Tal artigo visa apontar uma solução jurídica para o mal vezo de que o inquérito policial seria desmerecedor do contraditório, indicando uma solução aparentemente de lege ferenda, mas que pode ser alcançada imediatamente por intermédio de uma interpretação conforme a constituição, representando, portanto, verdadeira solução de lege lata. Ademais, visa também demonstrar que a mesma medida utilizada para a solução da pendenga alhures serve também para proporcionar ares de constitucionalidade ao atual procedimento ordinário penal, completamente incompatível com os novos ideais de democracia inseridos pela novel ordem constitucional.
O princípio do contraditório é dos mais importantes da nossa nova ordem constitucional, haja vista garantir um processo, judicial ou administrativo, mais justo, porquanto objetiva proporcionar momentos em que as partes envolvidas em determinada celeuma possam se defender eficazmente das acusações obtemperadas pelo seu opositor.
Modernamente, a doutrina mais abalizada vem subdividindo o princípio do contraditório em duas dimensões: a formal e a substancial. A primeira está relacionada com a concepção originária de tal postulado, qual seja a noção de que a todos deve ser possibilitado o direito de resposta, ou melhor, o contraditório formal pode ser conceituado como o direito de ser ouvido previamente à decisão definitiva do julgador. É o mero direito de participar do processo.
O contraditório substancial, por sua vez, representa um plus à sua faceta formal, significando que além do direito de participar do processo, deve ter a parte o poder de influência, ou seja, a sua participação há de ter força para interferir, licitamente, na decisão a ser proferida. Do contrário, o contraditório seria inócuo, não passando de mera perfumaria processual.
Guilherme de Souza Nucci conceitua o princípio do contraditório, numa vertente eminentemente processualista penal, da seguinte maneira:
Quer dizer que a toda alegação fática ou apresentação de prova, feita no processo por uma das partes, tem o adversário o direito de se manifestar, havendo um perfeito equilíbrio na relação estabelecida entre a pretensão punitiva do Estado e o direito à liberdade e à manutenção do estado de inocência do acusado.
Tal postulado encontra-se expressamente referido no artigo 5º da nossa atual Carta Política, de molde a restar irrefragável a sua natureza de verdadeiro direito fundamental dos cidadãos, colocação esta, aliás, que jamais foi posta em dúvida. Vejamos o teor do aludido dispositivo legal, ipsis litteris:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
Como é perceptível, o dispositivo constitucional supra-transcrito não traz em seu bojo nenhuma exceção, de sorte que, a prima facie, é totalmente possível a conclusão de que o mesmo merece aplicação irrestrita, incluindo-se aí o seu emprego no procedimento administrativo intitulado de inquérito policial.
Resta pacificado, no entanto, tanto no seio jurisprudencial como no doutrinário, que o inquérito policial, assim como todos os procedimentos meramente inquisitoriais, não estariam abrangidos pelos tentáculos do princípio do contraditório, posto que tais procedimentos somente serviriam de supedâneo para o possível ajuizamento de ação judicial futura, tendo função de mera peça informativa, com o único desiderato de auxiliar na formação da convicção daquele realmente legitimado para propor a demanda judicial cabível.
Neste contexto, o inquérito policial não possuiria, de per si, capacidade jurídica de repercutir positiva ou negativamente no mundo exterior, até porque não se decidiria em seu bojo nenhum litígio.
Vejam os seguintes julgados recentes da nossa máxima Corte de Justiça, que não nos deixa mentir:
EMENTA: [...] III. Inquérito policial: inoponibilidade ao advogado do indiciado do direito de vista dos autos do inquérito policial. 1. Inaplicabilidade da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa ao inquérito policial, que não é processo, porque não destinado a decidir litígio algum, ainda que na esfera administrativa; existência, não obstante, de direitos fundamentais do indiciado no curso do inquérito, entre os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar e o de manter-se em silêncio. (STF - HC nº 87827/RJ - RIO DE JANEIRO;
HABEAS CORPUS; Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE
Julgamento: 25/04/2006; Órgão Julgador: Primeira Turma)
EMENTA: I. Denúncia: cabimento, com base em elementos de informação colhidos em auditoria do Tribunal de Contas, sem que a estes - como também sucede com os colhidos em inquérito policial - caiba opor, para esse fim, a inobservância da garantia ao contraditório. [...].(STF - Inq. nº 1070/TO – TOCANTINS; Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE; Julgamento: 24/11/2004; Órgão Julgador: Tribunal Pleno)
Doutrinariamente o pensamento é o mesmo, como se pode observar, respectivamente, nos seguintes excertos das obras de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional) e de Guilherme de Souza Nucci (Manual de Processo e Execução Penal):
Tanto o inquérito policial quanto o civil são procedimentos inquisitórios que têm a finalidade de aparelhar o MP para eventual ajuizamento de ação civil ou penal pública. Por meio deles não se aplica sanção, de sorte que não se trata de processo administrativo, não incidindo neles a garantia constitucional do contraditório. No inquérito existe apenas colheita de elementos e não colheita de provas.
O inquérito destina-se, fundamentalmente, ao órgão acusatório, para formar a sua convicção acerca da materialidade e autoria da infração penal, motivo pelo qual não necessita ser contraditório e com ampla garantia de defesa eficiente.
Entrementes, conquanto seja sustentável a alegação segundo a qual o inquérito policial não é processo – o que tornaria lícita a inobservância do princípio do contraditório em seu interior – é cediço que, em verdade, vislumbra-se sim um litígio entre o Estado e o indiciado no seu ínterim, sendo inconteste a busca incessante daquele em reunir elementos tendentes à comprovação da inculpação deste, exsurgindo daí o direito do indiciado de promover meios de defesas predispostos a demonstrar a sua inocência; ora, se ao Estado é fomentada a busca da inculpação de determinada pessoa, ainda que por intermédio de um procedimento preparatório, não deve ser defeso a esta defender-se.
A natureza inquisitorial, por conseguinte, não serve para repelir o litígio de fato, que é concebido no instante do indiciamento do suposto delinqüente, e não com a posterior instauração do processo judicial.
E não há de se negar que o contraditório deve existir sempre que houver pólos opostos em relação a determinada questão, pois do contrário uma parte, inequivocamente, prevaleceria em detrimento da outra. Em outras palavras, não pode estar em acordo com a ordem constitucional a atribuição do poder de acusar a alguém, sem que tal poder tenha como reflexo o poder de se defender por parte do acoimado.
É curial que a inquisitividade é caracterizada pela concentração de atos, poderes e competências nas mãos de uma determinada autoridade, que supostamente exerce no feito as funções de presidência, de acusação e de defesa (como teoricamente acontece no inquérito policial), o que acaba por fazer com que o contraditório e a ampla defesa tivessem função acessória nestes casos, tendo em vista a forma absoluta com que é exercida tal presidência.
Todavia, ao passo em que se admite a natureza inquisitorial do inquérito policial, sem a qual o mesmo se inviabilizaria, tem-se que os atuais ditames constitucionais impõem uma flexibilização às suas peculiaridades, mormente no que tange a ausência de contraditório, porquanto é completamente utópico achar que a Autoridade Policial teria dentre as suas preocupações a de promover a defesa dos interesses do indiciado.
Neste diapasão, conclui-se que em prol da Constituição Federal a inquisitoriedade do inquérito policial deveria ser mitigada, não para chamar o indiciado para se defender de todos os atos praticados em seu iter, mas para dar uma maior força às possíveis argumentações daquele que está tendo a sua honestidade questionada. Do contrário estar-se-ia a ofender os próprios ideais da democracia.
Outrossim, há de se notar que não se busca uma relativização impossível, haja vista que é crível a existência de tal flexibilização no pertinente ao órgão acusador, pois o Ministério Público tem forças expressivas de intervenção no inquérito policial, sendo majoritário o entendimento segundo o qual uma vez requisitada uma diligência pelo presentante do Parquet, estaria o Delegado de Polícia impelido a cumpri-la (o Parquet requisita, enquanto o indiciado apenas requer).
Assim, a inquisitoriedade do inquérito policial já há muito não pode ser taxado de puro, e, portanto, não há de ser esta pseudo-pureza que deverá inviabilizar a tese ora defendida.
Frise-se, só a título de curiosidade, que o poder conferido ao Ministério Público, acima descrito, nem de perto é atribuído ao provável réu, que muitas vezes tem até mesmo o simples acesso aos autos do inquérito policial obstado. Ademais disso, a própria dicção do art. 14 do CPP torna inabalável o contraste ora apontado: "O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade".
Desta forma, até mesmo por conta do princípio da paridade de armas é aconselhável que o contraditório seja exercido no atinente aos atos praticados durante a fase inquisitorial, pois se assim não for estar-se-á chancelando absurda desproporção.
Em resumidas palavras, ainda que se acolha a concentração de poderes nas mãos da autoridade policial responsável pela direção do inquérito, assim se deve fazer com a condição de ser observado um mínimo de contraditório, pena de se tornar intocável os eventuais abusos ou equívocos que possam vir a acontecer, até porque nós sabemos que a jurisprudência dos nossos tribunais é pacífica no sentido de que eventuais irregularidades perpetradas na fase inquisitorial não tem o condão de repercutir de nenhuma maneira no processo criminal já instaurado.
Além disso, não há de se concluir que na fase do inquérito policial há mera colheita de elementos, como querem fazer crer alguns, tendo em vista que verdadeiras provas são levantadas neste instante, não sendo raras as vezes em que o magistrado se vale, ainda que por uma situação patológica – sem se falar naqueles casos em que o juiz não exterioriza as suas reais convicções, muitas vezes pautadas em elementos colhidos no inquérito policial – desses elementos probatórios para sustentar um decreto condenatório. Essa realidade é bem vislumbrada por Nucci:
Lamentavelmente, muitos magistrados valem-se do inquérito para calcar suas decisões, como se fosse instrumento produzido pelo crivo do contraditório e da ampla defesa.
Esse espectro acaba por agravar ainda mais a situação da total ausência do contraditório na fase inquisitorial, tornando ainda mais pungente a inserção de meios de defesa quanto aos fatos ocorridos durante a investigação policial.
Repise-se que a jurisprudência é plenamente complacente com o uso das provas colhidas no inquérito para alicerçar um decisum condenatório, bastando citar o seguinte aresto, que representa a jurisprudência consolidada em nossos tribunais:
EMENTA: [...]. 4. Os elementos do inquérito podem influir na formação do livre convencimento do juiz para a decisão da causa quando complementam outros indícios e provas que passam pelo crivo do contraditório em juízo. 5. Agravo regimental improvido. (STF - RE-AgR 425734 / MG - MINAS GERAIS; AG.REG.NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO; Relator(a): Min. ELLEN GRACIE; Julgamento: 04/10/2005; Órgão Julgador: Segunda Turma)
Como se percebe, há uma nítida tentativa de se contemporizar esta prática abjeta, contudo, em que pese a sua suavização devido à necessária associação com outros meios de prova produzidos sob o manto do contraditório, é evidente a intenção de se legitimar a prática do uso dos elementos colhidos no inquérito para dar ensejo à condenação, ainda que estes elementos não tenham sido obtidos mediante um procedimento constitucional-contraditório.
Além de tudo quanto já exposto, não há de se olvidar que o direito deve sofrer influências da prática e dos costumes, não sendo legítimo o pensamento que sobreleva o aspecto teórico, único plano em que o inquérito policial poderia ser visto de forma apartada de um legítimo litígio, em detrimento da realidade fática.
Ora, não é porque seja da essência do inquérito policial somente colher elementos para formar a convicção do Ministério Público que o mesmo não representa, no mundo concreto, uma verdadeira "acusação". E não há de se dizer sequer que tal situação seja decorrência de um aspecto puramente patológico, e que por isso não deva ser considerada numa discussão eminentemente teórica, tendo em vista que esta "acusação" é inerente ao mesmo, e não consectário de uma forma equivocada de proceder na presidência deste procedimento. O que é patológico são somente os abusos perpetrados na requestada presidência.
Conclusão diversa ou é mera hipocrisia ou é puro tecnicismo, sendo que ambos são abomináveis juridicamente, mormente no atual momento histórico-jurídico, em que a instrumentalidade do processo, e, conseqüentemente, o princípio da justiça, vem sendo cada vez mais exaltada.
Isentando este raciocínio de quaisquer dúvidas, reza o artigo 4º do Estatuto de Ritos Penais:
Art. 4º. A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.
Ora, se o inquérito policial tivesse como desiderato único o levantamento de provas entrelaçadas com a existência do suposto fato criminoso seria óbvio a total ausência de "acusação", entretanto, a própria lei é cristalina ao açambarcar dentre as funções de tal procedimento administrativo o de levantar elementos probatórios propensos a demonstrar a autoria delitiva, tornando inexorável um litígio.
Neste contexto, ainda que não seja a sua intenção primária, é inequívoco que com o simples fato de colheita de provas tendentes a ligar um indivíduo a um ato criminoso faz com que, automaticamente, inaugure-se uma "acusação".
Assim sendo, é extreme de dúvidas que o contraditório deve estar presente neste procedimento, posto que o inciso LV do artigo 5º da CF/88 é bastante claro no sentido de que tal postulado merece aplicação nos processos judiais ou administrativos, bem como em qualquer outro procedimento em que se averigúe uma acusação. Tal assertiva é comprovada no trecho da Carta Magna que assegura o contraditório aos "acusados em geral".
E tanto há uma espécie de acusação no inquérito policial que é corriqueiro na doutrina a assertiva de que o procedimento inquisitorial em questão representa a primeira fase da persecutio criminis. Ora, se há persecução do crime e do criminoso, então por óbvio que existe uma imputação, ainda que seja mais tênue (teoricamente), da conduta investigada ao indiciado.
Se assim não fosse, como é que seria possível a denúncia, tendo em vista que esta necessita de indícios da autoria? É evidente que se há um levantamento de provas tendentes a imputar um fato criminoso a determinada pessoa, estar-se-á diante de uma espécie de acusação propriamente dita.
Os próprios Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, que a princípio sustentam a inaplicabilidade do contraditório no inquérito policial, consoante trecho acima transcrito, excepcionaram a sua regra, aduzindo o seguinte:
Quando no inquérito – civil, policial ou administrativo – puder vislumbrar-se a existência de "acusado", deve a ele ser garantido o contraditório amplo, pois a norma constitucional fala também de "acusados em geral" como destinatários da garantia constitucional.
Ora, se a Constituição mencionou aos "acusados em geral" logo em seguida a manifestação acerca do processo, então é evidente que o legislador constituinte, bem antenado com o cotidiano, vislumbrou a existência de formulação de acusações fora de um processo.
E não há que se dizer que somente há acusação após a instauração do processo penal, porquanto malgrado esta assertiva corresponda a verdade do ponto de vista do significado técnico-jurídico da palavra "acusação", é certo que a Constituição da República quis se referir à acepção coloquial do dito vernáculo.
Do contrário estaríamos diante de verdadeira redundância, pois se há a menção anterior, no próprio dispositivo legal em comento, ao processo, então não seria necessária a repetição da idéia de acusação acaso tal vocábulo estivesse no seu sentido jurídico. Aliado a isso, não se pode desprezar que "a lei não possui palavras inúteis", consoante acentua brocardo jurídico dos mais conhecidos e que corporifica verdadeiro princípio interpretativo.
Não é demais lembrar que a doutrina mais abalizada defende que os direitos fundamentais são merecedores de interpretação ampliativa, restando bastante difundido hodiernamente, inclusive na jurisprudência, como reflexo dessa maneira de pensar, que o contraditório deve ser levado para a esfera das relações privadas. Indaga-se então: se uma simples relação de direito privado é merecedora da observância do contraditório, o que se falar do inquérito policial? A resposta, obviamente, é no sentido de que tal procedimento administrativo merece sim ser alvejado pelos efeitos do contraditório.
Em epítome, o inquérito policial deve sim, em princípio, passar pelo crivo do contraditório.
Acontece que a configuração de um litígio no seio do inquérito policial e o seu conseqüente enquadramento no trecho "aos acusados em geral" do inciso LV do artigo 5º da CF/88 não é suficiente para garantir que o contraditório seja incluído no bojo dos procedimentos inquisitoriais, porquanto o só fato de ostentar natureza de direito fundamental não confere ao princípio em epígrafe ar de incondicionalidade.
Decerto que a nossa Constituição é extremamente eclética, englobando inúmeros valores. Ademais, como corolário desta pluralidade, tem-se que os direitos eleitos pelo constituinte originário para serem tidos como fundamentais não possuem carga absoluta, merecendo relativização ou flexibilização em determinadas hipóteses, havendo casos em que seja aconselhável até mesmo a repulsa da aplicação de certo direito fundamental, abandonando-o por completo naquele caso em específico. Isso ocorre nas conjecturas nas quais se verifica a contraposição de mais de um direito fundamental.
E para a solução desses casos em que princípios constitucionais de similar importância entram em rota de colisão, faz-se mister a utilização de um postulado interpretativo-constitucional conhecido como Princípio da Harmonização ou Concordância Prática. Este princípio conduz o intérprete à idéia de que na interpretação das normas constitucionais deva ele sempre coordenar, compatibilizar todos os valores constantes das normas interpretadas, de modo a evitar sacrifícios recíprocos.
Ou melhor, diante de um confronto entre valores igualmente importantes, deve o intérprete, ao invés de aniquilar um valor em detrimento do outro, tentar compatibilizar este estado de tensão, coordenando, pragmaticamente, os supostos valores conflitantes, harmonizando-os, de sorte a evitar o simples sacrifício de um dos bens jurídicos em confronto.
E para atingir o objetivo acima exposto terá o intérprete que se valer da análise dos interesses, de molde a concluir diante da situação esposada qual dos valores envolvidos deverá preponderar.
Desta forma, o que vai disciplinar a utilização ou a flexibilização de determinado direito fundamental nesses casos é o princípio constitucional da razoabilidade, que agirá por meio da mencionada técnica da ponderação dos interesses envolvidos na causa.
E é justamente através de um juízo de ponderação, em que se analisa todos os prós e os contras da situação, que se deve alcançar a solução para o embate entre dois direitos fundamentais, sendo dever do intérprete envidar todos os seus esforços no sentido de tentar visualizar a solução em que se restrinja menos a aplicação dos direitos em confronto, nem que para tanto tenha ele que se valer de verdadeiros contorcionismos interpretativos – contanto que não se afaste em demasia da coerência lógica/jurídica.
No caso do inquérito policial, que guarda importantíssimo papel no aspecto da segurança pública (assegurada em todas as suas vertentes no caput do art. 5º da CF/88), tem-se que a introdução impensada do contraditório poderia resultar na sua total inocuidade, posto que em não raras oportunidades a descoberta da "verdade" depende do elemento surpresa, e se houvesse a obrigação de se antecipar todos os atos da polícia judiciária, com o intento de se fazer valer o postulado do contraditório, seria possível que o investigado se precavesse, de molde a dificultar ou até mesmo inviabilizar a atuação policial.
Além disso, a conclusão do inquérito poderia se postergar demasiadamente, podendo vir a gerar a impunidade em decorrência da conformação ulterior da prescrição. Isso novamente repercutiria no aspecto segurança pública, pois é certo que a impunidade incentiva e impulsiona a criminalidade.
Neste diapasão, já elucidou Guilherme de Souza Nucci que:
A vantagem e praticidade de ser o inquérito inquisitivo concentra-se na agilidade que o Estado possui para investigar o crime e descobrir a autoria. Fosse contraditório, tal como o processo, poderia não apresentar resultado útil.
Nesta senda, resta configurado o confronto entre o direito do contraditório e o direito à segurança, ambos assegurados pela Constituição da República. Deve-se, portanto, utilizar o princípio da razoabilidade para solucionar este entrave, buscando a solução que se mostre mais razoável; ou seja, buscando-se a saída que menos agrida os direitos envolvidos na celeuma.
Bem, tendo em vista que a inserção do contraditório no bojo do inquérito policial praticamente inviabiliza o seu sucesso, mostrando-se extremamente prejudicial ao direito relativo à segurança, o que parece ser mais coerente é que seja possibilitado o deslocamento do contraditório para outro momento, qual seja após o encerramento do procedimento inquisitorial. Assim, garante-se a aplicação dos direitos relativos à segurança e ao contraditório, de sorte a conservar ambos os postulados constitucionais, dando-se primazia ao bom senso em detrimento da famigerada adoção do caminho mais fácil.
Esquadrinhando o nosso ordenamento jurídico observa-se, inclusive, que já existe um mecanismo que é plenamente capaz de servir com eficiência aos interesses de criação de um contraditório postergado: a defesa preliminar.
A defesa preliminar é instituto utilizado em alguns procedimentos especiais, como, por exemplo, nos relativos a crimes funcionais afiançáveis, a crimes de tráfico ilícito de entorpecentes e a crimes de menor potencial ofensivo; e consiste na concessão de oportunidade para manifestação do réu no interstício entre o oferecimento da denúncia e o seu recebimento, possibilitando ao acoimado promover a sua defesa antes da confirmação da relação jurídica-processual penal, com o escopo de tentar convencer o magistrado e/ou o Ministério Público da sua inocência.
Essa defesa, por sua vez, pode e deve atingir os elementos da fase inquisitória de forma ampla, sendo lícito incidir tanto sobre aspectos relativos à parte procedimental como sobre aspectos relacionados com o mérito das provas produzidas em desfavor do denunciado.
Nota-se, no entanto, que as possíveis provas a serem produzidas pela defesa visando ilidir, ab initio, a acusação terão que, por uma questão de lógica e bom senso, ser pré-constituídas, sob pena de caracterização de uma verdadeira instrução pré-processual, o que acabaria por dilatar descomedidamente o feito, tornando as benesses advindas do uso da defesa preliminar menores do que os malefícios trazidos à tona com a sua utilização.
Destarte, não seria lícito que o denunciado viesse a requerer a oitiva de testemunhas ou a produção de prova técnica no instante da defesa preliminar, somente sendo legítima a prática de convencimento derivada do uso de provas já existentes e devidamente documentadas, como, ex. vi., um termo de declarações de determinada pessoa decorrente de outro processo judicial – ou até mesmo de um processo de justificação movido com o intento de se obter tal meio de prova –, uma prova pericial já constituída etc.
Isso não impede, no entanto, que em situações extremadas, em cujas o magistrado tenha dúvidas sérias em relação à correção da imputação feita ao indigitado infrator, possa o mesmo ordenar a elaboração de provas outras capazes de ilidir tais dúvidas antes da aceitação ou rejeição da denúncia. Tal preceito, inclusive, foi consagrado na novel Lei Anti-tóxico, que, conservando o seu caráter vanguardista, traz em seu artigo 55, parágrafo 5º, o seguinte: Se entender imprescindível, o juiz, no prazo máximo de 10 (dez) dias, determinará a apresentação do preso, realização de diligências, exames e perícias.
Como se percebe, a defesa preliminar é a mais perfeita manifestação de obediência ao princípio constitucional do contraditório, tendo em vista que possibilita ao suposto agente infrator esboçar a sua defesa antes que a relação jurídica se concretize, evitando-se, desta forma, um mal maior, que seria a instauração de uma ação, com todas as suas mazelas, sem a ouvida judicial anterior da parte acusada. Em outras palavras, a defesa preliminar é a própria materialização do contraditório.
Desta maneira, tem-se que a utilização da defesa preliminar supre em demasia aos anseios de equilíbrio entre os direitos da segurança e do contraditório, sem que para tanto haja a necessidade de extirpação de qualquer deles do caso concreto, posto que a integridade e eficiência do inquérito policial são mantidas, ao passo que a produção de peça de defesa antes da oficialização da acusação por parte do Estado também é concebida.
É válido lembrar que a técnica do contraditório ulterior não representa nenhuma novidade no nosso mundo jurídico, posto que tal artifício é plenamente aceito para os casos daquelas provas cuja repetição não seja possível no processo criminal. São exemplos comuns as perícias realizadas durante a fase inquisitorial cujo material examinado tenha se exaurido. Nessas hipóteses, garante-se ao acusado a manifestação, já na fase processual, acerca do exame invectivado, materializando o que a doutrina batizou de contraditório postergado.
Assim, a generalização da defesa preliminar é apenas um mecanismo de se estender este contraditório a todos os elementos de prova que foram levantados, ou que deixaram de o ser, no inquérito, atendendo aos ditames da justiça e não da conveniência, como o atual modo de agir insinua.
Observe que a Defesa Preliminar ainda teria o condão de corrigir o teratológico procedimento ordinário, onde primeiro recebe-se a peça acusatória para só depois ser oportunizada ao acusado a exposição da sua defesa (defesa prévia) – numa clara evidência do caráter fascista do Código de Ritos Penais Pátrio, que foi elaborado sob forte influência do Estatuto Processual da Itália em vigor na famigerada época em que imperava o governo fascista no solo italiano.
O contraditório nada mais é do que o direito da parte de ser ouvida – por intermédio de manifestação capaz de interferir na convicção do julgador – antes da prolação da decisão. No caso do procedimento criminal comum, portanto, há uma nítida inversão da ordem dos atos, pois primeiro o magistrado decide – e não há que se questionar que o despacho que recebe a exordial acusatória, conquanto possua o nome de despacho, tem forte carga decisória, já que é neste momento que se analisa a presença ou não de todas as condições da ação (possibilidade jurídica do pedido, legitimidade de partes, interesse de agir e justa causa) – para só depois ouvir o réu.
Tal maneira de proceder, de forma inquestionável, não só agride o contraditório formal, como é notório, tendo em vista que o magistrado não ouve as duas partes antes de proferir decisão, como o próprio contraditório substancial, já que a manifestação a posteriori do réu não terá qualquer poder de influência sobre a decisão do juiz, que já foi tomada previamente, não podendo ser revista após a exposição dos argumentos da parte contrária.
Neste diapasão, tem-se que este formato de procedimento atual acabou por inutilizar qualquer capacidade de alegação defensória na Defesa Prévia, fazendo com que esta peça processual, ordinariamente, tenha assumido a função de mera petição de apresentação do rol de testemunhas.
E não poderia ser diferente, haja vista que qualquer argumento ali utilizado – com exceção das preliminares de mérito – não poderia refletir de imediato no decisum do magistrado da forma ideal, sendo mais cômodo e lógico que as alegações da defesa somente venham à tona com suas razões finais. Como consectário deste raciocínio, tem-se que também o direito a ampla defesa resta abalado pela atual formatação do procedimento ordinário.
Saliente-se ainda que, pelo procedimento ordinário, uma vez recebida a denúncia, é defeso ao Ministério Público desistir da demanda criminal, devido ao princípio da indisponibilidade da ação penal, de sorte que, ainda que o órgão acusador se convença dos argumentos do réu – expostos na defesa prévia ou em seu interrogatório, por exemplo – o processo terá que, obrigatoriamente, seguir, ainda que açodadamente, todo o seu rito normal, para só no instante dos memoriais finais ser possibilitado ao Parquet perquirir a absolvição do réu, sendo que o seu pleito não terá o condão de vincular o julgador, malgrado seja ele o dono da ação penal pública.
Tal problemática seria plenamente corrigida com a adoção do sistema da defesa preliminar, pois após a exposição, pelo acoimado, da sua defesa, é lícito ao presentante do órgão acusador requerer o encerramento imediato da persecução penal, até porque a ação penal não se teria aperfeiçoado (a ação se forma com a sua distribuição, contudo, somente se aperfeiçoa com a triangularização da relação jurídica-processual, conforme ensinamentos da Teoria Geral do Processo), não havendo que se falar em ofensa ao princípio suso citado.
Aqui vale fazer uma observação acerca da novel Lei Anti-drogas, que, coadunando-se com os ideais expostos na lei anterior que disciplinava a matéria, consagrou a Defesa Preliminar. Entrementes, tal Diploma Legal não deixou clara a questão da manifestação do Ministério Público após a apresentação da Defesa Preliminar. Isso não deve, contudo, fazer com que se adote posicionamento no sentido de que não seria necessária tal manifestação, pois a mesma é de fundamental importância para a sustentação do próprio sistema acusatório adotado no Brasil.
Ora, se a função da Defesa Preliminar é elencar motivos tendentes ao convencimento dos órgãos competentes acerca dos argumentos levantados pelo réu, é óbvio que tal peça deve passar pelo crivo do Parquet, pois é este o titular da ação penal, e é o seu convencimento que deve preponderar no momento de se iniciar uma demanda criminal.
Assim, trazidos novos elementos aos fólios, cabe ao Ministério Público ratificar ou não a exordial acusatória, pois acaso se suprima a fase de manifestação do Fiscal da Lei, poderemos nos deparar com a situação absurda na qual o Parquet se convença dos argumentos do réu, e o magistrado não, tocando para frente a ação penal quando o seu próprio titular não mais queria fazê-lo.
Este raciocínio é, mutatis mutandis, plenamente aplicável à ações penais de iniciativa privadas, pois, em que pese ser improvável que o queixoso desista da propositura da ação, ainda restará a possibilidade de o magistrado, imparcial que é, convencer-se dos argumentos do réu, pondo fim ao intento da suposta vítima de impor uma expiação do réu.
Saliente-se que ao revés do que acontece no processo civil, no qual o recebimento da petição inicial não passa de mero ato burocrático, no processo penal o recebimento da denúncia é ato de fundamental importância, possuindo vários efeitos, como a interrupção da prescrição, daí porque ser inexorável o seu caráter decisório.
Outrossim, gize-se que o fato de figurar no pólo passivo de uma demanda criminal e de uma demanda cível representam realidades totalmente díspares, sendo perfeitamente cognoscível que tais situações mereçam um tratamento diferenciado, impondo-se um mecanismo mais dificultoso para a instauração de um procedimento criminal à de um procedimento de cunho civil.
Observe que este argumento não se relaciona nem mesmo tangencialmente com a questão do contraditório referente ao inquérito policial, cingindo-se ao aspecto do contraditório inserto no bojo do próprio processo penal ordinário. É uma questão de coerência, primeiro ouvem-se as partes para só depois se decidir, e não o contrário.
Só assim estar-se-á fazendo incidir o processo penal democrático, que, nas palavras de Guilherme de Souza Nucci, caracteriza-se pela incidência das garantias constitucionais no seu bojo, mesmo que para a concretização desta incidência seja necessária a desobediência de normas infra-constitucionais.
Por fim, para arrematar o leque de argumentos a favor da Defesa Preliminar, vale repisar que tudo quando espraiado até então resta abalizado, inclusive, pelo princípio da dignidade da pessoa humana, que deve reger toda e qualquer interpretação constitucional, pois é indubitável que o simples fato de se figurar como indiciado num inquérito policial já gera inúmeros malefícios ao acusado (que logo lhe tem atribuída a peja de delinqüente), e, conseqüentemente, deve lhe ser lícito defender-se das acusações impostas antes que a acusação oficial do Estado – que se dá com o recebimento da exordial acusatória – se concretize, sob pena de, como já frisado em momento anterior, otimizar-se os prejuízos causados ao indivíduo que seja de fato inocente.
Ex positis, os benefícios advindos do uso da defesa preliminar são enormes, justificando a sua extensão ao rito comum dos processos criminais, merecendo alteração legislativa neste sentido, o que não inviabiliza a extensão, já nos dias atuais, de tal mecanismo, por adequação, pelo magistrado, do rito criminal à Constituição Federal, em homenagem ao Princípio da Interpretação Conforme a Constituição.
Desta forma garante-se o contraditório referente à fase inquisitorial, ainda que de maneira postergada, e constitucionaliza-se o procedimento criminal adotado pelo Código de Processo Penal vigente, solucionando-se dois graves problemas com uma só atitude.
Não é por menos que a Reforma Processual Penal em curso, presidida por Ada Pelegrini Grinolver, garante a existência da Defesa Preliminar em todos os procedimentos criminais, numa nítida tentativa de consertar um equívoco quase que secular.
BIBLIOGRAFIA:
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo e Execução Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.
NERY JÚNIOR, Nelson, e NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
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