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O critério da prevenção como afronta à imparcialidade do juiz criminal

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Agenda 21/08/2007 às 00:00

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. A COMPETÊNCIA E SEUS CRITÉRIOS DETERMINADORES 1.1. Jurisdição 1.2. Competência – conceito 1.3. Alguns critérios legais de determinação da competência penal 2. A PREVENÇÃO COMO CRITÉRIO RESIDUAL DE DETERMINAÇÃO DA COMPETÊNCIA. 2.1. Conceito 2.2. Prática de algum ato do processo ou de medida a este relativa 3. A PREVENÇÃO COMO AFRONTA AO PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE. 3.1. O Princípio da imparcialidade na nova ótica constitucional 3.2. O ponto fulcral da discussão – a prevenção como afronta ao princípio da imparcialidade. CONCLUSÃO. BIBLIOGRAFIA. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

"Três coisas devem ser feitas por um juiz: ouvir atentamente, considerar sobriamente e decidir imparcialmente" (Sócrates).


INTRODUÇÃO.

Cuidaremos, aqui, de tema delicado, e que muitas vezes passa despercebido pela doutrina e jurisprudência pátrias, qual seja, a questão referente à imparcialidade do Juiz criminal face à legislação vigente, mais especificamente no que tange os atuais critérios de prevenção, como norma residual de determinação da competência.

Atentos para os novos paradigmas do Direito Penal, cuja inauguração em nosso ordenamento em muito se deve à Constituição Federal de 1988, pensamos haver extrema necessidade de uma revisitação do principio do Juiz Natural, de modo que represente instrumento de garantia, como em verdade deve ser, do que mecanismo de violação de imparcialidade.

Como cediço, embora se defenda que o nosso atual sistema é o acusatório, ainda não escapamos do "ranço" inquisidor que ainda permeia, em muito, nosso diploma processual penal.

A prevenção, como muitos pensavam erroneamente ser medida salutar na determinação da competência, na verdade vincula a capacidade do Juiz de decidir definitivamente o conflito a uma decisão anterior sua, tomada no exercício de cognição perfunctória, de tal modo que não pode mais ser tido como imparcial.

No mais, o relevante é não se olvidar da necessidade premente de se aplicar o Direito Processual Penal sempre sob uma ótica garantista, buscando afinar a ciência com os ditames da nova ordem constitucional.


1. A COMPETÊNCIA E SEUS CRITÉRIOS DETERMINADORES.

1.1. Jurisdição.

Jurisdição, no dizer clássico, tantas vezes já repetido, é o poder-dever do Estado de determinar o direito aplicável ao caso concreto.

No momento que o Estado, que numa visão contratualista é mandatário de todos nós, proíbe a autotutela e a vingança privada, chama para si a responsabilidade de sub-rogar-se aos litigantes, tomando-lhes a frente e pondo fim ao litígio.

Neste jaez, como necessidade deste mister, a jurisdição deve ser indeclinável (o Juiz não pode se abster de julgar, ou seja, não pode alegar o non liquet), indivisível, indelegável e improrrogável (como corolário do principio da inafastabilidade da jurisdição).

Discorrendo sobre o tema, colacionamos o pensamento do saudoso Mirabete:

A jurisdição é o poder das autoridades judiciárias regularmente investidas no cargo de dizer o direito no caso concreto, ou seja, de pronunciar concretamente a aplicação do direito objetivo. Os juizes, pelo simples fato de serem juizes, têm jurisdição, o poder de julgar, de dizer o direito. A doutrina e legislação estabelecem divisões e formas da jurisdição, conforme o aspecto que esta é examinada; por sua graduação ou categoria, pela matéria, pelo organismo, etc. Quanto à matéria, dependendo da natureza da causa a ser julgada, a jurisdição pode ser penal, civil, eleitoral e militar. [01]

1.2. Competência - conceito.

Competência é a medida da jurisdição. Cada entidade representativa do Estado-Juiz tem uma chamada parcela própria da jurisdição, atribuída-lhe fundamentalmente pela Constituição Federal. Esta parcela seria a competência.

Divide-se, doutrinariamente, a competência em absoluta, que é aquela fixada por norma de interesse público, onde não se admite prorrogação por interesse das partes, e competência relativa onde, a contrario sensu, admite-se prorrogação pela vontade ou inércia das partes.

Não se imagine, porém, que uma vez fixado um juízo com competência absoluta, não se admite mais alteração alguma. Em verdade, o próprio Código de Processo Civil, em seu art.87, declara que a competência absoluta pode ser alterada em virtude de eventual supressão do órgão judiciário ou alteração das normas fixadoras de competência absoluta.

1.3. Alguns critérios legais de determinação da competência penal.

Eis a redação do art. 69, do Código de Processo Penal:

Art. 69. Determinará a competência jurisdicional:

I – o lugar da infração;

II – o domicílio ou residência do réu;

III – a natureza da infração;

IV – a distribuição;

V – a conexão ou continência;

VI – a prevenção;

VII – a prerrogativa de função.

Elege, portanto, a lei, sete critérios determinadores para se definir qual será o juízo competente, vale dizer, o juízo natural para julgamento da causa.

A competência é, inicialmente, fixada pelo lugar da infração. Adotando tal critério o Código de Processo Penal rompe com a teoria da ubiqüidade (ou teoria mista), adotada pelo Código Penal, para dar preferência à teoria do resultado (lugar em que se consumar a infração [02]).

Não havendo, contudo, possibilidade de se determinar o lugar da infração, aplica-se o inciso II, do art.69, do CPP, firmando-se a competência pelo domicílio ou residência do réu. Também pode se adotar o referido critério na hipótese de dúvida acerca da localização geográfica do local do fato. Neste sentido, julgando caso concreto. é a seguinte ementa, do Colendo STJ:

Fato ocorrido em lugar sobre o qual não há definição geográfica. Quando não se sabe a que Estado pertence o lugar do fato, como no caso desses autos, determina-se a competência pelo domicílio ou residência do réu. [03]

A competência pela natureza da infração, de acordo com o art. 74 do Código de Processo Penal, é determinado pelas leis de organização judiciária, salvo, evidentemente, a competência privativa do júri, que tem base constitucional.

A distribuição é "sorteio" realizado quando houver juizes igualmente competentes na mesma circunscrição judiciária, consoante art. 75, do CPP. Sobre o assunto, assim se manifesta nossa jurisprudência:

Processual Penal. Distribuição. A distribuição visa, por critério objetivo fixar o Juiz competente. Não pode ser relegado: busca evitar influência subjetiva. [04]

A competência por prerrogativa de função, disposta nos arts. 84 e ss. do diploma processual, perdeu um pouco da razão de estar no Código de Processo Penal, vez que a Constituição Federal de 1988 delimita as hipóteses de julgamento originário pelos tribunais das autoridades detentoras de altos cargos na administração.

Por último, com função nitidamente residual, colaciona-se a competência pela prevenção.


2. A PREVENÇÃO COMO CRITÉRIO RESIDUAL DE DETERMINAÇÃO DA COMPETÊNCIA.

2.1. Conceito.

O critério da prevenção proporcionará a fixação da competência nas mãos do Juiz que, temporalmente, primeiro proferiu qualquer decisão acerca do processo instaurado ou em vias de se instaurar.

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Na lição de Guilherme de Souza Nucci:

Não sendo possível utilizar os vários critérios para estabelecer a competência do Juiz, porque há mais de um que, pela situação gerada, poderia conhecer do caso, deve-se aplicar o critério da prevenção, que significa conhecer em primeiro lugar de uma questão jurisdicional, proferindo qualquer decisão a respeito. [05]

O art. 83, do CPP, estatui que a competência por prevenção dar-se-á

(...) toda vez que, concorrendo dois ou mais juízes igualmente competentes ou com jurisdição cumulativa, um deles tiver antecedido aos outros na prática de algum ato do processo ou de medida a este relativa, ainda que anterior ao oferecimento da denúncia ou da queixa.

Ressalte-se que jurisdição cumulativa não se confunde com juízes igualmente competentes.

Como cediço, na lei não pode existir palavras inúteis (embora muitas vezes pareça existir), devendo, destarte, o intérprete dar a interpretação ao texto legal que sobreleve mais significado aos termos empregados.

Deste modo, Tourinho Filho [06] diferencia os juizes igualmente competentes (que seriam aqueles que têm a mesma competência, na mesma comarca) e os juizes com jurisdição cumulativa (que ocorreria quando ambos são competentes para julgar o caso, mas se encontram em comarcas distintas).

2.2. Prática de algum ato do processo ou de medida a este relativa.

Além disso, o que seria passível de qualificação como "prática de algum ato do processo ou de medida a este relativa" ?

Por óbvio, devem ser os nítidos atos jurisdicionais, vale dizer, carregados de carga valorativa e praticados no exercício de jurisdição.

Outro não é o sentir de Mirabete, quando exemplifica "ato do processo":

São exemplos de atos que fixam a competência pela prevenção a decretação da prisão preventiva, a concessão de fiança, o reconhecimento de pessoas ou coisas, qualquer diligência que dependa de autorização judicial (violação de domicílio, do sigilo bancário, da comunicação telefônica, etc.), pedido de explicações em juízo nos crimes contra a honra previstos nos arts. 144 do CP e 25 da lei 5.250, de 9-2-97 (lei de imprensa), pedido de busca e apreensão nos crimes contra a propriedade imaterial etc. A prática destes atos, em que há uma carga decisória, tomando o Juiz conhecimento formal do fato, impede a posterior distribuição dos autos de inquérito a outro Juiz. [07]

Por outro lado, na visão de Eugenio Pacelli,

Não constituirão ato de prevenção, porém, a simples antecedência de distribuição de Inquérito Policial ou mesmo de ação penal ainda não despachada, pela simples razão de não conterem, ambos, nenhuma atuação jurisdicional, rigorosamente falando. [08]

Saliente-se, ainda que, na jurisprudência existem hipóteses de atos jurisdicionais que não ensejam a prevenção, é o caso das decisões em sede de habeas corpus e das decisões meramente administrativas ou correcionais.

Outro não é o entendimento dos tribunais pátrios:

A fixação da competência decorre de ato jurisdicional. Sendo o habeas corpus matéria especificamente constitucional, que tem por finalidade a liberdade dos indivíduos, não previne jurisdição. [09]

O fato de em sua sentença o Juiz, cumprindo o disposto no art. 40 do Código de Processo Penal, manda extrair peças do processo para a apuração de possíveis crimes não firma a sua competência para o processamento dos mesmos, por prevenção, devendo tais peças serem enviadas para distribuição regular. [10]

Quando o tráfico ilícito de entorpecentes se estende por mais de uma jurisdição, é competente, pelo princípio da prevenção,o Juiz que primeiro toma conhecimento da infração e pratica qualquer ato processual. No caso, o ato que fixou a competência do juiz foi a autorização para proceder a escuta telefônica das conversas do Paciente. [11]


3. A PREVENÇÃO COMO AFRONTA AO PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE.

3.1. O Princípio da imparcialidade na nova ótica constitucional.

Conforme célebre lição do filósofo grego Sócrates, "três coisas devem ser feitas por um juiz: ouvir atentamente, considerar sobriamente e decidir imparcialmente."

O princípio da imparcialidade, mais do que uma norma, é uma necessidade para o exercício da jurisdição. Se o Estado decidiu trazer para si o monopólio da jurisdição (v. item 1.1, supra), também trouxe as responsabilidades que este decisão acarretaria. Este é o entendimento que predomina na doutrina, por todos, colacionamos a lição de Antonio Carlos Marcato:

Realmente, se à parte é defeso valer-se de suas próprias forças para diretamente solucionar o conflito em que se vê envolvida 4, deve o Estado, detentor único do poder-dever de prestar a tutela necessária à resolução daquele, agir no processo, através de seus órgãos, com absoluta isenção de propósitos, assim retribuindo à confiança que lhe é depositada pelo destinatário final da atividade jurisdicional; e essa retribuição pressupõe necessariamente que o Estado exija, daqueles que exercem a jurisdição em seu nome, a condução imparcial do processo, até porque, como salienta Dinamarco, para "que se legitime a imperatividade dos atos e decisões estatais no exercício da jurisdição, o primeiro requisito é a condição imparcial do juiz, o qual deve ser estranho à pretensão, ao litígio e aos litigantes". [12] (grifo do próprio autor).

Um Juiz parcial gera, inclusive, insegurança jurídica, pois ninguém respeitaria as decisões de um magistrado "peitado", visto que foram tomadas por interesses outros que não os ideais constitucionais de justiça e ordem.

O Art. 8º, do Pacto de San José da Costa Rica, ao tratar das garantias judiciais do acusado, também releva preocupação com a imparcialidade do julgador, apresentando a seguinte redação:

1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. (grifo nosso)

Como decorrência do sistema acusatório, pensamos que o Juiz deve se colocar em posição exterior às partes, vale dizer, o litígio se desenvolverá de forma alheia ao magistrado e ele nunca pode se envolver naquele nível para interferir, pena de desequilibrar a balança e tornar-se suspeito. Em suma, deve ser um terzietá (terceiro estranho às partes).

Se se "misturar", para produzir provas que seja, deixou de lado sua inércia, pois algo o provocou que não o simples juízo decisório. Tornou-se imparcial, portanto.

Existem regras próprias, no ordenamento, que tornam desnecessária essa produção de provas pelo magistrado, vale dizer, o "principio do in dubio pro reo" e o "ônus da impugnação específica".

A imparcialidade, destarte, é princípio dos mais comezinhos na nossa sistemática processual penal. Sua violação impede o Juiz de praticar qualquer ato, seja administrativo ou jurisdicional.

Vejamos a opinião do Pretório Excelso:

Impedimentos e suspeição. Presunção juris et de jure de parcialidade. Sendo a própria imparcialidade que se presume atingida, não é possível ao juiz, enquanto tal, praticar ato de seu ofício, jurisdicional ou administrativo, sem essa nota que marca, essencialmente, o caráter do magistrado. Se se desprezarem esses impedimentos, o ato administrativo infringirá os princípios da impessoalidade e moralidade previstos no art. 37, da Constituição. [13]

Outra não é a visão de Paulo Rangel, analisando a questão sob a ótica do sistema acusatório:

A imparcialidade do Juiz tem perfeita e íntima correlação com o sistema acusatório adotado pela ordem constitucional vigente, pois, exatamente visando retirar o Juiz da persecução penal, mantendo-o imparcial, é que a Constituição Federal deu exclusividade da ação penal ao Ministério Público, separando, nitidamente, as funções dos sujeitos processuais. [14]

Segundo nosso Código de Processo Penal, o Juiz perde a imparcialidade quando se torna suspeito ou impedido (art 252 e 254, do CPP).

O rol das suspeições é exemplificativo, diferentemente do elenco dos impedimentos que é numerus clausus.

Entendemos que podemos ter por violado o principio da imparcialidade também por quaisquer outras razões, desde que possuam o condão de interferir no senso decisório do magistrado, como quando profere decisão de carga valorativa anteriormente no mesmo processo, gerando a prevenção (ponto a ser analisado a seguir).

3.2. O ponto fulcral da discussão – a prevenção como afronta ao princípio da imparcialidade.

Xavier de Aquino e Nalini assim se manifestaram acerca da condição humana do magistrado:

O Juiz, sem prejuízo, é um homem também; se é um homem é também ele uma parte. Isto de ser ao mesmo tempo parte e não parte, constituí a contradição na qual se debate o conceito de Juiz. Isto de ser o Juiz um homem e de dever ser mais que um homem, constitui seu drama. [15]

Do excerto acima se extrai todo o fundamento da questão aqui posta.

Se estivermos experimentando, realmente, um sistema acusatório, deve haver rígida separação entre a figura do acusador e do julgador.

Neste jaez, não podemos admitir a hipótese de fixação da competência pela prevenção quando o Juiz atuou, no processo, anteriormente, na posição de investigador, mormente diante do permissivo legal expresso na lei nº 9034/95 (crime organizado, ex vi art. 3º) dentre outros.

A imparcialidade é alvejada simplesmente porque, se o Juiz que atuou na investigação for o mesmo que irá julgar, teremos a figura do Juiz inquisidor no nosso ordenamento, o que é constitucionalmente inadmissível.

Mas não é só.

A prevenção também vai de encontro à imparcialidade porque, ao tecer juízos valorativos sobre o mérito do processo (ou do pré-processo), o magistrado, que não deixa de ser um ser humano, se vincula a sua decisão passada, aleijando sua capacidade de enxergar outra versão que não a escolhida por ele naquela fase pré-processual.

Este é o caso nítido dos pré-juízos penais [16].

O Juiz, por exemplo, ao analisar as provas da materialidade do delito e os "indícios de autoria" quando da análise de eventual pedido de prisão preventiva, faz um juízo de cognição sobre o processo, não obstante seja uma cognição mais superficial que na sentença.

Mas é esse "primeiro juízo" sobre o fato certamente irá orientar todas as outras decisões do magistrado durante o processo no que disser respeito à autoria e a materialidade.

É óbvio: o Juiz que conceder a prisão preventiva contra o réu, não poderá, depois, vir a absolvê-lo, por exemplo, por negativa de autoria ou ausência de materialidade, pois estaria indo contra sua própria decisão. Em suma, estaria admitindo um erro próprio.

O mesmo caso se dá com o julgador que decreta a medida cautelar de seqüestro.

Conforme art. 126, do Código Penal, para a decretação do seqüestro bastará a existência de indícios veementes da proveniência ilícita dos bens.

Se, porventura, o Juiz, no decorrer do processo, encarar prova irrebatível que contraria o entendimento anterior de que o bem tinha origem ilícita, como estará a sua capacidade de valoração?

A resposta é simples: sua capacidade de decidir imparcialmente estará seriamente afetada, pois não existe imparcialidade se uma das decisões afeta sumariamente os brios do magistrado.

Se optar por rever sua decisão, estará confessando que ponderou erroneamente no passado.

Partilha do mesmo pensar o Prof. Rômulo de Andrade Moreira, ao tratar do tema:

Entendemos que tais disposições não deveriam constar de um diploma processual de um Estado Democrático de Direito, pois a prevenção, longe de atrair a competência judicial, deveria excluí-la, visto que a prática deste ato judicial anterior ao processo criminal atinge inevitavelmente a imparcialidade do julgador. [17]

A situação que se apresenta, portanto, em nosso país, é retrógrada. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos de há muito já vem caracterizando nossas hipóteses de prevenção como geradoras de parcialidade do magistrado.

Outro não é o entendimento do Prof. Aury Lopes Jr, expresso no seguinte excerto, onde se faz referência ao Tribunal Espanhol:

Seguindo essas decisões do TEDH, aduziu o Tribunal Constitucional espanhol (STC 145/88), entre outros fundamentos, que o juiz instrutor não poderia julgar, pois violava a chamada imparcialidade objetiva, aquela que deriva não da relação do juiz com as partes, mas sim de sua relação com o objeto do processo. Ainda que a instrução preliminar suponha uma investigação objetiva sobre o fato (consignar e apreciar as circunstâncias tanto adversas como favoráveis ao sujeito passivo), o contato direto com o sujeito passivo e com os fatos e dados, pode provocar no ânimo do juiz instrutor uma série de pré-juízos e impressões a favor ou em contra do imputado, influenciando no momento de sentenciar. Destaca o Tribunal uma fundada preocupação com a aparência de imparcialidade que o julgador deve transmitir para os submetidos à administração da justiça, pois ainda que não se produza o pré-juízo, é difícil evitar a impressão de que o juiz (instrutor) não julga com pleno alheamento. Isso afeta negativamente na confiança que os Tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar nos justiçáveis, especialmente na esfera penal. Desta forma, atualmente, existe uma presunção absoluta de parcialidade do juiz instrutor, que lhe impede julgar o processo que tenha instruído. [18] (grifos do próprio autor).

Concluindo sobre o assunto, o festejado mestre ainda explana:

Em definitivo, a prevenção deve ser uma causa de exclusão da competência. O juiz instrutor é prevento e como tal não pode julgar. Sua imparcialidade está comprometida não só pela atividade de reunir o material ou estar em contato com as fontes de investigação, mas pelos diversos pré-julgamentos que realiza no curso da investigação preliminar (como na adoção de medidas cautelares, busca e apreensão, autorização para intervenção telefônica, etc.). São esses processos psicológicos interiores que levam a um pré-juízo sobre condutas e pessoas. O problema é definir se o juiz de instrução tem condições de proceder ao que se chama de uma idéia sobre a pequena história do processo, sem intensidade suficiente para condicionar, ainda que inconscientemente – e ainda que seja certeiramente – a posição de neutralidade interior que se exige para que comece e atue no processo. Como aponta OLIVA SANTOS, essas idéias pré-concebidas até podem ser corretas – fruto de uma especial perspicácia e melhores qualidades intelectuais - mas inclusive nesse caso, não seria conveniente iniciar o processo penal com tal comprometimento subjetivo. [19] (grifos do próprio autor).

Ainda sobre o tema, transcreve-se aqui excerto de ementa de julgamento do STJ português, onde bem se explana a dimensão objetiva da imparcialidade.:

Releva, também, e cada vez mais com acrescido reforço, uma perspectiva objectiva, que é conseqüêncial à intervenção no direito processual, com o suporte de um direito fundamental, de um conceito que não era, tradicional, muito chegado à cultura jurídica continental: a aparência, que é traduzida no adágio "justice must not only be done; it must also be seen to be done", que revela as exigências impostas por uma sensibilidade acrescida dos cidadãos às garantias de uma boa justiça.

Na aproximação objectiva, em que são relevantes as aparências, intervêm, por regra, considerações de carácter orgânico e funcional (v. g., a não cumulabilidade de funções em fases distintas de um mesmo processo), mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio, objectivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra si. [20]

Ainda sobre o entendimento europeu, relembra o assunto o Prof. Paulo Rangel:

O mesmo autor informa-nos que, hodiernamente, o TEDH (Tribunal Europeu de Direitos Humanos), em decisão proferida no caso "Castillo Algar contra Espanha", em sentença de 28 de outubro de 1988, declarou ofensa ao princípio da imparcialidade pelo fato de dois juizes, que denegaram um recurso na fase pré-processual, terem tomado parte no julgamento final do processo. [21]

Acreditamos que até existe contradição nos sistemas do habeas corpus e da prevenção, do nosso ordenamento processual. Por que quando o Juiz profere decisão pré-processual torna-se competente por prevenção para julgar definitivamente o feito, mas torna-se absolutamente incompetente para julgar o habeas de trancamento do mesmo Inquérito Policial? Alguma razão deve haver.

Consultemos o art. 252, inciso II, do Código de Processo Penal, que tem a seguinte redação:

Art. 252.: o Juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que:

II – ele próprio tiver exercido qualquer dessas funções ou servido como testemunha.

Numa interpretação garantista, fazendo valer tudo que fora exposto até então, acreditamos que é possível afirmar que esta é a brecha legal para se retirar a prevenção como critério fixador de competência e colocá-la, sim, como mecanismo gerador de parcialidade do magistrado.

Analisando o inciso, o professor Guilherme de Souza Nucci leciona:

Se o magistrado, por alguma razão, tiver atuado, anteriormente à investidura, como advogado, promotor, delegado, auxiliar da justiça ou perito, bem como tiver servido como testemunha, no processo, deve se dar por impedido. [22]

E, ainda, arremata com preciosa lição para nosso estudo:

Aliás, essa é uma das hipóteses mais flagrantes de parcialidade, pois é ilógico exigir-se de alguém que atue diferentemente de posição anterior assumida. [23] (grifo nosso).

Então, fazendo nossas as palavras do mestre, como se exigir que um Juiz, que atuou na fase pré-processual, atue diferentemente da posição anterior assumida ? Mais uma vez, é o caso nítido dos pré-juízos penais, conforme alertado por Aury Lopes Jr.

Desnecessário se dizer a proximidade que existe na atuação inquisidora de um Juiz criminal na fase do Inquérito Policial, e a figura de um Delegado de Polícia.

Em certos casos, ousamos dizer, a diferença é apenas de nomenclatura. Por que então, em uma dada situação é tido como prevento e em outra é rotulado como parcial?

Muito embora se defenda que o rol de impedimentos é numerus clausus, diferentemente do rol da suspeição, entendemos não haver impecilho, haja vista a similitude entre os casos.

De fato, onde existe o mesmo fato deve haver o mesmo direito.

A jurisprudência mais abalizada sobre o tema parece seguir os mesmos rumos:

Está impedido de processar e julgar o réu, o Juiz que haja diligenciado a obtenção de elementos incriminadores do ato por ele praticado, antes de instaurada a ação penal.. [24]

É impedido o Juiz que, tendo intimado o acusado, por ordem direta e pessoal, para prestar depoimento em anterior processo, e não sendo atendido, determina a apuração de prática de crime de desobediência, vindo a exercer jurisdição no feito daí resultante, uma vez que, em tais condições, o Magistrado não atuará de forma isenta, porque não está eqüidistante dos fatos, sendo parcial, com um mínimo de reprovação já intimamente formada. [25]

Sobre o autor
Danilo Von Beckerath Modesto

advogado em Salvador (BA), pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal, professor do curso IBES

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MODESTO, Danilo Von Beckerath. O critério da prevenção como afronta à imparcialidade do juiz criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1511, 21 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10306. Acesso em: 5 nov. 2024.

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