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A construção histórica da distinção entre ética pública e moral privada e sua incidência no processo de formação do ideal dos direitos fundamentais:

a contribuição de Christian Thomasius

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Agenda 29/07/2007 às 00:00

4. O processo de formação do ideal dos direitos fundamentais.

A questão da separação entre ética pública e ética privada se dará no contexto histórico do aparecimento dos direitos fundamentais, na linha de evolução que chamamos de processo de formação do ideal dos direitos humanos, ou – no plano dos direitos constitucionalizados – direitos fundamentais.

Dentre as linhas de evolução dos direitos fundamentais desenvolvidas pelo professor Gregorio Peces-Barba estariam os processos de positivação, de generalização, de internacionalização e de especificação [08]. Antes, porém, do início do processo de positivação, ou melhor, do primeiro processo de positivação levado a cabo com as revoluções burguesas do século XVIII, nos parece acertado e didático falar em um anterior processo de evolução que seria o qual chamamos de processo de formação do ideal dos direitos fundamentais. Esse processo de evolução estaria diretamente relacionado com a fundamental pergunta da filosofia dos direitos fundamentais que seria: qual deve ser seu conteúdo? Essa seria, em nossa opinião, a terceira pergunta fundamental relativa aos direitos, uma vez que a primeira e segunda respectivamente seriam: o por quê (?) e o para quê (?) dos direitos fundamentais [09].

Esse processo de formação do ideal dos direitos fundamentais é iniciado na época que o professor Peces-Barba chama de trânsito à modernidade [10]. Para o autor espanhol, os direitos fundamentais são um conceito do mundo moderno resultantes exatamente das condições que surgem justamente nessa época de trânsito da Idade Média para Idade Moderna. O trânsito à modernidade será um longo período, que se iniciará no século XIV e chegará até o século XVIII, no qual pouco a pouco a sociedade irá se transformando e preparando o terreno para o surgimento dos direitos fundamentais. Com as mudanças que se darão no trânsito à modernidade, a pessoa reclamará sua liberdade religiosa, intelectual, política e econômica, na passagem progressiva desde uma sociedade teocêntrica e estamental a uma sociedade antropocêntrica e individualista.

No trânsito à modernidade as estruturas do mundo medieval serão progressivamente substituídas por umas novas, ainda que algumas permanecerão até as revoluções liberais do século XVIII. Ao longo do período em questão é quando se formará a, chamada pelo professor Peces-Barba, filosofia dos direitos fundamentais como aproximação moderna da dignidade humana, em meio das feições características das mudanças que se influem e se entrelaçam. Estas se dariam resumidamente nos campos da economia, da política e da mudança de mentalidade. A profunda mudança na situação econômica com o surgimento e progressivo amadurecimento do capitalismo e com o crescente protagonismo da burguesia, favorecerá a mentalidade individualista diante da visão do homem em estamentos (Peces-Barba, 1982, p. 5-6 e 10-24).

No campo político o pluralismo do poder será substituído pelo Estado como forma de poder racional centralizado e burocratizado. O Estado é soberano, na construção doutrinal que se inicia com Jean Bodin, ou seja, o Estado não reconhece superior e tem o monopólio no uso da força legitima. Seu crescente poder como Estado absoluto, a utilização do Direito como intrumentum regni, exigirão como antítese, para garantir ao individuo um espaço pessoal, a reclamação de uns direitos. Mas, o Estado absoluto é uma etapa imprescindível. Seu esforço de centralização, de robustecimento de uma soberania unitária e indivisível, sua consideração do individuo abstrato, o homo juridicus como destinatário das normas, criará as condições necessárias para o aparecimento dos direitos fundamentais positivados exatamente com as revoluções liberais contrárias ao Estado absoluto (Peces-Barba, 1982, p. 7 e 25-52).

Uma nova mentalidade, impulsionada pelo humanismo e pela Reforma, se caracterizará pelo individualismo, o racionalismo e o processo de secularização. Em concreto, a Reforma protestante, com a ruptura da unidade eclesial, gerará o pluralismo religioso e a necessidade de uma fórmula jurídica que evite as guerras por motivos religiosos. Neste espaço a tolerância, precursora da liberdade religiosa, será o primeiro direito fundamental (Peces-Barba, 1982, p. 7-8 e 53-122).

Todos estes elementos citados, e com o fim do domínio intelectual da teologia, o auge da nova ciência e a exaltação do naturalismo, em suas influências complexas, desembocaram em uma importância extrema do individualismo e de sua capacidade de iniciativa. O conceito de contrato social [11] e do Direito que surge se orientará também para explicar o aparecimento dos direitos fundamentais [12].

O iusnaturalismo racionalista representa, segundo o professor Eusébio Fernández, "(...) no âmbito da história do pensamento filosófico-jurídico, a consecução de um marco muito importante dentro do amplo, complexo e nada homogêneo movimento de secularização do mundo moderno" (Fernández, 1998, p. 575). Dito processo de secularização [13] se delimita exatamente por uma nova concepção do antigo problema da lei natural, e Thomasius será fundamental na construção dessa nova mentalidade. Como diz em seus ensinamentos, o professor Elías Díaz: "Precisamente a ruptura do monolitismo e a uniformidade religiosa por obra da Reforma protestante, levaria coerentemente à necessidade histórica de um iusnaturalismo não fundado de modo iniludível na lei eterna (...)" (Díaz, 1980, p. 270). No mesmo sentido que o professor Peces-Barba, continua o mestre de toda uma geração de jusfilósofos espanhóis, com o intuito de encontrar

(...) um conceito unitário de Direito natural, aceito por todos os homens, sejam quais forem suas idéias religiosas, fez-se necessário tornar independente aquele de estas. No novo clima de incipiente racionalismo (séculos XVI e XVII) de afirmação da autonomia e independência da razão humana diante da razão teológica, reflete-se que a base e o fundamento desse Direito Natural não pode ser mais a lei natural, senão que a mesmíssima natureza racional do homem, que corresponde e pertence de igual maneira a todo o gênero humano: a razão, diz-se, é o comum a todo homem. Sobre ela se pode construir um autêntico e novo Direito Natural. (Díaz, 1980, p. 270-271).

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Exatamente a partir desse contexto de mudanças na sociedade, evidentemente que no ocidente, é que começa a aparecer e delinear-se o conceito dos direitos fundamentais entendidos em seu início como direitos naturais, graças à contribuição do iusnaturalismo racionalista. Como sinalizou o professor Antonio Enrique Pérez Luño: "O conceito dos direitos humanos tem como antecedente imediato a noção dos direitos naturais em sua elaboração doutrinal pelo iusracionalismo naturalista" (Pérez Luño, 1979, p. 17) [14].

Na passagem de uma teoria do direito natural a uma teoria dos direitos naturais concretos, que irá desembocar nas declarações de direitos do século XVIII, será de fundamental importância um novo significado que define o iusnaturalismo racionalista e que o diferencia substancialmente de todas as teorias iusnaturalistas anteriores. Como aponta Alessandro Passerin D’Entreves: "A moderna teoria do Direito natural não era, falando com propriedade, uma teoria do Direito objetivo, senão uma teoria de Direitos subjetivos. Produziu-se uma mudança importante baixo o invólucro das mesmas expressões verbais. O ius naturales do filósofo moderno já não é a lex naturalis do moralista moderno nem o ius naturales do jurista romano" (D’Entreves, 1966, p. 75). Na formulação do direito natural racionalista será fundamental a separação das questões relativas à Moral do Direito, em outras palavras, a secularização do Direito natural será basilar para o aparecimento dos direitos fundamentais, e isso somente ocorre graças à mudança da mentalidade. Exatamente por esse motivo sinaliza Jürgen Habermas que "(...) a apelação ao direito natural clássico não era revolucionaria (...)", enquanto que "(...) a apelação ao moderno (direito natural) chegou a sê-lo" (Habermas, 1997, p. 88).

Na mudança de mentalidade que vai propiciar a luta e a positivação dos primeiros direitos fundamentais, então direitos do homem e do cidadão, alguns autores serão fundamentais para seu aparecimento. Serviram como fundamento e base dos mesmos. Estes serão os autores do iusnaturalismo racionalista. Entre eles podemos citar o primeiro período dos pensadores iusnaturalistas da época moderna, que o historiador do Direito Franz Wieacker classifica como precursores e fundadores do iusracionalismo, entre os quais encontram-se Johann Oldendorp, os autores da escolástica tardia espanhola, Johannes Althussius e o fundador por excelência do iusracionalismo Hugo Grotius (Wieacker, 1980, p. 303, 304 e 315 e seguintes). Também são dignos de menção os iusnaturalistas racionalistas (ou iusracionalistas) Thomas Hobbes, Baruch de Espinosa, Samuel Pufendorf que Wieacker classifica como a segunda geração (Wieacker, 1980, p. 304 e 340 e seguintes) de autores dessa corrente tão fundamental à formação do ideal dos futuros direitos humanos. Wieacker classificará Thomasius como pertencente a uma terceira geração dos iusracionalistas, juntamente com Christian Wolf, que servirá de elo entre o iusracionalismo e o Iluminismo (Wieacker, 1980, p. 353 e seguintes).


5. A contribuição de Thomasius ao Direito natural racionalista no cotejo entre ética pública e ética privada.

A segunda metade do século XVIII, como sabemos, constitui por muitos aspectos um período decisivo para a formação do pensamento filosófico e jurídico contemporâneo; mas será na primeira metade do século das luzes que começarão fundamentalmente a surgir os escritos mais explícitos resultantes de todo o processo anteriormente mencionado que formará o ideal dos direitos fundamentais. De esta forma, a separação do Direito da Moral, a necessidade de incrementar a tolerância religiosa e a crítica das instituições punitivas do antigo regime, todos temas fundamentais na elaboração posterior de um Direito Penal sobre novos fundamentos, serão inicialmente os capítulos principais da luta ideológica a ser travada como prova da mudança de mentalidade que se fazia necessária para a positivação dos direitos fundamentais no final do século em questão.

Não deve surpreender o interesse dos filósofos e juristas da Ilustração demonstrado pela tolerância religiosa e pelo regime repressivo da monarquia absoluta, pois o século XVIII não foi somente o século da razão, foi também o século dos sentimentos, da filantropia e da chamada dulcificação do Direito [15]. E estes valores tinham necessariamente seu ponto de partida no reproche à intolerância religiosa professada e na crítica a um Direito Penal violento, supersticioso e arcaico. Sem nenhuma dúvida as origens ideológicas de ambas críticas se encontram inspiradas no pensamento racionalista, humanitário e secularizador da Ilustração.

Desta forma com Christian Thomasius estamos diante de um autor ao mesmo tempo do início do Século XVIII e da transição com o século anterior, pois como foi visto nasce em 1655 e morre em 1728. Thomasius deve ser situado como iniciador da Ilustração, uma vez vista a importância que concede a luta pela dignidade humana numa autêntica cruzada contra o sistema penal da monarquia absoluta e pela separação do Direito da Moral. É considerado um continuador de Pufendorf, ainda que acrescentará uma importante dimensão original a sua obra, um pessimismo [16] recebido por sua formação luterana e uma fundamental aposta pelo processo de secularização que começa com Grotius. Diante do pensamento católico elogiará esta secularização: "Grocio fue el primero en resucitar de nuevo y empezar a purificar esta utilisima disciplina que había sido totalmente manchada, corrompida y casi muerta por el polvo del escolasticismo; así la disciplina dice por sí misma cuanto la revistió Pufendorf de manera excelente y honrosa y la defendió virilmente de sus variados adversarios (…)" (Thomasius, 1994, p. 5).

A filosofia jurídica de Thomasius está condensada em três de suas obras: Institutiones iurisprudentiae divinae libri tres (um tratado de Direito Natural em três tomos intitulado Instituições de Jurisprudência Divina – Frankfurt, 1688 – doravante Instituições); Fundamenta iuris naturae et gentium (Fundamentos de Direito Natural e de Gentes – Halle, 1705 – doravante Fundamentos) [17] e Paulo plenior historia iuris naturalis (História algo mais extensa do Direito Natural – Halle, 1719) [18]. A doutrina divide a obra de Thomasius em duas etapas, uma marcada pelo livro de 1688 e outra pelo livro de 1705. É corrente a afirmação no sentido de que sua obra evolucionou já que na primeira etapa era marcado pela influência de Hugo Grotius e, sobretudo Samuel Pufendorf e a segunda era genuinamente sua [19].

Na obra Instituições de 1688, Thomasius indicada que o Direito Natural é lei escrita no coração de todos os homens [20], conceito que alude a Deus como fonte imediata de Direito natural e, concretamente, a voluntas Dei, não a ratio divina (Blanco González, 1999, 137). Thomasius em sua primeira etapa, por sua formação de luterano, participa de um voluntarismo da fundamentação teológica imediata do Direito natural [21]. Afirma que esta lei escrita obriga a fazer o que é necessariamente conforme a natureza do homem racional e abster-se do que a ela repugna, referência à razão como fonte mediata do Direito natural [22]. Estas duas fundamentações, contígua teológico voluntarista de um lado e intermediaria racionalista do outro, se predicam do Direito natural quando Thomasius ainda não evolucionou na direção da distinção total entre Teologia e Filosofia (Blanco González, 1999, 137).

Em contrapartida na obra Fundamentos, de 1705, o Direito natural se conhece mediante o racionamento de ânimo sereno, sem nenhuma referência à revelação, é a razão individual a que descobre e fundamenta o Direito natural e todo o que a razão se opõe é um preconceito (Blanco González, 1999, 137). A referência a Deus permanece como autor da Natureza e, portanto, também da natureza humana, mas com tal afirmação fica claro que Thomasius não segue com a tese de Grotius de que o Direito natural existira ainda que Deus não existisse [23]. Agora sim, de maneira clara ficou estabelecida na obra de Thomasius a fundamental – e então inovadora – desconexão do saber filosófico com relação ao saber dos teólogos, cuja conseqüência mais imediata será a distinção entre Direito e Moral como normativas do comportamento autônomas e distintas.

Na obra de Fundamentos, ainda que nela permanece a influência do barroco e do luteranismo de seus primeiros anos, Thomasius, como foi dito anuncia já a Ilustração e desenvolve com sua distinção entre Direito e Moral a convicção, que se ia consolidando, de que o Estado e seu Direito não eram o instrumento adequado para realizar a concepção do bem de uma Igreja ou confissão, com o que anunciava, além da separação do Estado da religião, também a distinção entre ética pública e ética privada, tão decisiva para a compreensão do conceito de dignidade humana, que é um dos pilares da atual teoria dos direitos fundamentais (Peces-Barba, 2004 a, p. 42-43).

A contribuição de Thomasius à histórica separação entre ética publica e ética privada é de fundamental importância. O que realmente elucida sua doutrina de separação entre Moral e Direito é a afirmação de que a obrigação jurídica é essencialmente coativa: como o direito regula as ações externas e somente o externo pode chegar a ser objeto da coação (questões de ética pública), somente essa obrigação é coativa, sem que a coação possa, em câmbio, alcançar ao forum internum da consciência, que é onde se produzem os atos regulados pela Moral (questões de ética privada) (Fernández-Galiano, 2001, p. 484).

Segundo Antonio Fernández-Galiano é possível que esta tese de Thomasius tivesse uma finalidade bem prática, no sentido de criar um reduto – o foro da consciência – no qual o homem se encontraria a salvo da ação onipotente do Estado, titular da força coativa, que teria assim limitada sua eficácia ao foro meramente externo; mas seja assim ou não, o certo é que a afirmação teve conseqüências importantes para o conceito de direito natural (Fernández-Galiano, 2001, p. 484). Uma vez que a coação externa resulta ter um caráter essencialmente jurídico, o direito natural, como conseqüência do afirmado não é, ou não dever ser considerado como Direito, senão simples conselho. Neste sentido Thomasius textual e categoricamente afirma: "(…) la ley natural y divina pertenece más a los consejos que a los mandatos y la ley humana propiamente dicha no se refiere sino a normas imperativas" (Thomasius, 1994, p. 15). Se o direito natural não é Direito, ficará em simples ideal inspirador do único e autêntico Direito que é o positivo (Fernández-Galiano, 2001, p. 484).

Com um excessivo esquematismo, na opinião de Antonio Blanco González [24], Thomasius distingue três ordens ou sistemas normativos do obrar humano, que tendem uniformemente a conseguir a felicidade na vida, para qual se há de viver honesta, decorosa e justamente, que se referem as três ordens normativas: o moral, o político e o jurídico respectivamente. A Moral e a Política originam deveres imperfeitos. O Direito cria deveres perfeitos, distinção que Thomasius segue a Pufendorf. Blanco González (1999, p. 138) traduz a essência da clássica distinção dos fundamentos de Thomasius caracterizados nos planos do honesto (honestum), do decoroso (decorum) e do justo (iustum):

O honesto, identificado ao moral ou ético, provem do princípio faz a ti o quê queiras que os demais façam a si mesmos. Esta forma de comportamento é reflexiva; nasce e reverte no sujeito mesmo, carece de relação intersubjetiva ou alteridade; regula o campo das ações humanas das ações humanas boas, tendentes a alcançar a felicidade interna, motivo pelo qual gera mais que uma obrigação também interna que ninguém, mais que o próprio sujeito, pode exigir.

O decoroso, sinônimo de político, se nutre do princípio faz aos demais o quê queiras que os demais façam contigo. Esta norma de comportamento é de caráter transitivo e biunívoco; requere a existência de, ao menos, duas partes relacionadas entre si, pelo que seu caráter essencial é a bilateralidade. Esta norma regula as relações com os demais e tende a alcançar a benevolência alheia, é dizer, normatiza aquelas noções medias que nem promovem nem perturbam a paz externa, uma vez que em si mesmas não podem ser coativas.

O justo, equiparável ao Direito, provem do princípio não faças aos demais o quê não queiras que façam contigo. Esta norma, igualmente, é transitiva, biunívoca e, ademais, proibitiva, e se refere àquelas relações externas e intersubjetivas que tendem a assegurar a paz externa e que, por afetar a tranqüilidade social, são coercíveis. (grifos no original).

Desta forma em Thomasius encontramos plenamente situada a fundamental distinção entre Direito e Moral, ao separar o iustum, objeto do Direito, tanto do honestum, objeto da moral individual, como do decorum, objeto da moral social. Neste sentido, com um maior grau de maturidade que os iusnaturalistas anteriores, o autor alemão em sua etapa de Halle, formula a distinção entre o objeto da ciência jurídica e o objeto da teologia moral com a citada descrição das ações humanas referentes às respectivas esferas do iustum e do honestum, e a categorização das chamadas ações medianas, aquelas irrelevantes à consecução seja da paz externa como da paz interna, as que pertencem à órbita do decorum [25]. O honestum se refere à paz interna (a satisfação da íntima consciência) e o iustum à paz externa (a pacífica convivência social). O Direito limitá-se ao campo do iustum, e consiste no respeito aos demais e a abstenção para que cada um goze de seus próprios direitos. Com isto desenvolve-se a categoria autônoma da juridicidade, por seu caráter intersubjetivo e seu caráter coativo. É dizer, o Direito se refere e é competente unicamente nas ações exteriores que relacionam aos homens entre si e que se podem impor coativamente. Com esta afirmação, se produz a autonomia respectiva do Direito e da Moral, e praticamente se favorece – diante das Igrejas intolerantes e também diante do Estado – a liberdade de pensamento e a liberdade religiosa, posto que somente as ações externas podem ser objeto de coação. Para o professor Truyol y Serra, a separação entre Direito e Moral em Thomasius está "(...) inspirada en la finalidad política de excluir de la regulación estatal o eclesiástica lo relativo al fuero de la conciencia y la vida interior (...)"(Truyol y Serra, 1988, p. 273). Toda esta construção tem uma finalidade bem clara no sentido de que o Estado deve limitar-se a garantir a chamada paz externa. Além do que, a distinção entre Direito e Moral que Wolf completará mais tarde, será a base da concepção kantiana do Direito de cujas categorias vivemos ainda atualmente (Truyol y Serra, 1988, p. 273). A filosofia do Direito, nas palavras de Ernest Bloch (1980, p.300-301), com a contribuição de Thomasius perde assim completamente sua vinculação com a teologia, uma vinculação que, de uma maneira ou de outra, todavia havia sido mantida por Pufendorf e os demais autores iusnaturalistas anteriores.

Sobre o autor
Marcos Leite Garcia

doutor em Direito, mestre e especialista em Direitos Humanos e especialista em História da Inquisição pela Universidade Complutense de Madrid (Espanha), professor do curso de pós-graduação stricto sensu em Ciência Jurídica e da graduação em Direito da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Marcos Leite. A construção histórica da distinção entre ética pública e moral privada e sua incidência no processo de formação do ideal dos direitos fundamentais:: a contribuição de Christian Thomasius. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1488, 29 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10192. Acesso em: 23 nov. 2024.

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