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Responsabilização do Estado por danos decorrentes do consumo de organismos geneticamente modificados (OGMs)

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Agenda 12/08/2007 às 00:00

Quando a lei assenta que responderão solidariamente, independente de culpa, os responsáveis por danos ao meio ambiente e a terceiros, a Administração Pública não pode ficar alheia ao rol dos juridicamente imputáveis.

De uma coisa sabemos: a Terra não pertence ao homem. É o homem que pertence à Terra. Disto temos certeza. Todas as coisas estão interligadas como o sangue que une uma família. Tudo está relacionado entre si. O que fere a Terra fere também os filhos e filhas da Terra. Não foi o homem que teceu a trama da vida: ele é meramente um fio da mesma. Tudo o que fizer à trama, a si mesmo fará.

Seattle, Cacique dos Duwamish, em carta ao Governador de Washington (1856).


SUMÁRIO: Introdução; 1. O Mercado de OGMs: Perspectivas e Riscos; 1.1. Evolução; 1.2 O Consumidor perante o Mercado de OGMs; 1.3. Interesses Transindividuais; 1.4. Sociedade de Risco; 2. Os OGMs no Programa Jurídico-Político Brasileiro; 2.1. O Viés da Tutela dos Direitos; 2.2. O Princípio da Precaução: da Construção Teórica à Aplicação pelos Tribunais; 2.3. Os OGMs na Legislação Ordinária; 2.3.1. Lei nº. 8.974/95; 2.3.2. A "Nova" Lei de Biossegurança: nº. 11.105/05; 3. A Responsabilidade do Estado; 3.1. Fundamentos Constitucionais da Responsabilidade Civil da Administração Pública; 3.2. Responsabilidade Civil por Dano ao Meio Ambiente; 3.3. A Eventual Responsabilidade Solidária da Administração Pública por Danos Decorrentes do Consumo de OGMs; Considerações Finais; Notas; Bibliografia.


INTRODUÇÃO

A polêmica em torno dos organismos geneticamente modificados (OGMs) está distante de se dissipar. Inúmeras são as interrogações levantadas desde a mera acepção do termo transgenia até as conseqüências do cultivo e da ingerência desses alimentos modificados na saúde humana, na qualidade de vida e no equilíbrio do meio ambiente.

Por meio da tecnologia do DNA Recombinante, o melhoramento clássico – a reprodução – deixou de ser a única opção para se incrementar espécies vivas, inserindo-se em um organismo uma característica de interesse procedente de um outro, que acarreta circunstâncias nunca antes possíveis.

Os progressos científicos se dão no sentido de aperfeiçoar as tecnologias conhecidas, resultando em maior domínio humano para acarretar um alcance mais amplo da qualidade de vida. Dúvidas não restam de que os avanços da ciência, as descobertas da engenharia genética – a biotecnologia em si – representam parcela expressiva da produção social de riqueza. No entanto, tem se percebido que evoluções andam atreladas à produção social de riscos.

Em diversos países da Europa e nos Estados Unidos, pesquisas na área de segurança alimentar e ambiental, embora ainda guardem grandes incertezas, já estão adiantadas. No Brasil, a discussão permaneceu estagnada por várias razões de ordem político-econômica. O despertar se fez sofrer em 1997, com a chegada da soja transgênica Roundup Ready da multinacional Monsanto ao país. Foi o primeiro carregamento autorizado pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio).

Apesar de já existir Lei de Biossegurança em vigor na época – lei nº. 8.974/95, hoje revogada em seu inteiro teor pela lei nº. 11.105/05 –, os impasses quanto à liberação para pesquisas, licenciamento ambiental do produto e comercialização eram constantes, sendo necessárias medidas mais claras e objetivas acerca da natureza jurídica da CTNBio – criada por essa lei – a fim de dar cumprimento às suas atribuições. No período entre a promulgação da lei nº. 8.974/95 e a entrada em vigor da que a substituiu, alguns decretos almejavam apaziguar esses impasses, prevendo: a realização de estudo de impacto ambiental em torno de projetos que pudessem afetar a diversidade biológica; a implementação da Política Nacional da Biodiversidade – que objetivava a defesa do meio ambiente e da saúde humana; e enquadrar o tratamento dado aos OGMs nos parâmetros do Código de Defesa do Consumidor (MAGALHÃES, 2006, p. 25ss).

A nova Lei de Biossegurança, evidenciando a crise da baixa constitucionalidade vivenciada no país (STRECK, 2004a, p. 302), prevê poucos avanços e, por outro lado, manifesta retrocessos consideráveis em relação à lei anterior, os quais, inclusive, guardam indícios incisivos de incompatibilidade com as normas constitucionais. A lei estabelece normas que podem ensejar condutas propiciatórias de danos: no art. 16, § 3º, institui a incumbência da CTNBio de deliberar, em última e definitiva instância, sobre os casos em que a atividade é potencial ou efetivamente causadora de degradação ambiental, bem como sobre a necessidade do licenciamento ambiental. Isto significa dizer que a Comissão poderia desprezar a necessidade de prévia análise de impacto ambiental – que é imposição constitucional – quando julgar que determinada atividade não enseja ofensa potencial. E, ainda, autoriza, nas disposições finais e transitórias, a produção e a comercialização de sementes de cultivares de soja geneticamente modificadas – tolerantes a glifosato – cadastradas no Registro Nacional de Cultivares (RNC) do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

Não há como diminuir a importância da Responsabilidade do Estado diante do atual tratamento jurídico que recebem os OGMs no ordenamento brasileiro quando o Poder Público tem o dever constitucional de zelar pelo meio ambiente equilibrado – essencial à sadia qualidade de vida (art. 225, caput); e o dever de fazer exigir estudos prévios de impacto ambiental acerca de toda e qualquer atividade que vislumbre desencadear prejuízos ao meio ambiente e à saúde. Nesta perspectiva, quando a mesma lei assenta que responderão solidariamente, independente de culpa, os responsáveis por danos ao meio ambiente e a terceiros, a Administração Pública não pode ficar alheia ao rol dos juridicamente imputáveis.

Desenvolver a proposta de tutela reparatória, nos casos onde se verifica um prejuízo, talvez não represente garantia alguma de que danos não virão a ocorrer. A obrigação de indenizar, entretanto, não deixa de constituir ameaça à integridade patrimonial futura da pessoa jurídica de direito privado (CAUBET, 2005, p. 43), causadora do dano, e à Administração Pública, que tem se manifestado condescendente com ações imprevidentes que expõem terceiros a conseqüências prejudiciais.


1.O Mercado de OGMs: Perspectiva e Riscos

1.1. Evolução

A tecnologia dos organismos geneticamente modificados (OGMs) – ou dos transgênicos, como são mais conhecidos – é um conhecimento científico recente. Data de 1973, quando, por meio de técnicas específicas, se tornou possível permutar genes entre espécies vivas, que, em virtude de suas naturezas distintas, jamais se relacionariam. A causa-base desta transmutação é propiciar alterações no mecanismo de produção de proteínas no organismo modificado, fazendo com que: (i) passe a sintetizar novas substâncias; (ii) deixe de produzir proteínas que, antes da modificação genética, eram engendradas; (iii) ou, até mesmo, acumule quantidades significantes de substâncias já presentes no organismo (GUERRANTE, 2003, p. VII).

Graças à tecnologia do DNA recombinante, os cientistas podem identificar e isolar, no genoma de um dado organismo, um único gene responsável por uma determinada característica de interesse. Transgene, por sua vez, é aquele gene transportado de organismos diferentes da espécie do organismo-alvo e a ele fundido para que as alterações no genoma deste organismo sejam mais precisas e previsíveis do que as obtidas pelo melhoramento clássico, qual seja, o cruzamento, que mescla, em combinações aleatórias, todo o conjunto de genes dos dois organismos. Diversos são os fundamentos sócio-econômicos que impulsionam a transgenia, dentre eles, por exemplo, a idéia de imunizar tipos de vegetais contra herbicidas e a de enriquecer espécies de grãos constituintes da dieta básica de um grupamento populacional específico – caso do arroz na Ásia – com vitaminas que, embora estranhas a essas espécies alimentícias, sejam indispensáveis à saúde humana (RIECHMANN, 2002, p. 34ss).

É prática do ser humano valer-se de meios que possibilitem conhecer e administrar os recursos naturais ao seu redor. Há milênios, ele domestica animais, melhora raças e hibridiza animais e plantas. Nesta configuração, jaz a previsibilidade, indispensável a uma melhor e crescente qualidade de vida.

Por outro lado, a história destas práticas demonstra a existência de restrições naturais impostas pelas fronteiras das espécies: ainda que estes limites tenham sido eventualmente ultrapassados, as investidas nunca foram vistas com bons olhos e, não raro, proibidas. Tanta reserva tem seus fundamentos: animais híbridos como as mulas, por exemplo, são estéreis e as plantas híbridas, isto é, geradas por pais diferentes da mesma linhagem ou espécies vizinhas, não se reproduzem de forma eficiente. Em algumas palavras, percebe-se que há limites implícitos àquilo que pode ser manipulado e em que medida deve ser manipulado quando se trabalha no nível do organismo ou no da espécie (GUERRANTE, 2003, p. 1ss, 148).

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Com a produção de sementes geneticamente modificadas, as promessas cresceram. Juntamente com elas, o ceticismo acerca da sustentabilidade desta cultura devido aos resultados pouco conclusivos. Em 1996, a multinacional Monsanto, hoje responsável por mais de 90% de todas as espécies de cultivares transgênicas no mundo, lançou no mercado a soja Roundup Ready, que teve repercussão imediata entre os produtores agrícolas no mundo inteiro. Foi encontrada uma bactéria imune ao glifosato, isolou-se o gene responsável por esta característica de interesse e, em seguida, introduziram-no no DNA da soja, o qual passou a apresentar resistência. O advento da semente resistente ao herbicida coincidiu com o aumento progressivo do cultivo de sementes geneticamente modificadas. Em 1995, havia menos de 200.000 hectares transgênicos no mundo; no ano seguinte, o número saltou para 2 milhões; em 1999, para 40 milhões. Destes últimos, 99% abrigados pelos Estados Unidos, Canadá e Argentina (RIECHMANN, 2002, p. 21).

A discussão no Brasil em torno dos transgênicos permaneceu estagnada por várias razões de ordem político-econômica. O despertar se fez sofrer em 1997, com a chegada da soja da Monsanto ao país. Foi o primeiro carregamento autorizado pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), órgão encarregado pela gerência dos assuntos concernentes aos OGMs, criado pela lei 8.974/95, hoje revogada. A CTNBio, ao analisar o pedido de uso do produto em escala comercial, limitou-se a examinar os resultados das pesquisas de segurança alimentar e ambiental apresentados pela Monsanto. A Comissão dispensou, assim, a realização de estudo e de relatório de impacto ambiental (EIA/RIMA) no Brasil, analisando, tão-somente, o EIA/RIMA feito nos Estados Unidos e apresentado pela própria multinacional. A isto, some-se o fato de que a estratégia da empresa no Brasil era cruzar a espécie americana desta soja – que já detinha EIA/RIMA e já havia sido aprovada para comercialização por órgãos norte-americanos – com uma variedade brasileira, postura que elidiria a validade do estudo e relatório, uma vez que, obtido êxito no cruzamento, ter-se-ia um organismo derivado de OGM, de essência diversa. Antes da entrada no mercado da espécie variante obtida, nenhum estudo ou relatório de impacto ambiental foram realizados (GUERRANTE, 2003, p. 55s).

Toda a polêmica não é sem razão. Há quase 20 anos, surgiu, nos Estados Unidos, uma epidemia misteriosa da síndrome de eosinofilia-mialgia, caracterizada por dor muscular e pelo aumento de leucócitos no sangue. Mais de 5.000 casos foram registrados sem que se identificasse a causa de imediato. Pelo menos 37 pessoas morreram e outras 1.500 ficaram com seqüelas permanentes, antes mesmo que a Food and Drug Administration (FDA), a agência norte-americana de fármacos e alimentos, descobrisse uma associação estatística da síndrome com um complemento alimentar, o triptofano L. Verificou-se que 95% dos casos poderiam seguramente ser atribuídos ao complemento alimentar produzido pela empresa japonesa Showa-Denko. Todo o estoque disponível foi recolhido, mas os prejuízos já tinham se desencadeado. Havia no triptofano bactérias geneticamente modificadas com a estrita finalidade de que auxiliassem no tratamento de alguns males. O que o controle de qualidade da empresa e a fiscalização sanitária não foram capazes de prever era que, paralelo ao triptofano, as bactérias manipuladas estavam também produzindo quantidades crescentes de uma toxina capaz de provocar a síndrome. Lamentavelmente, não se pôde exaurir o caso e saber até que grau o OGM acarretou o problema, pois a empresa destruiu todos os lotes contaminados (LEITE, 2000, p. 26ss).

Com essas mudanças, que, desmedidamente, fazem uso da aplicação dos progressos científicos e tecnológicos resultantes das pesquisas nas ciências biológicas, a engenharia genética permitiu diminuir a barreira das espécies e aumentar a rentabilidade do agronegócio para seus empreendedores sem que, para isto, se salvaguardasse a proteção ao consumidor, destinatário final de todo esse processo, e o meio ambiente, verdadeiro fornecedor de toda a matéria-prima e prejudicado imediato em decorrência de todas as situações novas geradas pela tecnologia do DNA recombinante. Teve, então, início a longa e interminável temporada de relações tensas entre o público-consumidor e o setor de pesquisas.

1.2.O Consumidor perante o Mercado de OGMs

Em face das novas conquistas científicas que, uma vez incorporadas ao dia-a-dia da população, devem afastar qualquer comprometimento da melhoria da qualidade de vida, o Poder Público se depara com a missão proeminente de eliminar da atividade econômica a lógica de mercado, que desconsidera a vulnerabilidade do consumidor e do meio ambiente, protegendo-os, em contrapartida, como valores prioritários na configuração atual de Estado intervencionista.

Assim, a Constituição Federal estabeleceu, no art. 5º, XXXIII, que o Estado proverá, na forma da lei, a defesa do consumidor. Realça de importância a sua inserção entre os direitos fundamentais, com o que se erigem os consumidores à categoria de titulares de direitos constitucionais fundamentais. Conjugado com isto, está o previsto no art. 170, V e VI, que eleva, respectivamente, a defesa do consumidor e do meio ambiente à condição de princípios da ordem econômica. Tudo somado, tem-se o relevante efeito de legitimar todas as medidas de intervenção estatal necessárias a assegurar a proteção prevista (SILVA, J. A., 2003, p. 261s).

Neste escopo, conforme há de se demonstrar, o Judiciário deve desempenhar papel indispensável à efetividade destes dispositivos, mormente quando a Administração Pública – por razões políticas e organizacionais outras que cabem mencionar em momento mais oportuno – assume postura de atos insipientes sucessivos rumo à liberação irrestrita e desajustada dos OGMs no mercado consumidor. Na verdade, a postura deveria seguir direção diametralmente oposta: a de guarda e zelo das diretrizes estipuladas em sede constitucional. Tome-se, como exemplo, o litígio judicial impulsionado pelo Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC), Greenpeace e Ministério Público Federal em face da Monsanto e da União por haver emitido parecer técnico conclusivo para que a soja geneticamente modificada resistente a glifosato fosse comercializada sem que sequer houvesse sido realizado estudo prévio de impacto ambiental (EIA/RIMA), estudo sobre a segurança dos alimentos e criadas as normas de rotulagem. O caso é paradigmático no sentido de que atesta a tendência crescente de se sindicar tais procedimentos tipicamente administrativos sob regência da esfera jurídica, tendo em vista a atuação deficitária da Administração no amparo à hipossuficiência dos consumidores e à atacabilidade do bem difuso meio ambiente.

Embora com longo caminho a percorrer-se, tal caso só pôde suceder com o advento da tutela civil coletiva. Em decorrência da desigualdade de condições a que os consumidores são submetidos, o ordenamento jurídico passou a possibilitar a defesa dos interesses dos consumidores por meio da Ação Civil Pública. A lei 7.347/85, recepcionada pela Constituição de 88, tornou possível que se agrupassem os consumidores ou então que eles entregassem a um órgão com maior capacidade de postulação a defesa dos seus legítimos interesses.

As circunstâncias acerca da vulnerabilidade do consumidor se tornam mais evidentes quando se levam em conta os danos causados por um produto alimentício ou medicinal nocivo à saúde; ou, então, por outros de consumo durável perigosos, ficando as vítimas em situação de literal desamparo não apenas em face da impotência diante do produtor e do Poder Público, mas também diante dos frágeis instrumentos de defesa de que se costumava dispor. Esta fragilidade era demonstrada pela exigência, até hoje vigente, em casos que escapam à responsabilização objetiva, de não se demonstrar somente o dano sofrido, como também o nexo causal entre o dano e o produto (FILOMENO, 2005, p. 308ss).

O campo de proteção dos interesses consumeristas é vasto. Seja pela saúde, segurança dos produtos e serviços, propagandas enganosas, exigência de qualidade e quantidade, direito à informação sobre produtos e serviços, conteúdo dos contratos, direito de associação, não-submissão a cláusulas abusivas, prestação eficiente dos serviços públicos e meio ambiente – conforme dito – sadio e equilibrado. A razão de ser desta amplitude se fundamenta na natureza de ordem pública da matéria, uma vez que envolve nítido interesse social.

Desta forma, a lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor (nº. 8.078/90) inclui, na classe, além de pessoa física e jurídica destinatária final do produto, a coletividade de pessoas – ainda que indetermináveis – que tenha intervindo nas relações de consumo. O conceito, previsto no art. 2º e parágrafo único da lei, ainda se alastra pelos arts. 17 e 29, segundo os quais ainda são consumidores todas as vítimas de danos causados por defeitos do produto ou relativos à prestação de serviços e todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas comerciais. O rol, portanto, não é taxativo, afrouxando a delimitação do conceito para melhor atender a situações supervenientes em que se possa constatar a existência de relação de consumo (MAZZILLI, 2006, p. 153).

Cabe, agora, aclarar as definições dos vários tipos de interesses transindividuais, uma vez que a doutrina já tem se ocupado com a construção das suas linhas de raciocínio baseadas em conceitos bem delineados, de suma importância prática.

1.3.Interesses Transindividuais

A discussão remete a um ponto próximo, onde se indaga, antes, acerca do interesse público. Quando se fala em interesse social e geral, percebe-se que a noção de ambos está estreitamente ligada à idéia de coletividade e sociedade civil, enquanto no interesse público, jaz a predominância da presença semântica de Estado em primeiro plano. É como se, ao Estado, coubesse não só a ordenação normativa do interesse público, mas também a indicação soberana do seu conteúdo. Na acepção jurídica, tem-se o aspecto da competência para a arbitragem entre os interesses particulares; invoca-se a participação do Estado-administrador ou do Estado-legislador (MANCUSO, 2004, p. 31ss).

Tamanhas são as possibilidades de se divagar dentro desta conceituação que Renato Alessi entendeu oportuno distinguir entre interesse público primário e interesse público secundário, onde o primário representa o interesse social – enfim, o bem comum –, e o secundário evidencia o modo pelo qual os órgãos da Administração vêem o interesse público. Contudo, diante da constatação de que a sociedade atual é cada vez mais complexa e fragmentária, já se sustenta o esvaziamento do conceito de interesse público devido à conflituosidade inerente aos interesses transindividuais. Em que pese esse argumento, ainda é possível se defender uma noção de bem comum, isto é, a própria concepção de interesse público primário, ainda que, com isso, não se atenda a todos os anseios. Sem mais se ater a esta questão, importa mencionar que os parâmetros constitucionais fazem se aplicar eficazmente (apud MAZZILLI, 2006, p. 47).

Seja no tocante ao consumidor, seja ao meio ambiente, o fato é que essa categoria de interesses se relaciona sob o gênero daqueles transindividuais, intermediários entre os interesses públicos e os privados. Os transindividuais – ou coletivos, numa acepção ampla – são compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas, excedem o âmbito individual, mas não alcançam o patamar do público propriamente dito. Segundo o CDC, art. 81, parágrafo único, I, difusos são interesses ou direitos transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato. Inexiste, pois, vínculo jurídico entre elas. Na hipótese do trabalho, os danos decorrentes do consumo de alimentos transgênicos em suas variações seriam a circunstância de fato. Apesar de dizerem respeito a toda aquela categoria indeterminável – consumidores –, causou prejuízo aos indivíduos que apresentaram problemas de saúde, daí ser o objeto dos interesses difusos indivisível, qual seja, a pretensão ao meio ambiente saudável e equilibrado, que não pode ser quantificada e dividida, uma vez que todos submetidos à classe consumidora têm interesse no objeto.

Paralelamente, no art. 51, § 4º, o CDC conceitua interesses individuais homogêneos como os de grupo, categoria ou classe de pessoas determinadas ou determináveis, que compartilhem prejuízos divisíveis, de origem comum, oriundas, via de regra, das mesmas circunstâncias de fato. Na hipótese estudada, a circunstância de fato poderia ser, como no interesse difuso, o consumo do alimento transgênico; o objeto da pretensão seria divisível – o dano ou a responsabilidade se caracteriza por sua extensão divisível ou individualmente variável entre os integrantes do grupo, na medida em que estes foram prejudicados; e a origem comum – o dano – não decorreria do contrato de compra e venda de quando o alimento transgênico foi adquirido, isto é, não decorre de relação jurídica em si, mas da situação fática de se ter ingerido o produto e este ter apresentado nocividade à saúde.

Os interesses coletivos, em acepção mais lata, referem-se a interesses transindividuais em si, de grupos, classes ou categorias de pessoas. Ao mesmo tempo, o CDC introduziu um conceito mais restrito de interesses coletivos. De acordo com o art. 81, parágrafo único, II, coletivos, em sentido estrito, são interesses transindividuais indivisíveis de um grupo determinado ou determinável de pessoas, reunidas por uma relação jurídica básica comum. Aqui, a lesão decorre não da relação fática subjacente, mas do vínculo jurídico que une o grupo como em um contrato de adesão, por exemplo.

Ressalte-se que o mesmo interesse não pode ser, ao mesmo tempo, coletivo, difuso e individual homogêneo. Pode ocorrer que o mesmo feixe de fatos, sob uma única relação jurídica, venha a provocar o surgimento de interesses transindividuais de mais de uma categoria, os quais podem, até mesmo, ser defendidos na mesma ação civil pública, mecanismo legal apto para defesa deste gênero de interesses (MAZZILLI, 2006, p. 46ss). É o caso da hipótese fática pretendida, que engloba duas vertentes: a dos interesses difusos e a dos individuais homogêneos.

Interesses difusos, adverte Mazzilli (2006, p. 51), podem ser tão abrangentes que chegam a coincidir com o interesse público – meio ambiente como um todo, OGMs e classe geral de consumidores; menos abrangentes que o público, por dizerem respeito a um grupo disperso, mas que não chega a confundir-se com o interesse geral da coletividade – consumidores de um produto específico; podem conflitar com o interesse da coletividade com um todo – interesses dos trabalhadores na indústria de tabaco; conflitar com o interesse da pessoa jurídica do Estado – interesse dos contribuintes; podem ainda ser atinentes a grupos que mantêm conflitos entre si – interesses transindividuais reciprocamente conflitantes como no caso de um aeroporto que serve a uma coletividade, mas prejudica os moradores das imediações com a poluição sonora.

Após as considerações acerca dos interesses transindividuais, passa-se à análise do suporte sociológico para a compreensão do imbróglio em torno dos OGMs.

1.4.Sociedade de Risco

Os avanços da ciência, as descobertas da engenharia genética, a biotecnologia em si, representam parcela expressiva da produção social de riqueza. No entanto, torna-se inevitável que os passos dados adiante andem atrelados à produção social de riscos, suportados em escalas maiores.

A sociedade contemporânea se depara com o seguinte paradigma: avaliar meios para evitar ou, ao menos, minimizar os riscos e perigos produzidos no curso do processo de desenvolvimento, de forma que nem obstaculizem esse processo, nem excedam os limites do sustentável ecológica, medicinal ou socialmente. Não se trata mais do aproveitamento dos recursos naturais em si, do desprendimento do ser humano no que tange a obrigações tradicionais, mas trata-se, também – e essencialmente –, de problemas que são conseqüência do próprio desenvolvimento econômico-tecnológico. O processo de modernização se torna reflexivo, ele mesmo se transforma em tema e problema, uma vez que as questões do desenvolvimento e da aplicação de tecnologias são substituídas por questões da gestão política e científica – administração, descobrimento, inclusão, prevenção e ocultação – dos riscos tecnológicos, reais ou potenciais, a serem avaliados mediante situações específicas (BECK, 1998, p. 26).

Valer-se do risco para designar uma tendência contemporânea – quando, na verdade, o risco sempre existiu – tem sua justificativa. Como se disse, o desenvolvimento está intrinsecamente ligado à produção de riscos, ao potencial de dano das atividades tecnológicas. Portanto, não é de se estranhar que a promessa de segurança cresça com os riscos. Antes, os riscos não ultrapassavam esferas pessoais, segundo Beck (1998, p. 19), a palavra risco não ia além do contexto de coragem e aventura; hoje, abarca a noção de possível autodestruição da vida ao alcançar escalas globais e implícitas, imperceptíveis aos sentidos. Enquanto na sociedade industrial a lógica de produção de riqueza dominava a lógica de produção de riscos, na sociedade de risco, dá-se a inversão desta lógica anacrônica. A nova lógica é reflexiva e implica inevitavelmente a repartição dos riscos – inversamente proporcional à repartição de riqueza, acumulada pelo degradador –, sofrida por todos de forma indistinta, já que, ao contrário dos riscos empresariais do século XIX e da primeira metade do século XX, esses riscos já não se limitam a lugares e grupamentos específicos, mas contêm, de fato, uma tendência à globalização que envolve a produção e a reprodução, desconsiderando as fronteiras dos Estados nacionais. Surgem, assim, essas ameaças globais, no sentido de que são supranacionais, pois não recaem sobre uma classe específica por força de uma nova dinâmica social e política.

Qualquer avaliação acerca dos riscos de uma determinada atividade há de ser a mais objetiva possível – embora incorpore necessariamente juízos e avaliações subjetivos. O procedimento deve calcular em termos quantitativos e qualitativos os riscos que apresentam perigos inerentes a determinados processos ou situações. Mede-se a probabilidade de que o perigo ocasione algum dano real e a gravidade do dano em função das possíveis conseqüências para as pessoas e o meio ambiente (RIECHMANN, 2002, p. 166ss).

Algumas avaliações de risco em tempos recentes levaram a trágicos auto-enganos: os desastres nucleares e a insustentabilidade deste meio de produção de energia têm levado países desenvolvidos, sobretudo os europeus, a assinarem tratados que estabeleçam a desativação gradativa das usinas nucleares. Ao contrário deles, países como o Brasil, que não passaram pelas transformações efetivas próprias da revolução industrial e ainda anseiam pelas promessas da modernidade (STRECK, 2004b, p. 23ss), insistem em adotar mecanismos de desenvolvimento exógenos e implementá-los ao invés de buscar alternativas dignas de um processo autoconsciente das necessidades sócio-econômicas e, por tabela, jurídico-ambientais.

Tal qual se verifica, a lógica atual exige que se sobreponha a prudência – precaução – no lugar da clássica comercialização irrestrita de produtos só então refreada quando comprovada a sua periculosidade por meio de danos já consumados e irreversíveis. Autores já defendem, com base no chamado princípio da precaução – do qual se tratará no próximo capítulo –, que um risco só deve ser suportado se não houver alternativas e, no caso específico dos OGMs, antes da autorização da produção, reivindica-se, com razão, a necessidade indispensável de se demonstrar a inocuidade do empreendimento e a sua compatibilidade com a saúde pública e o meio ambiente (RIECHMANN, 2002, p. 171). Esta é a opção feita pelo Estado brasileiro na sua carta política, a despeito da legislação infraconstitucional que trata da matéria, notadamente a lei 11.105/05. Ela é um exemplo do baixo nível de constitucionalidade com que países periféricos estão habituados a lidar, isto é, as normas constitucionais são preteridas em relação àquelas infraconstitucionais na interpretação/aplicação, acarretando conseqüências práticas imediatas/mediatas por vezes desastrosas (STRECK, 2004a).

É determinante a tomada de escolha levada em conta pela opinião pública acerca do grau de proteção do bem difuso – e a ela cabe essa tarefa em essência –, uma vez que, tal como se viu, não só o risco é democratizado, bem como os danos dele decorrentes, inevitavelmente. Como todas as outras escolhas coletivas, as científicas devem obedecer às regras do Estado de Direito, pois sequer chegam a se constituir em uma esfera metajurídica ou metapolítica (HERMITTE, 2005, p. 20ss). Antes, quando nova problemática se apresenta, surge, com ela, a necessidade de compreender, abordar e criar uma estrutura de regulamentação – controle – à altura da gravidade da matéria. Isto, com vistas a garantir a previsibilidade das relações, a segurança, enfim, a possibilidade de solucionar os conflitos com um mínimo de perturbação social (FERRAZ JR., 2001, p. 50) e aqui, a incolumidade e a suportabilidade sócio-ambiental implicam a investida contra riscos potenciais e eventuais danos. Disto depende a inclusão eficiente da saúde e do meio ambiente no âmbito de proteção do programa jurídico-político estatal.

Sobre o autor
Afrânio Ferro de Novaes

Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOVAES, Afrânio Ferro. Responsabilização do Estado por danos decorrentes do consumo de organismos geneticamente modificados (OGMs). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1502, 12 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10262. Acesso em: 5 nov. 2024.

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