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Alteridade: categoria fundamental da ética ambiental

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Agenda 04/08/2007 às 00:00

            "Je est un autre". (Arthur Rimbaud)


RESUMO: O presente artigo aborda a Alteridade enquanto categoria basilar e fundamental para a construção de uma Ética Ambiental que não seja apenas uma moral para o ser humano diante da Natureza, mas que leve em consideração as relações mais íntimas do ser-no-mundo que somos.


Sumário:1. A Natureza. 2. Natureza e Sociedade. 3. A Ética. A Alteridade como Categoria Fundamental da Ética Ambiental. Conclusão. Referências Bibliográficas.


INTRODUÇÃO

            Não é preciso que sejamos biólogos para perceber a grande deterioração que o homem vem causando ao ambiente natural ao longo de sua história. Hoje, em qualquer lugar, a qualquer instante, qualquer pessoa sabe, ou sente, que o planeta Terra vive um período de intensas transformações técnico-científicas, em contrapartida das quais engendram-se fenômenos de desequilíbrios ecológicos, que, se não forem remediados, no limite, ameaçam a vida em sua superfície [01].

            As guerras, a fome, a miséria, as doenças de massa, o desemprego, a deterioração do meio ambiente, a utilização irracional dos recursos naturais, as incertezas e a desestabilização dos valores são a face aparente de uma humanidade que está envolta em profunda crise, em busca de novos caminhos.

            Cada ser humano, e a humanidade como um todo, estão colocados diante de um futuro incerto. A modernidade, mesmo com todas as conquistas da ciência e da tecnologia, parece mais dividir e explorar do que libertar e emancipar o homem. A promessa de emancipação de todos os seres humanos, que seria uma decorrência lógica do uso da razão e dos recursos por ela proporcionados, não se realizou.

            Assim, a tradicional fé no progresso, na ciência e na tecnologia, sobre as quais a modernidade depositou todas as suas expectativas de realização do ser humano, está hoje profundamente abalada.

            Em raros momentos se pode constatar uma tal ruptura de padrões e modelos fundamentadores, ou seja, de paradigma civilizatório geral [02].

            Hoje, talvez mais do que em qualquer outra era de nossa existência, o homem tateia no escuro, na busca do reencontro consigo mesmo e com a natureza, tentando encontrar novas luzes, que lhe indiquem um outro caminho, uma nova forma de se relacionar com o seu ambiente e consigo mesmo.

            Este encontro, para que venha a acontecer, pressupõe, nos dizeres de CAPRA [03], uma mudança radical em nossas percepções, em nosso pensamento e nos nossos valores. Toda a questão dos valores é fundamental para a formulação de uma ética ecológica, de uma ética ambiental, que leve em conta a visão de interdependência de todos os seres, de sensibilidade humana e de sabedoria diante do mundo.

            A crise, sendo profunda, pois possui uma dimensão não só intelectual, mas moral e espiritual, demanda mudanças igualmente profundas nas estruturas e instituições sociais, em conjunção com novos valores e idéias [04].

            Dentre esses valores encontra-se a Alteridade, vista como categoria fundamental, como elemento basilar da construção de uma nova cultura que impulsione o homem a reencontrar-se consigo mesmo e com a natureza, a reencontrar, e reconhecer, no outro, a origem e o complemento de si mesmo, a restabelecer a paz com o corpo, com o alter e com a natureza.

            A alteridade, a visão e a inclusão do outro, é o grande determinante ético de qualquer moralidade, é pedra angular da construção de um novo futuro.

            Propomos, neste trabalho, abordar a Ética da Alteridade enquanto categoria que deve contribuir como elemento basilar de uma Ética Ambiental em construção, ética essa que não seja apenas uma moral para o ser humano diante da Natureza, mas que leve em consideração as relações mais íntimas do ser-no-mundo que somos [05].

            Para tanto abordaremos a questão da natureza, sua conceituação e as relações do ser humano com ela ao longo da história. Examina-se, a seguir, a questão da ética, de modo geral, e como os homens têm agido, nesse sentido, com relação à natureza e ao meio ambiente. Por fim, dirige-se a ótica para a questão da Alteridade e sua utilização como categoria ética capaz de compor as bases de uma Ética Ambiental.


A NATUREZA

            Num primeiro momento a indagação acerca do que vem a ser a natureza, segundo Carvalho [06], é facilmente respondível: todos conhecemos e usamos as expressões natural e natureza como contraponto àquilo que consideramos artificial, ou seja, pelo senso comum, natural é aquilo que não é artificial, ou, falando de outro modo, natural seria aquilo que a natureza fez, que só a natureza fez.

            Em contraponto, artificial seria aquilo que foi feito pelo homem, por obra humana, ainda que com recursos ou ajuda da própria natureza.

            Contudo, a questão não se coloca neste nível de simplicidade, não bastando, para uma melhor resposta, que consigamos caracterizar ou identificar quem (homem ou natureza) é o produtor ou construtor de determinada coisa para que possamos classificar esse produto de natural ou artificial.

            Tal se dá ao observarmos que,

            uma árvore, por exemplo, mesmo que tenha sido plantada no pátio de uma escola por um jardineiro, será sempre classificada de objeto natural, ao passo que essa mesma árvore, no momento em que virar escrivaninha, ou livro, não só deixará de ser árvore, mas também deixará de ser natural. [07]

            Contudo, ao menos no que se refere às origens, não há qualquer diferença entre a escrivaninha e a árvore.

            Ambas são fruto da natureza e ambas só existem em função do trabalho de alguém que as fez ter existência no lugar onde se encontram.

            Levando-se em consideração um outro aspecto, contudo, árvores e escrivaninhas são, sim, diferentes, quando se considera que uma é um ser vivo e outra não.

            Este reconhecimento, esta constatação de que duas coisas podem ser semelhantes e ao mesmo tempo diferentes, é dado pelas convenções que adotamos para ressaltar essas diferenças ou semelhanças, de acordo com as nossas conveniências.

            Esse limite convencional entre o que é natural e o que é artificial pode ser defendido, pois, a par de não conhecermos, ainda, com precisão, a origem de nossa espécie, ou a origem daquilo que veio a resultar nela. É forçoso admitirmos o fato de que, qualquer que seja a sua origem, o homem e sua espécie são, também, uma obra da natureza, e, até prova em contrário, somente dela.

            Nesse raciocínio, as diferenças entre os seres humanos e os demais seres que habitam ou compõe a nossa realidade não se devem à questão de que uns são naturais e outros artificiais.

            As diferenças serão encontradas nas dinâmicas, nos ritmos, nas finalidades, nas formas, na reprodução, na recriação que cada um ou o conjunto de seres que compõem o planeta vai apresentar.

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            Por tal razão é que as diferenças, e as semelhanças, para se apresentarem, necessitam de conceitos que as informem, de classificações, de agrupamentos, de medições e quantificações, tais como a classificação que costumamos fazer entre coisa que tem vida e coisa que não tem vida.

            Aqui, com base nesta classificação de coisas animadas e coisas inanimadas, fácil se torna uma primeira conclusão: as coisas que têm vida possuem também a capacidade do conhecimento, ou seja, mais do que estarem presentes no mundo, mais do que comporem o mundo, nele exercem ação, ao contrário das coisa sem vida, inanimadas, que apenas "estão" no mundo, compõem o mundo.

            Ao contrário de uma pedra, ou de uma montanha, que não aumentam ou diminuem de tamanho por ato próprio, um vegetal, ser vivo, "respira’, alimenta-se sem depender de qualquer ação que lhe seja externa.

            Já o ser humano, dentre os seres vivos, não possui apenas a capacidade de reagir ao mundo em que habita, mas desenvolveu uma outra capacidade que o diferencia de forma fundamental dos outros seres vivos, que é a capacidade de reflexão, de raciocínio consciente sobre suas ações, sobre seu "estar no mundo", sobre o seu "habitar o planeta".

            Tal capacidade, por ser própria do ser humano, o diferencia dos outros seres do planeta, a tal ponto de poder o ser humano interpretar sua posição, de refletir sobre essa posição e fazer a sua própria história no mundo.

            Aqui o ponto crucial sobre o questionamento primeiro: o que é natureza.

            Essa definição depende, face à nossa capacidade reflexiva, da percepção que temos dela, natureza, assim como depende da percepção de nós próprios enquanto seres colocados no mundo. Depende do significado que damos ao que nos cerca, daquilo com o que convivemos, dos nossos objetivos e sociedade. Assim como existe a história dos homens em função da convivência dos próprios homens com outros homens, a definição de natureza existe em função da convivência que com ela têm os homens, da necessidade que dela têm os homens, da compreensão que delas fazem os homens. A natureza, assim como os homens, tem uma história, mas é uma história contada pelos homens. A natureza foi e é definida, ao longo da história humana sobre a Terra, com base nos nossos conceitos sobre o que nos cerca.

            Por tal razão, difícil é um conceito finalístico e definitivo acerca do que é natureza. Aquilo que entendemos por natureza hoje não era o que se entendia por natureza num passado mais distante.

            Com relação às complexas sociedades atuais, o conceito de natureza varia de acordo com o que dela espera o observador nela inserido, haja vista que as formas de ver o mundo, e conseqüentemente a natureza, são hoje muito mais variadas e diferenciadas.

            A natureza, hoje, é uma coisa para um empresário do ramo de mineração. Pela forma de ver o mundo deste empresário, natureza nada mais é do que uma fonte de matérias primas de onde será extraída a mercadoria que lhe garantirá lucro.

            Para o agricultor, natureza é meio de sobrevivência, para o índio é espaço e fluido de vida que não se pode vender nem comprar.

            Falar de natureza, definir natureza, assim, não é apenas falar de pedras, água, montanhas, árvores, mesmo porque não haveria qualquer razão em definir natureza se não fosse em função de nossa própria inserção nela.

            Só há sentido em definir e falar sobre natureza a partir da associação dos elementos que a compõe com o ser humano, com a forma com que o homem vê cada elemento integrado a um todo maior, que é, então, aquilo que chamamos natureza.

            A sucessão histórica de formas de pensar e ver o mundo por parte do homem faz com que, de tempos em tempos, o conceito de natureza mude, havendo épocas, como a atual, em que, tantas são as formas de definir natureza quantas são as formas de ver o mundo.

            Sendo distintas as formas de pensamento humano, distintas são as conceituações de natureza, ou mesmo os entendimentos sobre sua existência.

            O poeta português Fernando Pessoa escreveu:

            Num dia excessivamente nítido,

            Dia em que dava vontade de ter trabalhado muito

            Para nele não trabalhar nada,

            Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,

            O que talvez seja o grande segredo,

            Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.

            Vi que não há natureza,

            Que natureza não existe

            Que há montes, vales, planícies,

            Que há árvores, flores, ervas,

            Que há rios e pedras,

            Mas que não há um todo a que isso pertença,

            Que um conjunto real e verdadeiro

            É uma doença de nossas idéias [08]

            Portanto, num mundo em constante mutação, mesmo a Natureza, cuja imagem de imutabilidade a ela está sempre associada, tem seu conceito e sua definição atrelada, associada às idéias e visão de mundo de quem a define.

            Depende, o conceito de natureza, do tipo de sociedade, do tipo de grupo humano, do tipo de pensamento de quem a define.

            Assim pode-se dizer que, para enfrentar a atual crise ambiental, é preciso, antes mesmo de definir o que é natureza, e para que ela serve, definir quem hoje somos, para que servimos, e que tipo de vida e de mundo desejamos, pois é com base no que somos e no que fazemos que temos, ou teremos, a natureza que queremos.


NATUREZA E SOCIEDADE

            A natureza, assim compreendida como o espaço natural, material e geográfico que nos cerca, existe a aproximadamente 4,5 bilhões de anos [09]. O surgimento do Homo sapiens deu-se por volta de 100 mil anos atrás.

            Esta diferença colossal de tempo em antiguidade em favor da natureza faz com que a história dos homens na Terra, comparada à história da natureza, tenha um significado que se pode comparar ao significado que alguns segundos têm se comparados ao ano inteiro.

            Assim colocado, pode-se imaginar, ao menos analisando-se o aspecto puramente temporal, que a natureza e os homens possuem histórias distintas e independentes, sendo mesmo de se pensar, vendo-se do ponto de vista da antiguidade de uma e de outro, que a história do homem sobre a Terra é destituída de significado e importância frente à natureza.

            Contudo, é necessário lembrar que, ainda que a natureza tenha cerca de quatro bilhões e quatrocentos mil anos a mais que o homem racional, sua história jamais teria sido desvendada não fosse a sua íntima ligação com a história dos homens.

            A relação homem-natureza iniciou assim que os primeiros hominídeos se desenvolveram na Terra. Para CAPRA [10],

            a aventura da evolução humana é a fase mais recente do desdobramento da vida na Terra, e para nós, naturalmente, tem um fascínio especial. No entanto, da perspectiva de Gaia, o planeta vivo como um todo, a evolução dos seres humanos tem sido, até agora, um episódio muito breve, e pode mesmo chegar a um fim abrupto num futuro próximo.

            De qualquer forma, desde as primeiras formas de organização social do homem é possível identificar a sua constante tentativa de compreender o mundo que o cerca e a si mesmo.

            Nas sociedades primitivas, a natureza não era nem sequer reconhecida como algo distinto do agrupamento humano, pois se confundia com o próprio espaço de vida desse agrupamento:

            As sociedades primitivas organizavam-se de tal maneira a garantir o consumo necessário e suficiente à sobrevivência do grupo. A vida era regulada também pelo rito mágico, associado á primeiras interpretações do homem para os fenômenos naturais [...] os primeiros agrupamentos sociais praticavam uma economia marcada pela sobrevivência simples e o homem dessa época, temeroso das manifestações do mundo natural, caracteriza-se por enxergar fenômenos naturais com espanto e os atribui a seres mitológicos envoltos em indecifráveis mistérios. [11]

            Assim, o misticismo e a organização social das tarefas entre os membros desses agrupamentos marcaram as primeiras evoluções desses grupos sociais ao longo dos primeiros milênios do aparecimento de nossa espécie na face do planeta.

            Nesse universo, entre os seres que o compunham, as diferenças existentes não eram de tal ordem a colocá-los em "mundos distintos", como hoje se conhece. Não havia, de forma delimitada, de um lado o mundo natural, de outro o mundo social, cada qual com sua existência.

            As carências, os desejos, as decepções, as paixões, as iras, a gratidão e demais atitudes humanas eram, também, comportamentos comuns entre os elementos da natureza, e acreditava-se poderem ser percebidos na planta que crescia, no trovão, na erupção de um vulcão, na chuva que caía, na morte de um animal.

            A relação do homem com a natureza, sua percepção de natureza, então, era a de que tudo estava vivo e em consonância com tudo, sem artifícios, sem produtos sociais, sem lucro, sem desigualdades sociais, como refere CARVALHO [12]:

            Assim conviviam – em muitos casos ainda convivem – a mulher, o homem, o ancião, o jovem, a planta "mulher", a planta "homem", o rio, a montanha, a ave "guerreira" (do campo aberto), a ave "pacífica" (do fundo dos bosques), as pedras, etc., cada um exercendo seu papel para que o mundo "funcionasse", segundo as interpretações e explicações que os primitivos a ele conferiam. Natureza era algo a ser inventado, a ser reconhecido como alteridade distinta a integrar o universo humano.

            Com o tempo e a dinâmica própria das sociedades humanas, bem ainda com o desenvolvimento de técnicas e a melhor utilização de utensílios, as primitivas sociedades de subsistência foram se transformando em agrupamentos diferenciados, nos quais a produção de alimentos ultrapassava as necessidades imediatas do grupo, gerando excedentes além de suas capacidades naturais de consumo.

            Com isso, puderam os povos primitivos, agora auto-suficientes em alimentação, dedicar mais tempo à observação de outros aspectos da vida, notadamente os fenômenos naturais e a própria natureza que os cercava, sem contudo, ainda, irem além da crença nos seres mitológicos e no sagrado que representavam a natureza e seus fenômenos. É na Grécia Antiga, contudo, que os historiadores identificam, ao menos sob a ótica do desenvolvimento do mundo ocidental, conforme KOYRÉ [13], localizam a ocorrência das primeiras sociedades organizadas em função dos excedentes produzidos.

            Na Grécia Antiga, na esteira dessa dinâmica, têm origem os primeiros passos em que tentativas racionais de interpretação dos fenômenos naturais são estabelecidas, surgindo neste momento os primeiros pensamentos que dispensavam interpretações mediadas necessariamente pelo divino e pelo sobrenatural. Começa-se a substituir uma relação de espanto pela natureza (desconhecida, por isso mesmo incompreendida) por uma tentativa muito incipiente de explicar racionalmente o mundo à sua volta, em contraposição às explicações míticas que vigoravam até então.

            É na Grécia do séc. VI a. C. que nasce esta nova forma de reflexão sobre a natureza, sobre os homens e seu universo: a filosofia.

            Decorre daí que, ao contrário da relação erguida no mito e nas crenças que baseava o relacionamento do homem com a natureza, o que, ainda que por temor ou respeito, fazia com que o homem não buscasse na natureza mais do que aquilo que ela parecia querer fornecer, ou mesmo mais do que aquilo que parecia necessário obter, a nova postura impeliu o homem ao questionamento, à crítica e análise da natureza e de si próprio enquanto elemento inserido no contexto.

            Para o dinâmico mundo grego [14], cujas particularidades da organização social de suas cidades-estados (as poleis) possibilitou o desenvolvimento das condições especiais para o surgimento de novas concepções de mundo promovidas pela filosofia, as velhas linguagens e antigas concepções sobre o natural e a natureza teriam que ser substituídas. E foi assim que a filosofia grega estabeleceu a oposição entre o "mundo da natureza" e o "mundo da sociedade".

            De Tales de Mileto, considerado um dos fundadores da filosofia, a Aristóteles, considerado o último dos grandes filósofos da antiguidade grega, e que foi o primeiro a propor definições para o termo natureza (phisys), admitindo o seu uso tanto para referir-se ao que não for produto do homem, como ao "substrato’ ou à matéria prima de que as coisas são feitas, passando por Pitágoras, Platão, Sócrates, e outros, o caminho da natureza e de sua alteridade se afirmou.

            Este momento, que assinala o que se convencionou chamar de pensamento racional, marcou um momento crucial no processo de evolução do ser humano, tanto no que diz com o progresso científico que adviria com essa nova postura quanto no que tange aos efeitos que essa nova relação homem/natureza passaria a desencadear.

            Para CAPRA [15],

            o mundo antigo e medieval tinha uma visão orgânica de mundo, com um modo correlativo de situar-se num Cosmos ordenado e determinado; vive-se em comunidades pequenas e coesas, com relativa autonomia, vivenciando-se mais proximamente os processos sócio-naturais (clima, terra, relação social, alimentos, medicamentos); com a interdependência entre fatores espirituais e materiais, e com a prioridade da comunidade sobre o indivíduo.

            Ainda, segundo CAPRA [16],

            os cientistas medievais, investigando os desígnios nos fenômenos naturais, tinham enorme consideração pelas questões relativas a Deus, à alma e à ética. Portanto, a noção de viver em um cosmos "fechado", mais orgânico e entrelaçado, e vivo, onde se está imerso (num lugar), numa casa, isso junto com um poder organizador mais forte que o humano, o qual deve ser respeitado.

            Assim é que, com relação à natureza, mesmo após o fim dos períodos grego e romano, durante a Idade Média Cristã, dominada pela Igreja, apesar de algumas adaptações realizadas por esta, a idéia de uma natureza orgânica, imutável, movida eternamente a partir de causas e fins pré-determinados, num mundo situado no centro do cosmos, tal como havia sido concebida pelos filósofos gregos, permaneceu. Até o final da Idade Média, a Terra é inquestionavelmente o centro do Universo em torno das visões de mundo de Aristóteles (séc. IV a.C) e de Cláudio Ptolomeu, astrônomo egípcio do séc. II d. C.

            Contudo, ao fim da Idade Média Cristã e da sociedade feudal houve uma nova revolução nas concepções sobre o natural e a natureza, no mesmo nível daquela promovida pelos gregos. Agora, a natureza não necessitava mais ser descoberta, mas sim conhecida e dominada para servir aos anseios do homem. Tal visão da natureza, como mero objeto cuja única utilidade era proporcionar ao homem conforto e bem estar teve sua origem ao fim da Idade Média (sécs. XV e XVI) principalmente com o surgimento de uma incipiente burguesia capitalista. Se antes o essencial era discutir a relação homem-Deus, ficando a natureza à margem, agora o homem é a preocupação principal, o que abre espaço para que se torne cada vez mais relevante a relação homem-natureza.

            Todavia, esta relação difere diametralmente daquela relação que se conhecia ante então, em que a natureza, apesar de reconhecida como outro, como alter, era tratada como algo sagrado, criado por Deus, portanto intocável e sujeito à veneração.

            Ao contrário, agora, na nova sociedade capitalista emergente, o conhecimento não busca mais o sentido de reconciliação do homem com o mundo, mas sim serve como meio de controle da natureza, que passa a ser vista apenas como uma "máquina perfeita" destinada a servir, com seus recursos, ao homem. Este período marca o que se denominou Revolução Científica, ou Revolução Mecanicista, de onde emergiu o "paradigma cartesiano". Para PELIZZOLI [17] na visão da Revolução Científica impera a metáfora do conhecimento do mundo como uma máquina, do mecanicismo e do materialismo físico, compondo um grande reducionismo. A postura frente à Natureza é bem outra, diferente daquela que tinham os Antigos e Medievais, bem como por várias outras comunidades humanas, orientais, indígenas ou africanas, e faz perder o caráter de ligação espiritual e de sentido com a multiplicidade de formas de vida e de organização do mundo pautado em torno da grandeza e forçada Natureza. O que ocorre é que uma racionalidade antes vista no mundo divino e espelhada no mundo hierarquizado (cosmos) vai sendo expurgada. Vão sendo abolidos os mistérios, os encantos, a poesia natural na admiração dos seres, e se começa a construir um grande aparato matemático, ligado à física e engenharia, depois à química, para mostrar que a Natureza segue leis rígidas, como um mecanismo que pode ser dividido em várias substâncias, sempre físico-químicas, e se inferem leis para imitar, alterar, manipular e transformar as várias formas da "matéria" naquilo que pode servir e enriquecer materialmente o ser.

            Nomes fundamentais desta revolução foram René Descartes, Galileu Galilei e Francis Bacon.

            Descartes, em sua filosofia, pregava a separação entre corpo e alma, a separação entre o ser humano e a natureza, o sujeito do objeto (res cogitans em oposição a res extensa). Via o homem como uma máquina, a natureza como um relógio, formada por partes justapostas que se poderiam analisar separadamente. Galileu Galilei afirmava que a "a natureza está escrita em linguagem matemática". Francis Bacon dizia que o objetivo da ciência era conhecer a natureza para poder dominá-la e controlá-la. Os textos de Bacon são carregados de passagens em que ele, literalmente, prega a tortura, a dominação como forma de arrancar os segredos e mistérios da natureza. Diante disso tudo, o antigo conceito da Terra, da natureza como mãe nutriente caiu por terra. O olhar sobre a vida tornou-se rígido e mecanicista. Embora alguns nomes de peso discordassem das idéias lançadas na revolução científica, como ESPINOZA [18], para quem a maior parte daqueles que escreveram sobre as afecções e a maneira de viver dos homens parece ter tratado não de coisas naturais que seguem as leis comuns a natureza, mas de coisas que estão fora da natureza. Mais que isso, parecem conceber o homem na natureza como um império num império, o paradigma cartesiano e a idéia de natureza como algo que não tem outra função, senão servir ao homem, atravessaram os séculos, vindo a desembocar na modernidade e tendo influência decisiva, segundo autores como CAPRA, na eclosão da crise ambiental e civilizatória que se instalou na sociedade moderna.

            De fato, a crença cega na razão e na idéia do progresso, que prometia a emancipação individual e geral do ser humano, entrou também em crise. Já não é mais possível manter a idéia simplista de que o progresso técnico, econômico e científico nos trará progressos sociais, políticos e morais, mesmo porque a noção de progresso que ainda vigora põe em risco o equilíbrio ambiental do planeta, haja vista estar calcado na produção de bens de consumo, o que fará com que se esgotem, em pouco tempo, caso não sejam transformados os nossos paradigmas, os recurso naturais existentes no planeta. Essa mudança implica uma reestruturação profunda nas estruturas e instituições sociais, com novos valores e idéias, que levem em conta a alteridade como elemento central ou basilar da construção de uma nova cultura que, tendo o homem como centro, busque o encontro com o outro, com a natureza e com o próprio homem, o encontro do homem consigo mesmo.

Sobre o autor
Antonio Augusto Biermann Pinto

advogado, especialista em Ciências Ambientais, professor de Direito Ambiental, Empresarial e Processual Civil da Universidade Reional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINTO, Antonio Augusto Biermann. Alteridade: categoria fundamental da ética ambiental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1494, 4 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10241. Acesso em: 27 dez. 2024.

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