A Lei nº 9.437/97 - Lei de Armas -, em seu artigo 10, caput, definiu como crime, punido com pena de detenção de um a dois anos e multa, dezoito condutas relacionadas à utilização de arma de fogo de uso permitido, entre elas o porte, o transporte, a detenção e o aluguel.
No parágrafo terceiro do referido artigo, cuidou o legislador de estabelecer pena mais rigorosa - reclusão de dois a quatro anos e multa - para outras condutas, entre elas a prevista no inciso I, qual seja, suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato.
Nota-se claramente que a conduta passível de punição mais severa, comparada àquela prevista no caput do artigo em questão, consiste simplesmente na supressão ou alteração de marca, numeração ou qualquer sinal de identificação da arma de fogo. Não fez a Lei qualquer distinção entre as condutas daquele que porta ilegalmente arma de fogo com a numeração sem qualquer adulteração daquele que porta ilegalmente arma de fogo com a numeração, marca ou qualquer sinal adulterado.
Basta uma breve análise das condutas mencionadas no parágrafo anterior para se concluir, sem açodamento, que o comportamento daquele que infringe o caput do artigo 10 da Lei 9.437/97 é muito menos grave e, consequentemente, merecedor de menor reprovação social do que o comportamento daquele que pratica a mesma conduta utilizando-se de arma de fogo com a numeração suprimida ou alterada. Aquele que assim age busca, obviamente, burlar o controle estatal, dificultando a identificação da arma e, por via de conseqüência, sua origem e seu proprietário.
Entretanto, e não obstante a diferença entre os comportamentos, a pena prevista, em ambas as situações, é a mesma, qual seja, detenção de um a dois anos e multa, nos termos do caput do artigo 10. Isto porque não constitui conduta típica, diferente da prevista no caput, o fato de o indivíduo portar, transportar ou praticar qualquer dos tipos penais alternativos ali previstos utilizando arma de fogo com numeração de fábrica suprimida ou alterada. Comportamentos diferentes, um mais grave que o outro, e no entanto, sujeitos à mesma pena, o que demonstra grande incoerência por parte do legislador ordinário, bem como afronta ao princípio da proporcionalidade.
A título de exemplificação, sendo levado à presença da autoridade policial indivíduo preso por estar portando arma de fogo de uso permitido sem autorização legal e com a numeração de fábrica suprimida ou alterada, o mesmo, a nosso ver, deverá ser autuado em flagrante delito como incurso nas penas do artigo 10, caput da Lei 9.437/97, e não no artigo10, § 3º, inciso I da lei em tela. A conclusão é simples, uma vez que não há relação de especificidade entre o caput do artigo e os três primeiros incisos previstos no parágrafo 3º. De fato, não existe o tipo específico de "portar arma de fogo com numeração alterada ou suprimida", mas, simplesmente, alterar ou suprimir marca, sinal, numeração ou outro sinal de identificação de arma de fogo. As diferenças são significativas, especialmente nas penas previstas, que de um a dois anos de detenção e multa, passa a ser de dois a quatro anos de reclusão e multa, ou seja, inafiançável na esfera policial neste último caso.
A bem da verdade, na prática, a aplicação do artigo 10, § 3º, inciso I da Lei nº 9.437/97, dificilmente ocorrerá. No caso de flagrante delito, somente se o indivíduo, nos termos do artigo 302 do Código de Processo Penal, estiver, efetivamente, alterando ou suprimindo numeração de arma de fogo, tenha acabado de fazê-lo, seja perseguido logo após ter cometido a infração, ou é encontrado, logo depois, com instrumentos ou objetos que façam presumir ser ele o autor da alteração ou supressão da numeração, poderá haver autuação em flagrante delito.
Daí conclui-se que a sistemática utilizada pelo legislador pátrio na Lei 9.437/97, deixou a desejar. Com efeito, o § 3º do artigo 10, em seus incisos, acabou criando três tipos penais novos - incisos I, II e III - e uma qualificadora, o inciso IV. Sabe-se que o artigo de uma lei, na técnica legislativa, é uma unidade básica, podendo, se for o caso, desdobrar-se em parágrafos e incisos. O parágrafo, geralmente, explica ou acrescenta algo ao artigo, sendo que os incisos complementam aquilo que não foi possível tratar no artigo ou nos parágrafos, mas mantendo sempre coerência e tratando de assuntos correlatos, numa mesma linha de pensamento.
No caso da Lei de armas, tais conceitos foram esquecidos. Os incisos I, II e III passaram a descrever crimes autônomos, sendo que as condutas ali previstas deveriam estar expressas em artigos próprios da Lei, e não nos incisos do § 3º, como estão. Com relação ao inciso I, criou-se um tipo penal novo, qual seja, "suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato", esquecendo o legislador de qualificar a conduta daquele que infringe o caput do artigo 10 utilizando-se de arma de fogo com numeração alterada ou suprimida. Até por uma questão de coerência e lógica, melhor seria, a nosso ver, qualificar o tipo penal do artigo 10 prevendo pena mais grave para aquele que porta arma com numeração alterada ou suprimida e, em outro artigo, descrever a conduta prevista no inciso I do § 3º.
Desse modo, restará apenas ao magistrado, quando da fixação da pena, atentar para as circunstâncias judiciais previstas no artigo 59 do Código Penal, traduzindo numa maior reprovação à conduta daquele que traz consigo arma de fogo com numeração alterada ou suprimida.