Mediante a elaboração do presente artigo, objetiva-se analisar a seguinte questão: no ordenamento jurídico brasileiro, à luz das atribuições legislativas conferidas ao Tribunal de Contas, vigora o Sistema de Jurisdição Una?
Analisando o conceito de jurisdição, Moacyr Amaral dos Santos1 leciona que:
A jurisdição, portanto, é uma das funções de soberania do Estado. Função de Poder, do Poder Judiciário. Consiste no poder de atuar o direito objetivo, que o próprio Estado elaborou, compondo os conflitos de interesses e dessa forma resguardando a ordem jurídica e a autoridade da lei. A função jurisdicional é, assim, como um prolongamento da função legislativa e a pressupõe.
Pela lição de Hely Lopes Meirelles, podemos expor que o sistema de jurisdição única (ou sistema inglês, ou sistema de controle judicial) pode ser definido como aquele em que todos os litígios, seja de natureza administrativa ou de interesse exclusivamente privados, “são resolvidos judicialmente pela Justiça Comum, ou seja, pelos juízes e tribunais do Poder Judiciário”2.
Em conceito extremamente didático, Fredie Didier Jr.3 dispõe que:
A jurisdição é a função atribuída a terceiro imparcial, de realizar o direito de modo imperativo e criativo, reconhecendo/protegendo/efetivando situações jurídicas concretamente deduzidas, em decisão insuscetível de controle externo, e com aptidão para tornar-se indiscutível.
A interpretação da aplicação do sistema de jurisdição una ao ordenamento jurídico brasileiro, decorre da previsão referida no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o qual define que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Abordando uma visão sistêmica do ordenamento jurídico, Humberto Theodoro Júnior4 disserta que:
A jurisdição, que integra as faculdades da soberania estatal, ao lado do poder de legislar e administrar a coisa pública, vem a ser, na definição de Couture, a função pública, realizada por órgãos competentes do Estado, com as formas requeridas pela lei, em virtude da qual, por ato de juízo, se determina o direito das partes como objetivo de dirimir seus conflitos e controvérsias de relevância jurídica, mediante decisões com autoridade de coisa julgada, eventualmente passíveis de execução.
Como função estatal, a jurisdição é, naturalmente, una. Mas seu exercício, na prática, exige o concurso de vários órgãos do Poder Público.
Diante da exposição do conceito de jurisdição e sua visão ao sistema de jurisdição una, faz-se necessário analisar as atribuições conferidas pelo ordenamento jurídico do Tribunal de Contas. Nessa linha, a CRFB88, ao tratar da fiscalização contábil, financeira e orçamentária em sua Seção IX, relativo ao Capítulo I (Do Poder Legislativo), no Título IV (Da Organização dos Poderes), estabelece as competências do Tribunal de Contas da União (TCU). Por sua vez, o artigo 71 apresenta dois incisos cuja referência se faz necessária para elucidar a questão inicialmente tratada neste artigo jurídico. Vejamos:
Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:
I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento;
II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;
A referência constitucional aos Tribunais de Contas Estaduais (TCEs) está contida no artigo 75, informando que as normas estabelecidas nesta seção se aplicam, no que couber, à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios.
Com base nos dispositivos supratranscritos, não se pode olvidar que é competência constitucional exclusiva do Tribunal de Contas5 apreciar as contas prestadas anualmente pelo Chefe do Poder Executivo, bem como julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos.
É inegável que não poderá ser objeto de análise, pelo Poder Judiciário, o mérito das contas prestadas anualmente pelo Chefe do Poder Executivo, ou o julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por valores públicos. Tal assertiva, contudo, não exclui a apreciação, pelo Poder Judiciário, de alguma lesão, ou ofensa a princípios constitucionais (como, por exemplo, o contraditório e a ampla defesa), ocorridos nos processos administrativos tramitados nos Tribunais de Contas.
Adentrando ainda mais no tema, vale trazer a seguinte doutrina6:
Assim, apesar de no Brasil se adotar o sistema de monopólio da jurisdição (modelo inglês) clássico, é possível identificar áreas específicas (contas públicas, questões tributárias e de defesa econômica), em que o sistema de controle judicial parece permitir certa flexibilização, norteado por princípios como o da deferência e dualidade da jurisdição administrativa.
(...)
Nesse diapasão, a Constituição Federal de 1988 determinou que o Tribunal de Contas da União (TCU) possui jurisdição própria e privativa, cabendo a esse órgão o julgamento das contas públicas federais, em última instância. O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) também é a última instância federal no âmbito do sistema tributário nacional. E o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) também possui função judicante no seu campo de atuação, fiscalização da livre concorrência no mercado.
Em paralelo a isso, o artigo 4º da Lei federal nº 8.443/1992, o qual dispõe sobre a Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, é taxativo ao afirmar que o TCU tem jurisdição própria e privativa, em todo o território nacional, sobre as pessoas e matérias sujeitas à sua competência. Tal disposição nunca foi declarada inconstitucional pelo STF.
Nesse cenário, problematizando o conceito já referido neste artigo por Didier, no sentido de que a jurisdição é insuscetível de controle externo, é razoável referir que o fato de o Poder Judiciário ser competente para análise de eventual ação, diante do exercício das competências constitucionais e legais realizadas pelo Tribunal de Contas, não afasta a sua jurisdição própria e exclusiva de, por exemplo, apreciar as contas prestadas anualmente pelo Chefe do Poder Executivo, ou julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos. Ainda que o Poder Judiciário decida, mediante interposição por parte interessada, anular determinado procedimento ou julgamento de contas pelo Tribunal de Contas, não poderá, sob pena de ofensa à Lei Maior, realizar, ele mesmo, essas atribuições.
Ainda que a lesão ou a ameaça a direito sempre possa ser objeto de análise pelo Poder Judiciário, as competências dos Tribunais de Contas são exclusivas e indelegáveis. Não é possível que outro órgão da República Federativa do Brasil exerça as competências jurisdicionais referidas no artigo 71 da CRFB88 (especialmente os incisos I e II). Nesses termos, com base nos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais supracolacionados, é possível extrair a ilação de que Brasil possuiria um Sistema de Jurisdição Híbrido, ou, ao menos, há uma flexibilização ao Sistema de Jurisdição Una.
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. São Paulo, Saraiva, 2012.︎
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. [atualizado por] EURICO DE ANDRADE AZEVEDO, DÉLCIO BALESTERO ALEIXO e JOSÉ EMMANUEL BURLE FILHO. 29. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p.55.︎
DIDIER JR, Fredie. Curso de direito processual civil. Juspodium: Salvador, 19ª Ed. 2016.︎
JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito de Procesual Civil. Vol. 1. 55ª. Ed. Rio de Janeiro, 2014.︎
A expressão “Tribunal de Contas” neste artigo se refere ao seu conceito lato sensu, englobando tanto o TCU quanto os TCEs.︎
SILVA, Vitor Levi Barboza, CARMONA, Paulo Cavichioli, DEZAN, Sandro Lúcio. Uma justiça administrativa no Brasil. Publicado︎