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Dissonância cognitiva e o juiz de garantias

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3.A Dissonância Cognitiva.

Antes de adentrarmos o tema da dissonância cognitiva, é necessário entender alguns conceitos que surgem a partir dela e o seu efetivo surgimento. Segundo Leon Festinger (1975, p. 11), é flagrante o constante esforço que o indivíduo empenha para ficar em um estado de coerência com si próprio. Nesse sentido, leciona o autor: “a tendência de suas opiniões e atitudes, por exemplo, é para existirem em grupos internamente coerentes” (1975, p.11). Tem-se notado, em estudos, que tal busca pela coerência se dá em diversos âmbitos, como em atitudes políticas e atitudes sociais, de modo geral.

Há uma espécie de coerência que, segundo Festinger, abrange o que a pessoa tem de conhecimento ou crê com aquilo que ela faz. Exemplo clássico é o da pessoa que sabe que fumar é nocivo à sua saúde, mas, mesmo assim, continua a fumar. É firmado que a coerência é uma coisa usual e, com isso, coloca-se o questionamento sobre essas exceções, colocadas anteriormente, se elas podem ser aceitas por essas pessoas que agem diferente do que pensam ou acreditam. Esta aceitação ocorre de forma rara, sendo que o mais usual é que se tente racionalizar a questão.

Ainda segundo o autor, muitas dessas pessoas que empreendem um processo cognitivo de racionalização vão buscar eliminar ou atenuar o estado de incoerência. O fumante, por exemplo, vai justificar a continuidade do ato de fumar, dando destaque a pensamentos como “os perigos não são tão altos como falam” ou “o ato de fumar é tão prazeroso que compensa o risco”, e, com isso, torna o ato de fumar coerente com suas ideias. Entretanto, nem sempre se obtém sucesso com as tentativas de racionalizar, culminando em desconforto psicológico para o indivíduo.

Pode-se conceituar a dissonância como sendo a existência de relações discrepantes entre opiniões, conhecimentos ou crenças; a dissonância cognitiva, em si, é condição anterior que vai levar a uma atividade controlada com o fito de se reduzir a dissonância. Já, com relação aos psicólogos da cognição, de acordo com Clóvis de Barros Filho, a dissonância cognitiva, é a tendência que se tem mundos que estejam em desalinho com o nosso próprio ponto de vista. A dissonância pode surgir por meio de novos acontecimentos que vive o indivíduo, e, uma vez que esse indivíduo não é totalmente capaz de controlar tudo e qualquer coisa que aconteça e toda e qualquer informação que chegue a ele, a incidência de dissonâncias torna-se corriqueira. Nestes casos, segundo Leon Festinger (1975, p. 14), tem-se a dissonância momentânea. E, mesmo que não haja novas situações para isso, considerando que as coisas não são totalmente nítidas e bem definidas cem por cento do tempo, a existência da dissonância torna-se uma situação do cotidiano.

Tendo a ciência de que se deu a dissonância, há a necessidade de tentar reduzi-la. Utilizando-se do exemplo do fumante, quando este toma ciência dos malefícios que o cigarro traz, esse indivíduo poderá, para reduzir a dissonância, parar de fumar ou tentar mudar o conhecimento adquirido a respeito do fumo, tentando arranjar algum benefício que o fumo pode trazer, de maneira que os malefícios se tornem insignificantes.

Outro exemplo, colocado por Clóvis de Barros Filho, é a troca de canal em debates políticos, no qual se o candidato em que você apoia está se saindo bem no debate, a tendência é que você não mude de canal, mas se ele está perdendo ou indo mal, você tem maior chance de mudar de canal, isso ocorre por conta da tentativa das pessoas de procurarem mundos ou situações que concordem com aquilo que você está pensando ou acredita e evitar aquilo que lhe traz desconforto. Ademais, percebe-se então, a partir da narração de Barros Filho, que a tolerância é uma forma de resistência da dissonância cognitiva, pois, a partir da tolerância, a pessoa obtém a consciência de que determinada situação é desalinhada com aquilo que ela acredita, mas, mesmo assim, se aceita aquela situação e se expõe a ela. Não obstante, há situações em que não se consegue eliminar ou reduzir a dissonância.

A dissonância pode decorrer de alguns fatores, dentre os quais o colocado pelo autor, qual seja, uma inconsistência lógica, que se dá, por exemplo, quando o indivíduo crê que o ser humano vai à Lua no futuro, entretanto, acredita, ao mesmo tempo, que o ser humano não é capaz de produzir uma tecnologia e equipamentos eficientes o suficiente para ultrapassar a atmosfera; ou seja, esse indivíduo possui crenças dissonantes entre si, vez que uma decorre da outra.

Ademais, a dissonância pode decorrer de hábitos culturais, isto é, situações que, para determinada cultura, podem ser dissonantes, mas, em outra região, que possui uma cultura diferente, o ato pode ser consoante. A título de exemplo, pode-se citar o hábito de se comer com as mãos. Em determinado local, é considerado natural o ato de comer com as mãos, sem utilizar- se de talheres, mas, em outro, esse mesmo ato pode ser repudiado.

A dissonância pode resultar, também, de uma opinião específica, que fora incluída numa opinião geral, como, por exemplo, no caso em que uma pessoa é adepta de um partido, mas, no pleito eleitoral em específico, prefere candidato de outro partido. Neste caso, resta consolidada a dissonância, por ter estado preestabelecido que, por ser ideologicamente compatível com um partido, deveria favorecer candidatos desse partido.

No que diz respeito à magnitude da dissonância, podemos defini-la a partir da consideração de três elementos: o primeiro é que se os elementos cognitivos forem relevantes, a relação que eles possuem podem ser consonantes ou dissonantes. O segundo elemento, a magnitude da dissonância vai aumentar conforme a importância ou o valor que os elementos possuem aumentar. E a terceira, o total de distâncias que possui conjuntos de elementos cognitivos é de responsabilidade da proporção das relações relevantes entre os conjuntos que são dissonantes.

Retomando a questão da busca pela redução da dissonância, foi demonstrado pelo autor a existência de dois elementos cognitivos: o comportamental e o ambiental. Para reduzir ou eliminar a dissonância, pode-se eliminar a dissonância alterando o elemento comportamental, fazendo com que ele se torne consonante com relação ao elemento ambiental. Segundo Festinger (1975, p. 26) “o processo mais simples e mais fácil de conseguir isso consiste em mudar a ação ou sentimento que o elemento comportamental representa”. Transformando a tese em exemplo, pode-se citar a situação em que uma pessoa que fuma descobre o quão prejudicial isso é para a saúde dela e, por isso, para de fumar.

Contudo, nem sempre é possível mudar o comportamento, obrigando que a mudança se dê com relação ao elemento ambiental. Essa mudança ocorre quando se altera a situação a que o elemento corresponde. Não é tarefa tão “fácil” quanto a de mudar o comportamento, pois, para alterar o ambiente, é necessário que o indivíduo tenha controle sobre o meio. 

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Em casos em que não é possível eliminar a dissonância, pode ocorrer a adição de novos elementos cognitivos, a fim de tentar reduzir a sua magnitude. Isso, entretanto, não é fácil, pois não se tem uma amplitude com relação às possibilidades de adicionar esse novo elemento. É certo que existe uma resistência com relação a redução da dissonância, já que, se isto não ocorresse, não existiria qualquer dissonância duradoura, existindo somente a momentânea, já que, em não havendo resistência, seria facilmente eliminada. Assim como existem duas modalidades de mudança, há também diferentes fontes de resistência com relação à mudança, com nexo as classes dos elementos cognitivos comportamentais e ambientais.

No que tange ao elemento comportamental, temos como primeira fonte de resistência à mudança a questão da receptividade do elemento à realidade, como se dá, por exemplo, ao visualizar que a grama é da cor verde, é extremamente difícil pensar que não seja assim. É certo, segundo o Leon Festinger, que o comportamento tem baixa resistência à mudança, uma vez que alteramos continuamente diversas ações do dia a dia. Sendo assim, é questionado quais são então as circunstâncias que tornam difícil mudar. A primeira seria com relação a dor ou a algum prejuízo que tal mudança possa gerar. E, em segundo, o comportamento pode ser bom com relação a outros aspectos, como a pessoa que continua comendo em um restaurante que não gosta somente em razão do fato de que seus amigos comem no estabelecimento. Em terceiro, que tal mudança possa ser impossível, o que se dá, por exemplo, quando se vende o carro e, depois de um tempo, quer ele de volta, o que se torna impossível caso o novo dono venha a se recusar a vender ou devolver.

Assim como demonstrado no elemento anterior, com relação ao elemento ambiental, a resistência encontrada é relacionada à realidade, o que se diferencia do anterior é que as possibilidades aqui são nulas, pois, como exemplo, mesmo que se pudesse mudar a localização de uma praça, isso é difícil de conseguir.

Por fim, existe a questão da evitação da dissonância, a partir da qual se busca evitar que a dissonância aumente ou ocorra. Por exemplo, na busca por conseguir informações ou dados para um novo elemento cognitivo, ela vai debater com pessoas que possuem o mesmo pensamento que ela, de maneira a evitar debater com pessoas que pensam de forma distinta.


4.Do Juiz de Garantias.

O juiz de garantias foi, consoante relatado anteriormente, uma (boa) novidade trazida pelo Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019), apesar de não ter estado no projeto original, de autoria do então Ministro da Justiça, o ex-juiz Sérgio Moro. A inclusão do instituto na Lei se deu a partir de uma emenda proposta pelo deputado Marcelo Freixo (PSB-RJ), a qual foi criticada publicamente pelo idealizador do Pacote Anticrime, Sérgio Moro, que chegou a solicitar ao Presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), que vetasse o instituto quando da sanção do Projeto de Lei, pleito que não foi atendido pelo chefe do Executivo, o que motivou discussões acaloradas entre os componentes da sua base de apoio.

O “juiz de garantias”, como foi denominado, enfrentou e enfrenta muita resistência no seio da sociedade civil. Para atenuar a resistência social ao instituto, AURY LOPES JUNIOR (2021) chegou a sugerir que fosse dado outro nome a ele, como, por exemplo, “juiz da investigação”, uma vez que, falar em “garantias” em um país cuja cultura processual penal é de matriz inquisitória, tende a gerar um sentimento geral de repulsa. Aliás, a referida resistência é muito bem personificada na figura do então ministro Sérgio Moro, que se posicionou de maneira contrária ao instituto, alegando, por exemplo, o frágil argumento da falta de estrutura do Judiciário brasileiro para implementar essa nova figura processual penal.

Quanto ao instituto em si, ele encontra previsão legal no art. 3º-B do Código de Processo Penal, que elenca as incumbências do juiz de garantias. A partir deste dispositivo legal, foi inserido, no processo penal brasileiro, a figura de um juiz incumbido de atuar exclusivamente na fase pré-processual (isto é, na fase investigatória). Segundo AURY LOPES JUNIOR (2021), porém, a concepção do instituto se deu a partir de uma construção híbrida, no sentido de que o juiz atua, também, na fase processual, vez que, além de receber ou rejeitar a denúncia, é responsável por citar o réu para apresentação da resposta preliminar, após a qual absolve-o sumariamente ou não, marcando audiência de instrução e julgamento caso não se dê a absolvição sumária.

O juiz de garantias atua, portanto, na fase de investigação, exercendo o controle de legalidade acerca dos atos de investigação promovidos pelo Ministério Público e pelo órgão policial, e deliberando acerca da adoção de medidas cautelares pessoais, reais ou probatórias na aludida fase, sempre a requerimento ou representação do Ministério Público e da Polícia (PACELLI, 2021). Quando, por exemplo, for requerida, pelo MP, a decretação de uma prisão preventiva, o juiz de garantias deverá analisar se estão presentes os requisitos dessa prisão cautelar, sem os quais esta última não pode ser decretada, sob pena de submeter o imputado ao cumprimento de pena antecipada, no sentido do que apregoa a jurisprudência do STJ, segundo a qual, para haver custódia cautelar, deve restar demonstrada a imprescindibilidade desta para o sucesso das investigações.

Com a inauguração do instituto do juiz de garantias, além da divisão de funções entre dois juízes (com  um juiz incumbido da parte investigatória e, de outro lado, outro juiz responsável por conduzir o processo e proferir a decisão resolutiva do caso), houve outras mudanças na estrutura do processo penal, como a que está disposta no art. 3º-C, § 3º, do Código de Processo Penal. Nesse sentido, quanto à parcela dos autos que é enviada pelo juiz de garantias ao juiz julgador, assevera Aury Lopes Jr (2021):

“É importante compreender que houve uma mudança radical no processo e no atuar do juiz. Agora, o juiz das garantias, quando remete os autos para o juiz da instrução e julgamento, não encaminha automaticamente a integralidade dos autos! Os autos ficarão acautelados na secretaria do juízo das garantias, que remeterá para o juiz da instrução apenas: a denúncia ou queixa; a decisão de recebimento, para compreensão do que foi recebido e do que foi rejeitado, por exemplo; decisão que decretou medidas cautelares ou prisão cautelar, para controle e também para revisão no prazo de 10 dias; decisão que manteve o recebimento e não absolveu sumariamente (art. 397) ” (p. 157).

Em síntese, o legislador restringiu o que pode ser enviado pelo juiz de garantias ao juiz da instrução (ou juiz julgador), de maneira que os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias não serão apensados aos autos do processo que serão enviados ao juiz da instrução e julgamento. Buscou-se, com isso, preservar a originalidade cognitiva do juiz que resolverá o processo, no sentido do que será explanado adiante.

Por fim, vale ressaltar, antes mesmo de se dar início ao esforço de se estabelecer uma interface entre o juiz de garantias e a Teoria da Dissonância Cognitiva, que o juiz de garantias, que não exerce função investigatória e tampouco produz provas (JUNIOR, 2021), veio para aprimorar a jurisdição penal atual, no sentido de possibilitar que esta última possa ser exercida de forma imparcial (RITTER, 2016) e de reforçar a estruturação acusatória do processo penal, ainda que tenha vindo de maneira tardia, sobretudo se se considerar o movimento latino- americano, do final do séc. XX, de adequação das leis processuais penais à Convenção Interamericana de Direitos Humanos (MAYA, 2018).

4.1 A Dissonância Cognitiva e o Juiz de Garantias.

Com o exposto sobre a dissonância cognitiva e o juiz de garantias, cumpre relacionar ambos os institutos para demonstrar o seu efeito no Processo Penal. A dissonância cognitiva faz com que um indivíduo busque incansavelmente por informações ou dados que corroborem os elementos cognitivos que obteve anteriormente. Este mesmo indivíduo não conseguirá valorizar, de fato, outros que tragam à baila elementos dissonantes, rejeitando, assim, debates, informações ou qualquer outro dado que não vá de encontro com a sua convicção ou repertório cognitivo.

Cumpre mencionar que é inerente ao ser humano estar sujeito  aos impactos da dissonância cognitiva, pois é natural que as pessoas tenham preconcepções sobre as mais diversas pautas e que dificilmente estejam aptas a se desvencilhar desses elementos cognitivos prévios, que são as preconcepções. É necessário, então, trabalhar a partir desta premissa para mitigar os danos causados pelos impactos da dissonância, em específico no âmbito do Processo Penal, já que, com ele, está-se a lidar com a liberdade dos indivíduos.

Com a ideia da dissonância em mente e observado o Processo Penal brasileiro, o juiz que tem acesso ao processo de investigação de um suspeito e do delito por ele supostamente cometido buscará, depois, no âmbito do processo propriamente dito, elementos que comprovem a culpa desse suspeito. Isto se dá porque o juiz que atua nas duas fases do processo penal está contaminado por preconcebimentos que foram formados no momento do ato decisório na fase investigatória, momento este em que não é assegurado o direito à ampla defesa e contraditório. A dissonância cognitiva pós decisão, teorizada por Festinger, explica esse fenômeno.

De acordo com RUIZ RITTER, os impactos advindos da dissonância cognitiva afetam diretamente nas deliberações de um indivíduo (2016, p. 99). O autor ilustra esta assertiva com o exemplo das pessoas que não conseguiam decidir qual carro estas deveriam adquirir. Prévio à escolha pelo veículo “A” ou “B”, na hipótese desenhada, cada pessoa tem elementos cognitivos que irão fazê-los decidirem por “A” ou por “B”. No caso, alguns dos elementos que apontam para a compra do automóvel são: motor, consumo de combustível, design e preço. No caso, é suposto que o “A” obtenha maior desempenho em relação ao motor quando comparado ao “B”, e o automóvel “B” tem um menor consumo de combustível, melhor design e preço. Caso opte pelo “A”, por exemplo, tenderá a valorizar com veemência a importância do motor de um automóvel e menosprezar pontos como o design e o preço.

Como já abordado antes e elucidado por RUIZ RITTER, “ciente de que o sujeito busca sempre coerência plena entre sua razão (cognição) e sua ação (comportamento) ” (2016, p. 99), não seria possível adquirir o modelo de carro “A” sem que houvesse conflito com as cognições criadas anteriormente. Em decorrência do exemplo trazido, conclui-se que não há como tomar decisões sem aceitar os impactos da dissonância cognitiva.

Com o exemplo abordado, fica claro que o juiz que conduz a fase investigatória, de matriz inquisitiva (sem, pois, a garantia do contraditório), não será capaz de ser um juiz imparcial na fase processual penal, uma vez que tomará decisões baseadas nas informações (elementos cognitivos) com as quais tivera contato anteriormente, nas quais se baseou, também, para decretar medida de urgência na fase investigatória, como, por exemplo, uma prisão cautelar.

Consoante assevera FLÁVIO DA SILVA ANDRADE (2019), estará constituída a dissonância quando, em sede de cognição sumária, que conta com os elementos indiciários levantados no inquérito policial, o juiz decidir por uma medida de urgência e, no processo, após cognição exauriente (vez que observados os ritos processuais-probatórios), perceber que a medida de urgência não se justificava. Neste caso, o magistrado encontrar-se-á em uma situação cognitiva flagrantemente desconfortável, a qual ele tentará mitigar, a partir do menosprezo dos elementos cognitivos dissonantes e da supervalorização dos consonantes.

O juiz de garantias seria, portanto, o instituto trazido para promover a redução dos impactos da dissonância cognitiva no processo penal. Esta figura, conforme mencionado por ANDRÉ MAYA (2018, p. 2) já está presente em diversos Códigos de Processo Penal da América do Sul, como o Chile, Paraguai e Colômbia, não sendo o Brasil pioneiro na implementação do instituto. A ideia do juiz de garantias, em suma, é a de criar um novo órgão jurisdicional para atuar exclusivamente na fase de investigação (pré-processual) (MAYA, 2018, p.2). Sendo feita a separação de competências entre o juiz da fase pré-processual e da processual, há uma maior proteção da legalidade da investigação criminal e na tutela dos direitos do indivíduo, evitando os impactos da dissonância que, inevitavelmente, ocorrem.

Contudo, apesar do instituto do juiz de garantias vir para trazer soluções quanto aos impactos da dissonância cognitiva no Processo Penal brasileiro, o ministro e atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, suspendeu a sua implementação até decisão no Plenário da Corte, conforme liminar da ADI 6.298/2019 (STF, 2020). Tal suspensão veio carregada do argumento que pode ser sintetizado com a seguinte assertiva: “a criação do juiz das garantias não apenas reforma, mas refunda o processo penal brasileiro e altera direta e estruturalmente o funcionamento de qualquer unidade judiciária criminal do país (2020)". Com base no entendimento do referido ministro, a aprovação do projeto resultaria em uma alteração radical na estrutura do Poder Judiciário. Ainda, argumenta o ministro que esta alteração causaria impacto orçamentário, “(...), o fato é que a criação de novos direitos e de novas políticas públicas gera custos ao Estado, os quais devem ser discutidos e sopesados pelo Poder Legislativo (...). (2020)." 

Com base nesses argumentos, Fux, na ADI 6.298/2019, demonstra que os artigos que trazem o instituto do juiz de garantias deveriam ser inconstitucionais, basicamente utilizando- se do argumento de que não se pode aprimorar o Processo Penal pela falta de estrutura. É nítido o contrassenso das argumentações de Fux, tendo em vista que a ideia do juiz de garantias não é reformar o Poder Judiciário, como ele alega, mas, sim, criar uma nova atividade dentro do Poder Judiciário que altera sua estrutura somente no tocante à redistribuição de competências.

Essa alteração adequa o Poder Judiciário para uma “reorganização da estrutura já existente” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020, p.21) para que sejam respeitados os princípios que norteiam o processo penal, principalmente o da imparcialidade do juiz. No caso, não é necessário a alteração de todo o Processo Penal como Fux faz parecer, mas, sim, a implantação de meios que promovam a apropriada gerência das competências judiciárias para a efetiva prestação jurisdicional dividida nas duas fases do Processo Penal (investigação penal e o processo propriamente dito), que devem ser de competência de juízes distintos (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020, p. 21).

Por fim, Fux não reconhece, portanto, que a divisão de competências entre juízes seja um meio eficaz de redução dos vieses cognitivos destes, ainda que este reconhecimento seja uma análise política e a competência do STF seja julgar a constitucionalidade dos artigos que implementam o juiz de garantias (3º-A a 3º-F da Lei 13.964/2019), ou seja, não há, da parte do eminente magistrado Luiz Fux, argumentação baseada na Constituição (MORAES, 2020, p.1).

Sobre os autores
Luiza dos Santos Nicetto

Advogada, graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pós graduada em Direito e Processo Penal pela FADEG. Atualmente, atuando como Paralegal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NICETTO, Luiza Santos; RECCO, Isabella Beatriz Benetasso et al. Dissonância cognitiva e o juiz de garantias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7097, 6 dez. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101274. Acesso em: 22 nov. 2024.

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