6. A questão do direito intertemporal: inaplicabilidade da norma às sentenças transitadas em julgado em data anterior à da sua vigência
O parágrafo único do art. 741 do CPC foi introduzido pela Medida Provisória 2.180-35, de 24.08.2001. Sendo norma de natureza processual tem aplicação imediata, alcançando os processos em curso. Todavia, não pode ser aplicada retroativamente. Como todas as normas infraconstitucionais, também ela está sujeita à cláusula do art. 5°, XXXVI, da Constituição, segundo a qual "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". Em observância a essa garantia, não há como supor legítima a invocação da eficácia rescisória dos embargos à execução relativamente às sentenças cujo trânsito em julgado tenha ocorrido em data anterior à da sua vigência. É que nesses casos há, em favor do beneficiado pela sentença, o direito adquirido de preservar a coisa julgada com a higidez própria do regime processual da época cm que foi formada, e que não previa a sua rescisão por via de embargos [22].
7. Aplicação subsidiária às ações executivas lato sensu
Os embargos constituem instrumento processual típico de oposição a ação de execução. É o que estabelece o art. 736 do CPC: "O devedor poder´´ opor-se à execução por meio de embargos, que serão autuados em apenso aos autos do processo principal". Portanto, não cabem embargos se não houver ação autônoma de execução, na forma disciplinada no Livro II do Código de Processo.
Ocorre que, no atual regime processual, em se tratando de obrigações de prestação pessoal (fazer ou não fazer) ou de entrega de coisa, as sentenças correspondentes são, segundo a linguagem da doutrina, ´´executivas lato sensu´´, a significar que o seu cumprimento se operacionaliza como simples fase, do próprio processo cognitivo original. Dispõe, com efeito, o art. 644 do CPC, na redação dada pela Lei 10.444/02, que "a sentença relativa a obrigação de fazer ou não fazer cumpre-se de acordo com o art. 461, observando-se; subsidiariamente, o disposto neste Capítulo". E o art. 461, por sua vez, estabelece que "na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento", providências essas que serão cumpridas desde logo, independentemente da propositura de ação de execução. Para tanto, pode o juiz "impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito" (§4°) e, ainda, "(...) determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial" (§5°). Esse mesmo regime é aplicável às obrigações de entregar coisa, a teor do que prevê o art. 461-A do Código.
Todavia, isso não significa que o sistema processual esteja negando ao executado o direito de se defender, nesses casos. Com efeito, não se pode descartar que, na prática de atividades executivas de sentença relativas a obrigações de fazer, não fazer ou entregar coisa, haja excessos ou impropriedades ou outras das hipóteses elencadas no art. 741 do CPC. Se não se assegurasse ao demandado o direito de se opor a tais medidas, estar-se-ia operando ofensa ao princípio constitucional da ampla defesa (CF, art. 5º, LV). Ao contrário de negar o direito de se defender, o atual sistema o facilita. É que, inexistindo ação autônoma de execução, a defesa do devedor pode ser promovida e operacionalizada como mero incidente do processo, dispensada a propositura da ação de embargos. Bastará, para tanto, simples petição, no âmbito da própria relação processual em que for determinada a inedida executiva. Terá o devedor, ademais, a faculdade de utilizar as vias recursais ordinárias, notadamente a do agravo, quando for o caso.
Quanto à matéria suscetível de invocação, seus limites são os mesmos estabelecidos para os embargos à execução fundada em título judicial, de que trata o já referido art. 741 do CPC, aí incluída a hipótese de inexigibilidade do título, prevista no parágrafo único. É inevitável e imperioso, no particular, que, nos termos do art. 644 do CPC, haja aplicação subsidiária desse dispositivo às ações executivas lato sensu [23].
8. Suma conclusiva
Em suma, a eficácia rescisória dos embargos à execução, prevista no parágrafo único do art. 741 do CPC, está submetida aos seguintes pressupostos: (a) que a sentença exeqüenda esteja fundada em norma inconstitucional, seja por aplicar norma inconstitucional (1ª parte do dispositivo), seja por aplicar norma em situação ou com um sentido tidos por inconstitucionais (2ª parte do dispositivo); e (b) que a inconstitucionalidade tenha sido reconhecida em precedente do STF, em controle concentrado ou difuso, independentemente de resolução do Senado, mediante declaração de inconstitucionalidade com redução de texto (1ª parte do dispositivo), mediante declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto ou, ainda, mediante interpretação conforme a Constituição (2ª parte). Estão fora do âmbito material dos referidos embargos, portanto, todas as demais hipóteses de sentenças inconstitucionais, ainda que tenham decidido em sentido diverso da orientação do STF, como, v.g, quando o título executivo:
a) deixou de aplicar norma declarada constitucional (ainda que em controle concentrado);
b) aplicou preceito constitucional que o STF considerou sem auto-aplicabilidade;
c) deixou de aplicar preceito constitucional que o STF considerou auto-aplicável;
d) aplicou preceito normativo que o STF considerou revogado ou não recepcionado, deixando de aplicar ao caso a norma revogadora.
Também estão fora do alcance do parágrafo único do art. 741 do CPC as sentenças, ainda que eivadas da inconstitucionalidade nele referida cujo trânsito em julgado tenha ocorrido em data anterior à da sua vigência. O dispositivo, todavia, pode ser invocado para inibir o cumprimento de sentenças executivas lato sensu, às quais tem aplicação subsidiária por força do art. 744 do CPC.
Notas
1 Nesse sentido: NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 8. ed. São Paulo: R. dos Tribunais, 2004. p. 1156; DALLAZEM, Dalton Luiz. Execução de título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo STF. Revista Dialética de Direito Processual - RDDP, n. 14, p.21, maio 2004.
2 THEODORO JÚNIOR, Humberto. A reforma do processo de execução e o problema da coisa julgada inconstitucional. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 89, p. 94-95, jan./jun. 2004.
3 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Considerações sobre a chamada ´´relativização´´ da coisa julgada material. Revista Dialética de Direito Processual - RDDP, n. 22, p. 108-109, jan. 2005.
4 Nesse sentido, v.g. ASSIS, Araken de. Eficácia da coisa julgada inconstitucional. Revista Dialética de Direito Processual - RDDP. n. 4, p. 9-27. jul. 2003.
5 Nesse sentido, v.g. TALAMINI, Eduardo. Embargos à execução de título judicial eivado de inconstitucionalidade (CPC, art. 741, parágrafo único). Revista do Processo, n. 106, p. 38-83.
6 V.g.: DELGADO, José Augusto. Efeitos da coisa julgada e princípios constitucionais. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do (Coord.). Coisa julgada inconstitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002; THEODORO JÚNIOR, Humberto; FARIA, Juliana Cordeiro de. A coisa julgada inconstitucional e os instrumentos processuais para seu controle. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do (Coord.). Coisa julgada inconstitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. p. 83; DINAMARCO, Cândido. A nova era do processo civil. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 220-266; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada: hipóteses de relativização. São Paulo: R. dos Tribunais, 2003.
7 V.g.: SILVA, Ovídio Batista da. A coisa julgada relativa? RDDP, n. 13, p. 102-112; BARBOSA MOREIRA, José Carlos Barbosa. Considerações sobre a chamada ´´relativização´´ da coisa julgada material. Revista Dialética de Direito Processual - RDDP, n. 22, p. 91-111, jan. 2005; MARINONI, Luiz Guilherme. O princípio da segurança dos atos jurisdicionais (a questão da relativização da coisa julgada material). Gênesis — Revista de Direito Processual Civil, n. 31, p. 142-162.
8 BITTENCOURT, Lúcio. O controle de constitucionalidade das leis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1968. p. 128.
9 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 317.
10 10 STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica ao direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 580.
11 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina. 1998. p. 1099.
12 Sobre o tema, que não é pacífico na doutrina, ver: AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Incidente de Argüição de inconstitucionalidade. São Paulo: R. dos Tribunais, 2002. p. 101-103.
13 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 78.
14 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p 80.
15 TALAMINI, Eduardo. Embargos à execução de título judicial eivado de inconstitucionalidade (CPC, art. 741, parágrafo único). Revista do Processo, n. 106, p. 57.
16 V.g.: TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: R. dos Tribunais, 2004. p. 282.
17 BRASIL Supremo Tribunal Federal. Resp 479909 – 1ª Turma. Relator: Min. Teori Albino Zavascki. DJ, 23 ago. 2004, ementa completa é a seguinte: "PROCESSUAL CIVIL RECURSO ESPECIAL. AÇÃO RESCISÓRIA (CPC, ART. 485, V). MATÉRIA CONSTITUCIONAL INAPUCABILIDADE DA SÚMULA 343/STF. EXISTÊNCIA DE PRONUNCIAMENTO DO STF, EM CONTROLE DIFUSO, EM SENTIDO CONTRÁRIO AO DA SENTENÇA RESCINDENDA. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO DE RESCISÃO. 1. Na interpretação do art. 485, V, do Código de Processo Civil, que prevê a rescisão de sentença que ´´violar literal disposição de lei´´, a jurisprudência do STJ e do STF sempre foi no sentido de que não é toda e qualquer violação à lei que pode comprometer a coisa julgada, dando ensejo à ação rescisória, mas apenas aquela especialmente qualificada. 2. Na esteira desse entendimento, editou-se a Súmula 343/STF, segundo a qual "Não cabe ação rescisória por ofensa a literal dispositivo de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais". 3. Ocorre, porém, que a Lei constitucional não é uma lei qualquer, mas a lei fundamental do sistema, na qual todas as demais assentam suas bases de validade e de legitimidade, e cuja guarda é a missão primeira do órgão máximo do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102}. 4. Por essa razão, a jurisprudência do STF emprega tratamento diferenciado à violação da lei comum em relação à da norma constitucional, deixando de aplicar, relativamente a esta, o enunciado de sua Súmula 343, à consideração de que, em matéria constitucional, não há que se cogitar de interpretação apenas razoável, mas sim de interpretação juridicamente correta. 5. Essa, portanto, a orientação a ser seguida nos casos de ação rescisória fundada no art. 485, V, do CPC: em se tratando de norma infraconstitucional, não se considera existente ´´violação a literal disposição de lei´´, e, portanto, não se admite ação rescisória, quando "a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais" (Súmula 343). Todavia, esse enunciado não se aplica quando se trata de "texto" constitucional. 6. A orientação revela duas preocupações fundamentais da Corte Suprema: a primeira, a de preservar, em qualquer circunstância, a supremacia da Constituição e a sua aplicação uniforme a todos os destinatários; a segunda, a de preservar a sua autoridade de guardião da Constituição. Esses os valores dos quais deve se lançar mão para solucionar os problemas atinentes à rescisão de julgados em matéria constitucional. 7. Assim sendo, concorre decisivamente para um tratamento diferenciado do que seja ´´literal violação´´ a existência de precedente do STF, guardião da Constituição. Ele é que justifica, nas ações rescisórias, a substituição do parâmetro negativo da Súmula 343 por um parâmetro positivo, segundo o qual há violação à Constituição na sentença que, em matéria constitucional é contrária a pronunciamento do STF. 8. Recurso especial provido".
18 ZAVASCKI, Teori Albino Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo R. dos Tribunais, 2001. p. 25.
19 BITTENCOURT, Lúcio. O controle de constitucionalidade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro - Forense, 1968. p. 143; CASTRO NUNES, José. Teoria e prática do Poder Judiciário. Rio de Janeiro, Forense, 1943 p. 592.
20 SOTELO, José Luiz Vasquez. A jurisprudência vinculante na cornmon law e na civil law. In: Temas atuais de direito processual ibero-americano. Rio de Janeiro: Forense, 1998 p 374.
21 MENDES, Gilmar Ferreira O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional. Revista de Informação legislativa, n. 162, p. 165
22 É nesse sentido a jurisprudência do STJ, como se pode ver, v.g., dos seguintes precedentes: Resp 667 362/SC - 1a T. Relator: Min. José Delgado, julgamento em 15 fev. 2005; Resp 651.429/RS - 5a T. Relator: Min. José Arnaldo da Fonseca. OJ, 18 out. 2004; Resp 718432 - 1a T. Relator: Min. Teon Albino Zavascki. DJ, 02 maio 2005, com a seguinte ementa: "PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS EXECUÇÃO FGTS. CORREÇÃO MONETÁRIA. DIFERENÇAS. ART. 741, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPC, COM REDAÇÃO DADA PELA MEDIDA PROVISÓRIA 2 180-35/01. AÇÕES AJUIZADAS ANTES 24 08.2001. INAPLICABILIDADE. 1. 0 parágrafo único do art. 741 do CPC, introduzido pela Medida Provisória nº 2 180-35/2001, criou hipótese excepcional de limitação da coisa julgada, passível de invocação em embargos do devedor, com eficácia rescisória da sentença de mérito, a exemplo do que já existia no inciso l do art. 741 do CPC; 2. Independentemente do questionamento sobre a constitucionalidade e o alcance da nova disposição normativa, o certo é que, como todas as leis, ela não pode ter efeito retroativo. Também as normas processuais, inobstante terem aplicação imediata, alcançando os processos em curso, devem respeito a cláusula constitucional que resguarda o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, formados em data anterior por isso mesmo, a orientação do STJ vem se firmando no sentido de considerar inaplicável o parágrafo único do art. 741 ás sentenças transitadas em julgado em data anterior á sua vigência (24.8 2001). 3. Recurso especial a que se nega provimento".
23 Nesse sentido decidiu o STJ, no Resp 738.424 - 1ª T. Brasília, 19 maio 2005. Relator: Min. Teori Albino Zavascki.