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A manifestação da extrafiscalidade sob o prisma do princípio da seletividade

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Agenda 20/03/2023 às 15:00

3. O PRINCÍPIO DA SELETIVIDADE

Princípio designa a estruturação de um sistema de ideias, pensamentos ou normas que representam uma “ideia mestre”, um “pensamento chave”, em que todas as demais, inclusive os pensamentos e as normas derivam, se reconduzem e/ou se subordinam. São normas jurídicas de alta carga valorativa, devendo na sua aplicação avaliar o peso e a importância de cada princípio, de modo que passariam por um processo de ponderação entre eles, de acordo com uma análise sistemática da Constituição.

Nesta esteira também ressalta Paulo de Barros Carvalho que “(...) os princípios aparecem como linhas diretivas que iluminam a compreensão de setores normativos, imprimindo-lhes caráter de unidade relativa e servindo de fator de agregação num dado feixe de normas”15.

Na Constituição de 1934 havia uma previsão que lembra o princípio da seletividade: "São isentos de imposto de consumo os artigos que a lei classificar como mínimo indispensável à habitação, vestuário, alimentação e tratamento médico das pessoas de restrita capacidade econômica" (§ 1º do art. 15).

O poder constituinte ao elaborar a atual Constituição foi mais técnico, e dispôs expressamente sobre o princípio da seletividade, podendo ser encontrado no art. 155, §2º, inciso III, que ao dispor sobre o ICMS explicitou: “poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços”; ainda, quanto à regulação do IPI a Carta Magna em seu artigo 153, §3º, inciso I, apontou: “será seletivo, em função da essencialidade do produto”. Estas previsões pelo constituinte são justamente por se tratarem de tributos que oneram bens ditos como essenciais, que incidem num momento da cadeia de tributação, que oneram indiretamente o empresário, visto que o valor será repassado para o usuário final, o chamado contribuinte de fato, assim, respeitando a capacidade contributiva deste.

Considerando que o princípio da seletividade será aplicado diretamente em face de um tributo, cabe verificar em qual critério da regra-matriz de incidência este afetaria, e fica óbvia a conclusão que a maneira de induzir comportamentos será através da modificação do valor a pagar, assim atingindo o critério quantitativo, de tal forma que a maneira de modificar o resultado de acordo com a essencialidade do produto, mercado ou serviço de forma mais prática será estabelecendo diferentes alíquotas, realizando-se, assim, o princípio da seletividade através da modificação da alíquota. Deste modo, a alíquota é que é seletiva, e não o tributo em si16.

Neste sentido, cabe destacar as considerações de José Roberto Vieira, ao afirmar que o princípio da seletividade se realiza “(...) pelo estabelecimento das alíquotas na razão inversa da necessidade dos produtos”17. Destarte, o modo de se concretizar o princípio da seletividade é através da alteração das alíquotas, na medida da essencialidade do produto, mercadoria ou serviço, de tal modo que quando mais supérfluo o bem, maior deve ser a alíquota, e quanto mais essencial, menor deve ser a alíquota.

Em outras palavras, as alíquotas serão fixadas de acordo com a necessidade do bem, fixando o legislador percentuais maiores para bens de menores necessidades, e estabelecendo alíquotas de patamares mais elevados se o bem for mais essencial.

Sendo, portanto, a essencialidade moldura para o princípio da seletividade.

Partindo desta premissa José Eduardo Soares de Melo ensina que o princípio da seletividade deverá “(...) suavizar a injustiça do imposto, determinando o impacto tributário que deve ser suportado pelas classes mais protegidas e onerando os bens consumidos em padrões sociais mais altos”18.

Nesse contexto, Henry Tilbery em seus estudos sobre a tributação classificou os produtos em:

a) bens de primeira necessidade, dos quais precisam todos, mas que são os únicos produtos ao alcance daqueles que se mantém no nível mínimo de subsistência;

b) bens não necessários, que são consumidos por um número bastante grande de pessoas, que vivem em diversos graus de escala econômica, porém todos acima do nível mais baixo;

c) artigos de luxo, disponíveis, principalmente, para as pessoas em nível mais elevado de bem estar19.

Classificação bem apresentada, pois seguindo os ditames constitucionais, apresenta a noção de essencialidade de cada produto, percebendo, assim, que ao aplicar o princípio da seletividade deveremos levar em conta o grau de essencialidade do bem.

Deste modo, com estas breves considerações, o que podemos inferir é que o princípio da seletividade contribui na concretização de justiça na aplicação do tributo, uma vez que contribuintes de uma determinada classe, que precisa de bens de primeira necessidade, terão menos carga tributária para arcar.

A respeito do tema, com o intuito de melhores esclarecimentos, precisamos trabalhar com a noção de essencialidade, visto que em ambas as previsões constitucionais do princípio da seletividade o constituinte teve o trabalho de se referir à essencialidade do produto, mercadoria ou serviço; ademais, o próprio princípio da seletividade leva a esta noção, estando, desta forma, inexoravelmente interligado à noção de essencialidade.

3.1 Considerações Sobre o Conceito de Essencialidade

A noção de essencialidade vem do latim essentialis, significando indispensável, fundamental, imprescindível ou essência.

No dicionário jurídico De Plácido e Silva: “Essencial, assim, mostra-se o que não é dispensável nem suprível, levando à morte, à extinção, ou a ineficácia, tudo o que sofrer de sua ausência”20.

Mas, quais serão os parâmetros que devemos adotar para aplicação da essencialidade?

Esta noção jurídica deve ser encontrada no texto constitucional, devendo assim refletir a integração dos direitos fundamentais do cidadão, garantias constitucionais básicas, necessárias a vida e a dignidade da pessoa humana, a erradicação da pobreza, da marginalização e a redução das desigualdades sociais, compreendendo as normas constitucionais como normas de caráter duplo, como regras e princípios de modo integrado. Em síntese, devem-se analisar direitos que não pode ser negados à coletividade.

Assim, devemos entender que a essencialidade é a determinação do princípio da seletividade, o qual deve estar adequado tanto no ponto de vista econômico, quanto no ponto de vista político de uma sociedade. Devendo ser resguardado menores alíquotas para os bens mais essenciais, e maiores alíquotas para os bens de consumo mais restritos e voluptuosos.

Sem dúvida podemos afirmar que a seletividade é um mecanismo para se proteger o mínimo vital, e consequentemente a dignidade da pessoa humana, sendo este o parâmetro que o estudo da noção de essencialidade nos fornece também.

Destarte, podemos vislumbrar o mínimo existencial como implícito ao direito da dignidade humana, como cláusula do Estado social de Direito, bem como implícito em inúmeras classificações relacionadas aos direitos fundamentais, exemplos são aqueles previstos no art. 7º, IV, da Constituição de 1988, como o salário mínimo dos trabalhadores, tanto urbanos, quanto rurais, aludindo seu valor a uma proporção que seja capaz de atender às necessidades vitais básicas destes trabalhadores, incluindo a moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social.

O mínimo existencial ou mínimo vital diz respeito ao indivíduo e a família, instituto que também é constitucionalmente protegido, referindo-se ao mínimo necessário para a existência dignidade do ser humano. Importante elemento que o Estado deve avaliar ao utilizar-se da extrafiscalidade com base no princípio da seletividade.

Com muita propriedade, Ricardo Lobo Torres destaca que “O mínimo existencial é direito subjetivo protegido negativamente contra a intervenção do Estado e, ao mesmo tempo, garantido positivamente pelas prestações estatais”21.

Nesse raciocínio, o festejado Roque Antonio Carrazza trata do assunto de forma mais objetiva, ao declarar que os recursos econômicos indispensáveis à satisfação das necessidades básicas das pessoas (mínimo vital) são garantidos pela Constituição, especialmente em seus arts. 6º e 7º (alimentação, vestuário, lazer, saúde, educação, transporte etc.)”22/23.

E Regiane Binhara Esturilio aponta outros dispositivos constitucionais que trazem a ideia da essencialidade e do mínimo existencial:

E há ainda outros artigos do texto constitucional indicando produtos, mercadorias e/ou serviços essências, como por exemplo, as referências aos serviços de telecomunicações, de radiodifusão sonora, de sons e imagens e de energia elétrica (artigo 21 e 22); ao meio ambiente – itens que auxiliem no combate à poluição, na preservação das florestas, da fauna e da flora (artigos 23, inciso VI, e 170, inciso VI); ao gás natural, o petróleo e seus derivados, os combustíveis e os minerais (artigos 155, § 3º e 177)24.

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Ainda, da análise do texto constitucional, apesar do conceito de essencialidade estar ligada diretamente aos bens de consumo, vemos uma clara proteção ao meio ambiente, é o que se vislumbra do art. 225, da CF: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Nessa perspectiva, vemos que nosso sistema constitucional não é neutro. O Estado tem o dever de garantir um meio ambiente ecologicamente equilibrado, devendo este sempre intervir em formas de ações positivas, as quais inexoravelmente refletem no direito tributário.

De tal forma, o meio-ambiente é tido como essencial à sociedade, devendo a tributação extrafiscal também se pautar neste tópico quando do estabelecimento de alíquotas em produtos, mercadorias ou serviços que beneficiem a proteção ambiental ou a prejudiquem, tornando mais custosas atividades que causem maiores danos ao meio ambiente, direcionando as atividades econômicas para um desenvolvimento mais sustentável.

Dadas estas explicações, de acordo com os parâmetros trabalhados da essencialidade os bens ecologicamente corretos deverão ser tributos com alíquotas menores, a fim de influenciar o seu uso no mercado, sendo aqueles nocivos ao meio ambientes, que resultem em degradação, serem tributados com alíquotas maiores, a fim de restringir a sua existência no mercado25.

Uma análise mais atenta do texto constitucional também permite concluir que o constituinte elegeu como parte da essencialidade frente às necessidades da população, o desenvolvimento tecnológico e científico, pois, claramente dispôs que o Estado promoverá e incentivará a tecnologia, a pesquisa e a capacitação tecnológica, conforme se pode conferir nos art. 218 e 219, da Constituição Federal26.

Como rol de atividades ou serviços essenciais, criadas pelo próprio legislador podemos citar ainda a lei nº 7.783/89, que dispõe sobre o direito de greve, listando, em seu art. 10, uma série de itens que seriam essenciais a população, como tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; assistência médica e hospitalar; distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos; funerários; transporte coletivo; captação e tratamento de esgoto e lixo; telecomunicações; guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares; processamento de dados ligados a serviços essenciais; controle de tráfego aéreo; compensação bancária.

Assim, na medida em que tais itens fossem afetados pelo ICMS ou IPI dever-se-ia avaliar a aplicação de alíquotas menores, possibilitando que fossem menos onerados, em função da sua essencialidade, ampliando o acesso à população.

Sobre esta sistemática, a noção do que se entende por essencial deve avaliada ainda por meio de censos demográficos e sociais do Brasil, visto que é sabido que existe uma grande disparidade entre a qualidade de vida da população norte e nordeste versus a população do sul e do sudeste.

Deve ainda haver por parte dos legisladores uma avaliação de tempos em tempos sobre a essencialidade, uma vez que este não é um conceito imutável, é variável de acordo com a sociedade e sua cultura, como ocorreu com relação ao meio-ambiente, o qual, no século passado, não era considerado essencial de acordo com os textos constitucionais.

Observemos que a delimitação do mínimo existencial deve ser a partir de uma análise de todos os direitos dispostos na Constituição para se conseguir a manutenção de uma vida digna.

Portanto, o princípio da seletividade, baseado na essencialidade do bem ou serviço, servirá justamente para avaliar a adequação e necessidade de determinada tributação extrafiscal, surgindo como parâmetro de atuação estatal, partindo de uma análise considerando o princípio da unidade constitucional (avaliando-se todas as normas estruturantes da Constituição, visando aplicá-la de modo integral, de forma simultânea e compatibilizada das normas ali e existentes27), sendo seletivo à medida que avalia as características objetivas da mercadoria, produto ou serviço, variando as alíquotas de acordo com o nível de necessidade e utilidade destes bens, avaliando se o fim a qual foi instituído atende a finalidade constitucional autorizada.


4. O PRINCÍPIO DA SELETIVIDADE NA EXTRAFISCALIDADE

A extrafiscalidade foi criada pelo legislador constituinte, o qual não determinou expressamente no texto constitucional os bens e mercadorias que poderiam ser objeto de sua aplicação, porém, previu na própria Constituição regras específicas para regular este instituto, como através dos princípios constitucionais tributários e das limitações constitucionais ao poder de tributar.

Nesta linha de raciocínio, podemos falar que um dos princípios que foi utilizado como base para a criação da extrafiscalidade figura no direito administrativo: o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, de tal forma que sempre que o interesse da população estiver envolvido, o interesse do particular deve ser colocado de lado, a fim de se preservar o primeiro, com o intuito de gerar maiores benefícios em prol da coletividade.

Nessa diapasão, há de se destacar também a ideia de bem comum, que pode ser extraída tanto da noção de essencialidade, da supremacia do interesse público, e que norteia então a extrafiscalidade aplicada ao princípio da seletividade. De tal forma, promover o bem comum é ter uma atuação voltada a finalidades sociais, que estão diversificados no texto constitucional.

Outras formas de se verificar a extrafiscalidade com origem no princípio da seletividade é quando há pesada tributação sobre os produtos importados que são considerados supérfluos e voluptuários, como acontece com os perfumes, as peles e as joias.

Assim, a extrafiscalidade é a realizada pelo princípio da seletividade à medida que age em fatos econômicos, tornando mais ou menos atrativas determinadas condutas que visa regular.

Ainda, podemos verificar a manifestação do princípio da extrafiscalidade através do princípio da seletividade em determinadas políticas econômicas, quando o Estado isenta ou diminui drasticamente o tributo de determinado produto considerado de extrema necessidade para uma determinada região do Brasil subdesenvolvida geograficamente, deixando o tributo com a carga normalmente aplicada em outras regiões ou polos mais desenvolvidos. Tal interferência é possível devido à aplicação do princípio da igualdade, visto sob o ponto de vista constitucional, vez que aqui deve se analisar seu viés material, isto é, tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais de acordo com sua desigualdade, bem como por meio do princípio constitucional tributário da uniformidade geográfica, previsto no art. 151, inciso I, da Constituição Federal28, mas também podendo ser extraído do art. 174, §1º, da CF29, que visa promover o equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico de cada região30, visando corrigir distorções históricas.

Do exposto, fica claro que o princípio da razoabilidade31 é um dos princípios que mais norteiam a aplicação do princípio da seletividade na extrafiscalidade, eis que este será parâmetro para a persecução da justiça social, frente às políticas de intervenção do Estado no domínio privado.

Analisando o início do texto constitucional, podemos dizer que a justificativa da criação da extrafiscalidade a partir da ideia de seletividade pelo poder constituinte pode se vislumbrar já nos primeiros artigos, no art. 1º, inciso II, da CF, um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil é a dignidade da pessoa humana e no art. 3º, do inciso I a IV, da CF, uma vez que se escala como objetivos fundamentais: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

É importante destacar ainda neste tópico, a questão do controle judicial na seletividade da extrafiscalidade. Neste plano, somos adeptos a posição em que considera possível uma análise jurisdicional quando da instituição ou majoração de tributo com base nestes institutos, eis que são institutos que servem de reguladores aos legisladores no momento da elaboração das leis, como um comando constitucional. Assim, como comando constitucional que é, comporta controle por parte do judiciário, a fim de verificar se o instituto foi utilizado dentro dos padrões constitucionalmente estabelecidos, como bem esclarece Regiane Binhara Esturilio:

Não somente não há impedimento como há dever do Poder Judiciário analisar essas questões e se pronunciar, pois é pela intervenção do Estado, do qual o Judiciário é integrante, que se busca a preservação de ditames constitucionais, no momento e no local considerado.32

Neste sentido, há diversos julgados33/34.

O entendimento não deve ser diferente, tendo em vista que o artigo 5º, inciso XXXV, da CF, autoriza o judiciário a emitir controle sobre a essencialidade ou não de determinado bem, ou ainda, se aplicação da extrafiscalidade está ocorrendo dentro das limitações constitucionais. Neste ponto, caberia uma análise aprofundada do pragmatismo jurídico, mas esse tema ficará para um próximo artigo.

Todavia, como ressaltado, o entendimento não é unânime: parte da doutrina e jurisprudência ainda defendem a impossibilidade de se haver o controle judicial das alíquotas que são afetadas pelo princípio da seletividade, defendendo que este princípio é uma diretriz política, cabendo ao legislador a sua definição, estando o judiciário, ao escolher alíquota mais adequada, legislando de forma positiva.

Por sua vez, como destacado, acredito que o controle jurisdicional é possível, pois este princípio como obrigação do Estado, destina-se tanto ao Poder Legislativo, Judiciário, ou Executivo, de tal forma, como freios e contrapesos dos poderes, o Judiciário, quando provocado, tem o dever de zelar por sua aplicação em eventual equívoco que os demais poderes tenham cometido na fixação de alíquotas.

Como bem assevera Roque Antônio Carrazza:

Sem embargos de doutas opiniões em sentido contrário, pensamos que o Poder Judiciário está apto a controlar este princípio constitucional. Embora haja uma certa margem de liberdade para o Legislativo tornar o imposto seletivo em função da “essencialidade das mercadorias e dos serviços”, tais expressões, embora um tanto quanto fluidas, possuem um conteúdo mínimo, que permite se afira se o princípio em tela foi, ou não, observado, em cada caso concreto. (...) o Poder Judiciário não está menos autorizado do que o Poder Legislativo a investigar o alcance das expressões ‘essencialidade das mercadorias e serviços’35.

O que o princípio da seletividade busca, como espelho da ideologia da Constituição Federal, junto com a extrafiscalidade é uma maior justiça na hora de se cobrar o tributo, além da finalidade de arrecadar tributo, uma função primordial de justiça social, a fim de construir uma sociedade mais igualitária, pois como vimos desde o início, o tributo deverá recair na proporção inverdade da sua necessidade/essencialidade. Uma forma mais eficaz de se vislumbrar também a aplicação da capacidade contributiva.

Vejamos o porquê.

4.1 Apontamentos Sobre a Capacidade Contributiva

A capacidade contributiva, como corolário do princípio da igualdade, refere-se à demonstração de riqueza do contribuinte, a aptidão de arcar com os gastos públicos, serve como limite ao efeito confiscatório, ou seja, sempre que a tributação ultrapassa a capacidade contributiva, ocorre o efeito de confisco. A capacidade de contributiva que deve ser sempre respeitada é a absoluta, enquanto a relativa, sempre que for possível auferir a pessoalidade do contribuinte.

Uma observação precisa ser feita, pois há, erroneamente, a ideia de que a extrafiscalidade constitui exceção à aplicação do princípio da capacidade contributiva. Concordamos que sua relação com a extrafiscalidade é delicada, e que envolve, muitas vezes, o limite da capacidade contributiva, tendo em vista que, a partir deste limite, já caracterizaria o efeito de confisco.

Dessa forma, não podemos deixar a extrafiscalidade “sufocar” por completo a aplicabilidade da capacidade contributiva.

A corroborar o exposto acima, insta transcrever o entendimento de Cassiano Menke:

Em relação à extrafiscalidade o Estado deve conciliar a necessidade de realização do valor buscado como finalidade da norma tributária com o valor por ela restringido quando da sua concretização – a propriedade, a liberdade, e a dignidade humana. É que ambos encontram constitucionalmente protegidos, e entre eles não se pode conceber uma relação de hierarquia em nível abstrato36.

Posição análoga assume Fabio Brun Goldschmidt, o qual declara que é essencial o respeito à capacidade contributiva, à medida que esta serve como controle de fiscalização na cobrança de tributos37.

Em contrapartida, Fernando Aurélio Zilveti acredita que a extrafiscalidade tem como limitadores a razoabilidade, a proporcionalidade, a igualdade, a justiça, o direito de propriedade e o princípio do não-confisco38. Contudo, expõe que “[...] a extrafiscalidade não guarda relação com o princípio da capacidade contributiva”39.

De maneira semelhante, Gustavo J. Naveira de Casanova entende que a capacidade contributiva, na sua vertente relativa, não está relacionada às finalidades extrafiscais, pois esta funciona como critério geral de justiça na distribuição das cargas tributárias, e, assim, não se baseando na capacidade contributiva (relativa), os outros fins constitucionais, que os poderes políticos pretendam alcançar, poderiam se realizar com maior independência, a única barreira seria a não confiscatoriedade40.

Todavia, com todo o respeito a esta posição, acredito que analisando o viés do princípio da seletividade sobre a extrafiscalidade justamente este princípio indica maior capacidade contributiva de quem compra bens tidos como supérfluos.

Neste sentido, Maurício Dalri Timm do Valle destaca: “Entretanto, é necessário firmar a premissa de que o Princípio da Seletividade é, preponderantemente, manifestação do Princípio da Capacidade Contributiva objetiva, que tem seu fundamento no Princípio da Isonomia”41.

Ainda, importantes são os ensinamentos do autor Ricardo Lobo Torres, ao sustentar que subordinar à aplicação do IPI a técnica da seletividade significa cumprir o princípio da capacidade contributiva, eis que o tributo deverá incidir progressivamente na razão inversa da essencialidade dos produtos42, de tal forma que o tributo deve recair “(...) sobre os bens na razão inversa de sua necessidade para o consumo popular e na razão direta de sua superfluidade”43, argumento que também se aplica ao ICMS, pois como veremos, o princípio da seletividade se aplica da mesma maneira a este.

À vista disso, como impostos indiretos, cabe ao princípio da seletividade diminuir as injustiças da aplicação das alíquotas nos tributos, a fim de respeitar o princípio da capacidade contributiva.

Da análise do princípio da seletividade foi necessária uma rápida abordagem sobre o princípio da capacidade contributiva, e como bem se observa do entendimento assumido, a capacidade contributiva deve ser respeitada quando da aplicação do princípio da seletividade, e de tal maneira, também se aplica à extrafiscalidade, contudo, deve ficar claro que a capacidade contributiva visualizada e aplicada aos tributos que assumam a feição extrafiscal é a chamada capacidade contributiva absoluta, aquela que tem como fonte fatos jurídicos signos presuntivos de riqueza, quando se leva em consideração manifestações objetiva da pessoa, e não pessoais, eis que a extrafiscalidade foge da ideia base de tributo de arrecadar, e não a capacidade contributiva relativa, em que se apura a real capacidade da pessoa, a capacidade econômica real do contribuinte, de forma individualizada e comparada com outros contribuintes no mesmo regime tributário.

Assim, por fim, toda a base principiológica da Constituição deve ser respeitada, de modo aplicá-la de maneira uniforme, e não seus dispositivos isoladamente, sendo a extrafiscalidade uma ferramenta de concretização da capacidade contributiva.

4.2 O Princípio da Seletividade no ICMS

O ICMS é um tributo sobre a circulação de mercadorias, prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, de competência dos Estados. Este imposto é repassado ao consumidor através do preço de mercadorias e serviços, por isso é denominado como imposto indireto.

Da leitura literal e isolada se extrai o entendimento que o constituinte facultou ao legislador utilizar do princípio da seletividade frente à instituição das alíquotas do ICMS, de acordo com a essencialidade de cada mercadoria e serviço, conforme dispõe o art. 155, §2º, III, do texto constitucional.

Digo faculdade, pois, diferentemente do que ocorre com o IPI, em que o texto constitucional dispõe que este tributo deve ser seletivo, lhe impondo um dever ao legislador não deixando a possibilidade de se furtar, para o ICMS o texto constitucional se utilizou da expressão “poderá ser seletivo” e não “será seletivo”, demonstrando que sua intenção é que o legislador poderia utilizar-se de base o princípio da seletividade para a imposição das alíquotas do ICMS de forma facultativa.

Assim, o legislador tem a faculdade de distribuir a alíquotas de mercadorias e serviços vinculados ao ICMS conforme sua essencialidade, avaliando se determinada mercadoria ou serviço é essencial, tributando de maneira mais elevada as categorias supérfluas.

Contudo, apesar desta suposta faculdade dada pelo poder constituinte, em uma análise sistemática da constituição, em preservação aos bens de primeira necessidade, ou tido como essenciais pela constituição, parece-me que o legislador ordinário muitas vezes terá o dever de observar o critério da seletividade (e acredito que justamente foi esta a ideia do constituinte, mostrar ao legislador que apesar da não obrigatoriedade, existirá casos em que sua utilização será necessária, avaliando de acordo com o contexto econômico e social da época), sob pena de afetar outros princípios e garantias constitucionais, como o mínimo existencial, igualdade, capacidade contributiva, eis que muitas vezes o legislador não terá a escolha em utilizar ou não, conforme itens dados como essenciais pelo texto constitucional, como saúde pública, incentivo a educação, ou desenvolvimento sustentável.

De tal forma, a função extrafiscal deverá se restringir estritamente a essencialidade da mercadoria ou bem, podendo sua alíquota ser reduzida, ou até isenta, de acordo os trâmites previstos na Constituição para isso, para bens de necessidades básicas, por exemplo.

Nesse sentido, merece destaque os ensinamentos de Hugo de Brito Machado:

(...) na verdade o ICMS poderá ser seletivo. Se o for, porém, essa seletividade deverá ocorrer de acordo com a essencialidade das mercadorias e serviços, e não de acordo com critérios outros, principalmente se inteiramente contrários ao preconizado pela Constituição. Em outros termos, a Constituição facultou aos Estados a criação de um imposto proporcional, que representaria ônus de percentual idêntico para todos os produtos e serviços por ele alcançados, ou a criação desse mesmo imposto com caráter seletivo, opção que, se adotada, deverá guiar-se obrigatoriamente pela essencialidade dos produtos e serviços tributados. A seletividade é facultativa. O critério da seletividade é obrigatório44.

Nos estudos de Roque Antonio Carrazza se demonstra como a seletividade pode ser aplicada ao ICMS, por meio da criação de alíquotas diferenciadas, incentivos fiscais, sendo, o método mais eficaz para a aplicação do princípio da seletividade45.

Contudo, na doutrina a discussão é calorosa quando a obrigatoriedade ou facultatividade da aplicação do princípio da seletividade no ICMS, tendo em vista que alguns doutrinadores entendem que não haveria margem de discrição, integrando a seletividade obrigatoriamente o processo legislativo, um exemplo é Aroldo Gomes de Mattos, que afirma que a aplicação do princípio constitucional da seletividade, em virtude de sua relação com o princípio da capacidade contributiva, deveria ser obrigatória46.

No entanto, com o devido respeito aos ensinamentos exposto por este autor, acredito que devido à função fiscal e arrecadatória que este imposto tem, a intenção do legislador foi justamente facultar a aplicação da seletividade, a fim de se levar em conta a essencialidade do bem apenas quando esta se mostrar necessária com uma análise sistemática da constitucional, por isso utilizou-se do termo “poderá” e não “será” como ocorreu no IPI (art. 153, §3º, I, da CF).

Kiyoshi Harada alude neste sentido:

(...) descabe a confusão conceitual da palavra “poder”, não distinguindo enquanto verbo e enquanto substantivo. Não procede a alegação de que quando a Constituição Federal confere um poder está a conferir, ipso facto, um dever (...). No caso do dispositivo constitucional sob comento a palavra “poderá” está empregada como futuro do verbo “poder”. Nada tem a ver com a noção de “poder” expressa por um substantivo47.

Pois, conforme destacado, esta faculdade dada ao legislador, esta margem mais ampla de decisão, se origina do próprio fato de que o ICMS é um tributo predominantemente fiscal, marcadamente arrecadatório, uma das principais fontes de receita tributária pelo Estado, por isso do “poderá ser seletivo”.

Contudo, de forma complementar, observamos que o critério da essencialidade, que poderá ser aplicado semeou a possibilidade deste ter sua incidência extrafiscal, a fim de se ajustar a política fiscal e política do Estado, demonstrando que o ICMS hoje se apresenta como um grande instrumento de intervenção na economia.

4.3 O Princípio da Seletividade no IPI

Antes da Constituição Federal de 1988 o IPI era conhecido como Imposto de Consumo, contudo, apesar da mudança da denominação a seletividade já era aplicada a este, diferente do ICMS, que a aplicação da seletividade ocorreu expressamente apenas com a nossa nova ordem constitucional.

Ainda, diferentemente também, a seletividade para a alíquota do IPI é literalmente obrigatória, uma norma cogente, uma vez que o texto constitucional determina expressamente que o IPI deverá ser seletivo em razão da função da essencialidade dos produtos, conforme art. 153, §3º, I, da CF. Sendo a seletividade em razão do grau da essencialidade como único critério norteador da incidência do IPI.

Outra evidência contida no texto constitucional que alude a extrafiscalidade no IPI, além do princípio da seletividade, é a não incidência do princípio da anterioridade em relação à regra anual. Ademais, nesta esteira, inclusive, faculta-se ao Poder executivo alterar as alíquotas deste imposto, majorando-as, sem a necessidade de lei.

Neste sentido, Leandro Paulsen também concorda, lecionando que a observância da seletividade no IPI foi expressa pela Constituição de 1988, tratando-se de uma imposição, e não de uma faculdade48.

O momento, como trabalhado, para aplicação do princípio em questão às alíquotas do IPI, deve ser feita a priori pelo legislador, momento político, que deve comparar os bens envolvidos e aplicar alíquotas de acordo com sua essencialidade, de acordo com a sistemática constitucional, devendo, desta maneira, quando menos supérfluo se tratar o bem, menor deverá ser a sua tributação e, a contrario sensu, quanto mais supérfluo for, mais deverá ser a alíquota incidente.

Assim, em razão da aplicação do princípio da seletividade ao IPI temos a aplicação do instituto da extrafiscalidade, eis que a extrafiscalidade como mecanismo de intervenção na economia, intervém no âmbito social a fim de influenciar o contribuinte a realizarem determinados comportamento ao invés de outros.

Essa é a opinião de José Eduardo Tellini Toledo, pois afirma que a Constituição de 1988 conferiu um inegável caráter extrafiscal ao IPI, na medida em que determinou este ser seletivo em função da essencialidade do produto49.

Um exemplo clássico, e já citado neste trabalho, é o claro uso da extrafiscalidade no IPI incidente sobre a venda de cigarros e bebida alcoólica, que pode, dentro dos parâmetros legais, chegar a uma alíquota de 300% sobre o valor da base de cálculo, o que, a priori, leva a percepção de que seria uma alíquota inconstitucional, afetando o princípio da proporcionalidade, do efeito de confisco etc.

Contudo, o suporte legal constitucional para uma alíquota desta quantidade está justamente amparado no princípio da seletividade, eis que há um objetivo absolutamente legítimo para a imposição de tamanha alíquota pelo Estado, uma vez que o álcool e o cigarro são causas das mais diversas doenças da sociedade, trazendo inúmeros malefícios à população. Além disso, sob o ponto de vista financeiro, os gastos que o Estado tem por questão de saúde pública50 a fim de se evitar as consequências ocasionadas pelo consumo de tais produtos são imensuráveis, que vão desde tratamento individual até a manutenção de hospitais públicos, ainda, podemos destacar os gastos com assistência social e a família do dependente químico, ou também eventuais gastos que o estado terá com esta mesma família caso ocorra um falecimento precoce de um cidadão que tinha dependentes51.

Na prática podemos visualizar outros casos de aplicação da seletividade no IPI, em gêneros alimentícios básicos este imposto não é aplicado em diversos produtos, como ovos, feijão, arroz, batata, milho, frutas, café, massas, óleos, sal, pão, trigo, leite, aveia, ervilha, lentilha, entre outros.

À vista disso, percebemos que a definição de alíquotas no IPI, apesar de ser obrigatória a observância do princípio da seletividade, ainda não é totalmente respeitada, pois produtos de higiene básica como o xampu e desodorante são tributados, ao mesmo tempo em que produtos não essenciais, como lagosta, caviar e avelã, têm alíquotas menores ou reduzidas a zero. Os quais, em geral, apenas são consumidos por uma classe selecionada, e que não adentram dentro da noção de essencialidade.

Desta feita, em síntese, para definir o grau de essencialidade para fins de definição da alíquota do IPI o legislador deverá comparar as alíquotas dos produtos do rol de tributação dos produtos industrializados, levando em conta a necessidade da alíquota obedecer ao critério da seletividade para os produtos de primeira necessidade e consumo mais popular ou conveniente à população, estabelecendo alíquotas de modo inversamente proporcional à sua indispensabilidade.

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARTMANN, Karen Emanuely Zazula. A manifestação da extrafiscalidade sob o prisma do princípio da seletividade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7201, 20 mar. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/102950. Acesso em: 22 dez. 2024.

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