaginário popular, e considerando que, na atualidade, as poucas religiões que têm acesso a esse instrumento usam do poder que dispõem para atacar a crença e os cultos de grupos minoritários (notadamente as religiões afro-brasileiras), procurei examinar as possibilidades de intervenção protetora dos poderes públicos, nos limites de um Estado democrático laico.
Para isso foi preciso distinguir as múltiplas dimensões constitucionais da liberdade de religião (liberdade de consciência religiosa, liberdade de culto, liberdade de associação religiosa e liberdade de comunicação das idéias religiosas) e apresentar a tipologia das relações entre o Estado e as igrejas. Vimos, nesse passo, que o Estado brasileiro, desde os primeiros dias da República, adotou o sistema da separação do poder civil em relação ao poder eclesiástico, sistema pelo qual o Estado garante a todos o gozo das liberdades religiosas declaradas na Constituição, mas recusa-se a intervir no funcionamento das igrejas e a emitir qualquer juízo de valor positivo ou negativo a respeito do fenômeno religioso.
Ocorre que, de acordo com a doutrina constitucional contemporânea, as normas instituidoras de direitos fundamentais não têm apenas a função de direitos de defesa, isto é, não asseguram apenas a proteção do indivíduo contra ingerências estatais indevidas, mas também impõem ao Estado o dever de adotar medidas positivas destinadas a proteger o exercício desses direitos, contra atividades perturbadoras ou lesivas praticadas por terceiros. Além disso, a função de não-discriminação busca assegurar que o Estado trate os seus cidadãos como fundamentalmente iguais, devendo, portanto, atuar para reduzir as desigualdades de fato que atrapalhem a fruição dos direitos declarados na Constituição e nos tratados internacionais. Ora, considerando que a pregação das idéias religiosas, assim como as demais liberdades de religião acima apontadas, encontram proteção constitucional, não está o Estado autorizado a assistir passivamente algumas poucas igrejas usarem do acesso privilegiado que possuem aos canais de rádio e televisão para ofender grupos religiosos minoritários[42].
O regulamento dos serviços de radiodifusão prevê a imposição de sanções administrativas para as emissoras fim de preservar o bem jurídico de maior relevo e, indiretamente, o princípio orientador de toda a ordem jurídica, que é a dignidade humana. que veicularem campanhas discriminatórias de classe, cor, raça ou religião e o Código Penal e a Lei 7.716/89 contêm tipos que incriminam condutas discriminatórias ou preconceituosas em relação às liberdades religiosas.
No âmbito do Poder Judiciário, a proteção dos interesses coletivos dos seguidores de uma determinada religião pode ser feita por intermédio da garantia do direito de resposta coletivo, nos termos do disposto no art. 5º, inciso V, da Constituição. Como já foi dito, o instrumento em questão não representa apenas uma garantia individual, destinada à proteção da honra da pessoa física ou jurídica ofendida, mas é também um instrumento importante de compensação da unilateralidade dos meios de comunicação social que pode ser usado, inclusive, no caso de ofensas a direitos ou interesses metaindividuais.
Nesses tempos de intolerância e de recrudescimento dos fundamentalismos religiosos, é essencial que os Estados democráticos reprimam com rigor atos discriminatórios ou contrários a direitos fundamentais, e favoreçam o pluralismo de idéias na pólis. São esses, a meu ver, os dois vetores que devem ser considerados no debate sobre os limites ao exercício das liberdades religiosas nos meios de comunicação de massa[43].
Falando de ponto e vista «católico», não há nada mais direto que recordar o pensamento do Papa, especialmente como expressou em Colônia, quando em agosto de 2005, se encontrou com alguns lideres da comunidade islâmica. Bento XVI afirmou que as religiões são chamadas a criar, apoiar e promover a premissa de cada encontro, de cada diálogo e de cada compreensão do pluralismo e diferença cultural. Esta premissa é a dignidade da pessoa humana. Nossa dignidade humana comum é uma verdadeira premissa porque precede qualquer outra consideração ou princípio metodológico, até o da lei internacional.
Isso vemos na «Regra de outro», que se encontra em todas as religiões do mundo. Outra descrição deste conceito é a reciprocidade.
Animar a consciência e a experiência desta herança comum entre as religiões seguramente ajudará a traduzir esta visão positiva em categorias políticas e sociais que, por sua vez, informarão as categorias jurídicas que subjazem nas relações nacionais e internacionais.